quinta-feira, 31 de maio de 2018

Ciganos pedem respeito e inclusão em políticas públicas



“O que estamos reivindicando? Tudo”. É assim que o cigano Carlos Calon resume as demandas do povo itinerante. Integrante do Centro de Estudos e Discussões Romani, Calon é uma das lideranças ciganas que participam da 4ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Conapir), realizada desde a última segunda-feira (28), em Brasília.
Em meio às discussões de propostas de enfrentamento ao racismo e outras formas de preconceito, os ciganos marcaram presença com sua cultura e também com várias pautas negligenciadas há décadas pelo Poder Público. “O mais importante para nós é saúde, educação, território e respeito, o governo municipal não nos respeita, não nos atende, não nos vê”, protestou Carlos Carlon.
A invisibilidade é expressa na falta de dados atualizados sobre a comunidade cigana no Brasil. O último levantamento foi feito em 2014 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Naquele ano, o instituto registrou a existência de acampamentos ciganos em 22 estados brasileiros. Algumas estimativas apontam que vivem no Brasil de 600 a 800 mil ciganos, mas as comunidades acreditam que o número é muito maior.
“É um povo esquecido. A gente chegou no Brasil em 1574, então são mais de 400 anos de anonimato. O nosso objetivo é ser reconhecido como brasileiros de origem cigana, porque querendo ou não a gente fez parte da construção desse país. E o Estado não sabe quem somos, onde estamos e muito menos quanto somos”, critica Maura Piemonte, cigana da etnia Calon.
Segundo Maura, que também integra a Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, praticamente 90% do povo Calon é analfabeto. “Gera desemprego, problemas de saúde, dependência, fica o povo ocioso, abandonado a sua própria sorte”, completa a cigana.
Maura também trabalha para desenvolver políticas específicas para as mulheres ciganas, principalmente para protegê-las de situações de violência. “Um dos meus maiores objetivos é empoderar a mulher cigana, porque quem sofre mais é a mulherada dentro da barraca. É muito difícil você estar de madrugada e a polícia invadir seu acampamento, botando fogo, jogando as comidas fora. É doloroso e não temos para onde correr, não adianta um cigano ir para porta da delegacia reclamar, porque ele vai preso”, relata.
O assunto foi debatido no início desta semana na Procuradoria-Geral da República, que recomendou, por meio da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais, que o IBGE inclua os ciganos no próximo Censo demográfico e nas pesquisas de informações básicas municipais. O Ministério Público argumenta que a falta de dados prejudica a elaboração e aplicação, pelos gestores públicos, de políticas específicas para o povo cigano.
Esta semana, os grupos ciganos ainda participaram de audiência pública no Senado Federal na qual pediram a aprovação do Estatuto do Cigano. O projeto destaca o dever do Estado de garantir aos ciganos igualdade de oportunidades no acesso às políticas de desenvolvimento econômico e social, em todas as áreas, como saúde, educação, trabalho, moradia e cultura.
Ciganos da etnia Rom também reforçaram o pedido por respeito e inclusão. “Nós temos que inserir a história do cigano na história do Brasil, porque aí a criança aprende a respeitar”, sugere o cigano Mio Vacite, presidente da União Cigana do Brasil.

Plano Nacional

Em nota, o Ministério dos Direitos Humanos confirma que há carência de atenção do Poder Público à questão cigana e escassez de dados referentes a esses povos. O governo tem registro da existência de povos das etnias Calon, Rom e Sinti. Nem todos são nômades. Alguns vivem em acampamento e ranchos como os Calon.
Pequisa do IBGE mostra que, do total de 5.570 municípios brasileiros, 195 declaram que executam programas e ações para ciganos. Segundo o ministério, desde 2011, mais de 13 mil famílias ciganas foram incluídas no Cadastro Único de Programas Sociais do governo federal para receber o benefício do Bolsa Família.
Em 2016, o ministério instituiu, por meio da Seppir, o Plano Nacional de Políticas para Povos Ciganos, que tem entre as ações prioritárias os serviços de documentação e registro civil dos ciganos, capacitação de defensores públicos, inclusão em políticas sociais e de infraestrutura, como o Minha Casa, Minha Vida e o Luz para Todos, além de projetos de regularização fundiária e de valorização da cultura cigana.

“Os ciganos ainda estão lutando por políticas que já conseguimos para a população negra. Para você ter uma ideia, foi só a partir de 2016 que esta secretaria criou o Plano Nacional de Políticas para os Povos Ciganos. O nosso embate também é por uma mobilização no Congresso Nacional para a aprovação do Estatuto dos Povos Ciganos, como temos o Estatuto da Igualdade Racial”, destacou o secretário da Seppir, Juvenal Araújo.

