O relato do infectologista brasileiro que estudou
um dos primeiros casos de morte em decorrência da AIDS, em 1980, e hoje
coordena a pesquisa brasileira cujos resultados podem eliminar o vírus
Entrei na Escola Paulista de Medicina em 1981. Nas
aulas de patologia, havia um paciente que tinha morrido de uma pneunomia que,
na época, a gente chamava de Pneumocystis carinii. Hoje chamamos de
Pneumocystis jirovecii. Era um caso que chamava muito a atenção. Como era uma
pneumonia muito rara na época, isso foi motivo de aula. Esse paciente tinha
morrido em 1980. Não era uma necrópsia recente. Observamos o material com
lâminas, no microscópio. Era um fotógrafo que vivia entre Nova York e o Brasil.
A aids não tinha sido descrita ainda. Ele faleceu antes. Uma década depois
pôde-se dar conta de que era um dos primeiros casos de aids do mundo.
Eu me formei em 1986 e aí escolhi como residência médica a infectologia. Fiz
residência de 1987 a 1989. Nessa época, as enfermarias começavam a ficar
completamente tomadas por pacientes com aids. A gente era praticamente o
observador da catástrofe. Não havia muita coisa para fazer pelo paciente. A
gente tentava tratar as infecções que essas pessoas tinham, mas elas acabavam
morrendo, com infecções, com cânceres. Todo mundo que fez infectologia viveu
intensamente essa epidemia no Brasil. E no mundo também. Era uma época em que
as pessoas que foram infectadas começaram a adoecer e morrer de forma muito
maciça. A gente teve de aprender a dar a má notícia para os amigos, os
familiares. Um aprendizado que, normalmente, não há na escola de medicina.
Na década de 1980 e até o comecinho da década de 1990, existia muito
preconceito pelo medo do HIV. Hoje existe ainda. Mas é um preconceito
diferente, que vem do estigma da doença. No começo, era pelo medo. O cirurgião
não queria fazer cirurgia em quem tinha HIV, porque tinha medo de se
contaminar. A pessoa que fazia eletrocardiograma não queria fazer porque tinha
medo de se contaminar. As pessoas se afastavam fisicamente de quem tinha HIV,
negando, às vezes, atenção, tratamento.
Naquela época, esses pacientes ficavam aos cuidados dos infectologistas quase
que exclusivamente, porque eram as pessoas que estudavam mais, que começavam a
desmitificar essa forma de transmissão, que não era pelo contato social, pelo
contato com secreção, não era nada disso. Já na residência, comecei a fazer
algumas pesquisas. Fui fazer o pós-doutorado em San Francisco. Fui para lá em
1993, era o epicentro da aids no mundo. Fui estudar a vida íntima do vírus. Ver
sua diversidade genética e a relação que isso tinha com a capacidade das pessoas
de desenvolverem doenças ou não.
A primeira vez que alguém no mundo detectou uma infecção dupla pelo HIV foi no
estudo em que eu era o primeiro autor. A gente viu de forma inequívoca que uma
criança que foi transfundida numa amostra de dois doadores positivos para o HIV
se infectou pelos dois vírus. E o vírus recombinou, formou um terceiro, um
híbrido, que tinha pedacinhos de um e pedacinhos de outro. Essa foi a primeira
vez que a gente mostrou essa possibilidade, que você pode ter uma infecção dupla
e uma recombinação.
Cheguei ao Brasil em 1996 e voltei a meu lugar de origem, que é a Escola
Paulista de Medicina. Criei o laboratório de retrovirologia para pesquisar o
HIV. O mesmo tipo de pesquisa que eu desenvolvia nos Estados Unidos, comecei a
fazer aqui. E, aos poucos, a gente foi incorporando a pesquisa clínica.
No laboratório em que eu fiquei em San Francisco existia muita pesquisa com
esse método chamado carga viral, que é a gente quantificar o vírus no sangue
das pessoas. Eu via isso com um potencial muito grande para a gente usar como
monitoramento de tratamento. Isso não era feito no mundo. Comecei a participar
de reuniões no Ministério da Saúde, sempre fazendo um lobby muito
grande para incorporar o teste de carga viral para saber se o tratamento estava
funcionando. A gente já tinha o medicamento para todo mundo, mas não tinha o
teste de carga viral. Hoje é muito intuitivo, mas na época as pessoas não
achavam. A gente acabou incorporando. E meu laboratório foi o primeiro a
colocar isso no sistema público, no final de 1996.
E aí a gente teve um grande susto: na hora em que começamos a fazer a carga
viral, percebemos que, para muita gente, o tratamento não estava funcionando. O
impacto disso poderia ser o vírus ficar resistente. Quando alguém está com o
tratamento falhando, você vai lá e faz o sequenciamento do genoma do vírus para
saber se tem mutação de resistência. E você ajusta o tratamento de acordo com
as mutações de resistência. Comecei então a fazer esse lobby de colocarmos o
teste de resistência, chamado de genotipagem, no sistema público. Fui o
primeiro a fazer esse teste no Brasil. E o Brasil foi o primeiro país no mundo
a incorporar o teste de carga viral e o de genotipagem no sistema público.
Hoje, meu laboratório é o único que faz o teste para o Brasil inteiro.
A partir de 1996, o Brasil cunhou uma palavra que é “acesso”. Dar acesso de
100% a medicamento, teste, diagnóstico. Nos Estados Unidos é de 50%. Isso foi a
chave do sucesso do programa brasileiro. Rapidamente, a gente ia incorporando
as coisas que eram novas. O Brasil foi o primeiro a colocar o teste para carga
viral no sistema público. Foi o primeiro a colocar o teste de resistência. Foi
o primeiro também a colocar o teste de carga viral para o diagnóstico em
recém-nascido.
Eu sempre acreditei que acharíamos a cura. A gente já sabia, desde o começo,
que o HIV não infectava nenhuma célula definitiva do corpo. Era factível achar
a cura. Eu sempre falava para os pacientes que a palavra de ordem era estar
vivo para quando a cura chegasse. E ela chegou. Já existem dois pacientes
curados no mundo, com transplante de medula.
No Brasil, decidimos fazer um estudo-piloto associando inúmeras intervenções
para ver o que funcionaria ou não. Esse estudo começou a ser desenhado em 2012
e incluímos pacientes em 2014. Ele foi, desde o começo, muito inovador. Fomos
os primeiros a associar intervenções para fortalecer o medicamento, para
“acordar” o vírus e para matar as células infectadas.
Esse estudo foi feito com 30 pessoas, divididas em seis grupos. Houve um grupo
em que a gente não fez nada, todo mundo estava se tratando com o coquetel, e o
tratamento estava indo bem. A gente só observou. Em outro, fizemos a
intensificação. Significa que, além do coquetel, demos mais dois medicamentos,
o dolutegravir e o maraviroque. Em outro grupo, fizemos a intensificação
acrescida da nicotinamida, que melhora a imunidade e, principalmente, acorda o
vírus. Quando isso ocorre, os outros remédios matam-no, e diminui o número de
células infectadas.
Em outro grupo, fizemos a intensificação e demos o sal de ouro, que mata a
célula infectada. No grupo seguinte, houve a intensificação e a vacina. No
último, que, no geral, foi melhor, a gente fez tudo — só faltou um medicamento
da intensificação, o maraviroque, que não usamos por medo de que ele matasse a
vacina. Dois pacientes desse grupo chegaram ao final do estudo sem nenhum
vírus. Na hora em que a gente retirou o tratamento, eles começaram a dar
evidências de que o vírus poderia voltar. Aí resolvemos voltar a tratá-los para
impedir.
O único paciente que continua sem tratamento é do grupo 3. Veio do grupo em que
a gente fez a intensificação e deu a nicotinamida. Ele reagiu bem a partir de
um grupo que, no geral, não foi tão bom quanto o grupo que fez tudo. Está há um
ano e sete meses com a carga viral zerada, sem medicamentos, mas não dá para
falar ainda que está curado. Ele está se comportando de forma muito parecida
com os dois pacientes que estão curados por transplante. Mas não há certeza
ainda. Tudo isso me faz seguir motivado a continuar, a consolidar alguma coisa,
reproduzir algum resultado. Vamos iniciar uma nova fase, com um grupo maior,
esperando que tudo seja mais eficaz. Quando dá certo, a motivação é continuar.
Por Ricardo Diaz, em
depoimento a Danilo Thomaz, na Revista Época
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