Conapir

Além dos ciganos, indígenas, grupos de lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e transexuais (LGBT's) e religiosos de matriz africana se reúnem na 4ª Conapir desde a última segunda-feira (28). Os diferentes grupos étnicos e de minorias discutem junto a especialistas, pesquisadores de várias áreas e gestores públicos estratégias de enfrentamento ao racismo e outras formas de discriminação racial e étnica.
O evento termina hoje (30) com a divulgação de um documento com todas as propostas levantadas durante os debates. A Conapir deste ano teve como tema “O Brasil na Década Internacional do Afrodescendente”, com destaque para os temas de reconhecimento, justiça, desenvolvimento e igualdade de direitos. O evento foi organizado pelo Conselho Nacional de Promoção das Políticas de Igualdade Racial (CNPIR), com apoio do Ministério dos Direitos Humanos e da Secretaria Nacional de Promoção da Igualdade Racial (Seppir).

EBC


Teatro completo



quarta-feira, 30 de maio de 2018

Como a teoria dos trabalhos inúteis explica a greve dos caminhoneiros




Que laboratório é melhor do que a greve dos caminhoneiros para entender as distorções do país e a dificuldade que o brasileiro tem de entender o papel do estado em uma economia de mercado?
O Financial Times publicou, há duas semanas, a resenha de um livro de David Graeber chamado 'Bullshit Jobs'. Traduzindo livremente e de forma publicável o volume poderia ser chamado aqui de 'Trabalhos Inúteis'. O autor enumera atividades de uma futilidade surreal, como a de um cidadão que precisou alugar um carro e dirigir 500 km para supervisionar a mudança de um computador entre dois pontos separados por poucos metros. Apesar do lado burlesco de absurdos como esse, Graeber chama atenção para a 'violência psicológica' por trás da enorme perda de tempo - para ele, engendrada malevolamente para sustentar o status quo.

Graeber é um antropólogo anarquista americano que leciona na prestigiosa London School of Economics, tendo passado também pela Universidade de Yale. Ativista, foi uma das figuras centrais do movimento 'Ocupy Wall Street'. Há quem atribua a ele a invenção do slogan 'nós somos os 99%' cunhado para denunciar a desigualdade agravada pela crise financeira e pelos avanços tecnológicos. O livro é baseado em ensaio publicado em 2013 na revista radical chamada Strike!, que foi um sucesso instantâneo traduzido para vários idiomas em poucas semanas. Esse texto encontra-se disponível na página da revista.

Segundo Graeber, o progresso tecnológico deveria ter propiciado uma redução do número de horas trabalhadas, permitindo às pessoas perseguirem os próprios 'projetos, prazeres, visões e ideias'. Afinal de contas, progredir é fazer mais com menos. Ao invés de liberar tempo, no entanto, o sistema preencheu-o com uma miríade de trabalhos dispensáveis. Para o antropólogo, a inutilidade não se limita aos casos mais óbvios e grotescos. Ele entende que boa parte dos empregos administrativos e serviços empresariais de forma geral são 'bullshit'.

Diante da dificuldade de encontrar explicações econômicas para o quebra-cabeça, o intelectual buscou razões políticas e morais. Segundo Graeber, não interessa aos poderosos a existência de uma população feliz com tempo livre. Sendo assim, o sistema promove valores que incentivam as pessoas a trabalharem intensamente, associando o valor e merecimento do indivíduo ao trabalho. Como não é preciso muita energia para fazer o necessário, o tempo extra é preenchido com empregos sem sentido. Essa conspiração diabólica explica porque um sistema em tese desenhado para produzir eficiência gera tanto desperdício.

A repercussão das ideias de Graeber despertou o interesse da Economist que publicou uma crítica ao ensaio na versão impressa da revista. Motivou também institutos de pesquisa a saírem a campo para saber o que as pessoas acham de seus empregos. Em uma sondagem britânica, por exemplo, 37% dos entrevistados disseram que, para eles, seus trabalhos 'não contribuíam de forma relevante para o mundo'. Fica então a pergunta: somos vítimas mesmo de um mecanismo cruel e desumano ou há outras formas de explicar a praga dos 'bullshit jobs'?

Não é fácil digerir a ideia de que existe uma conspiração arquitetada pelos que estão no primeiro percentil para manter os 99% no cabresto. Conforme a resenha da Economist, se fosse verdade que a maioria dos empregos nas economias desenvolvidas existisse apenas para servir a um grande esquema, porque milhares são destruídos nas recessões? Não seria o caso de mantê-los para evitar protestos, greves e bagunças? Graeber não chega ao ponto de dizer que o jogo é literalmente combinado, é claro, mas essa indagação expõe uma fraqueza em dos pontos centrais de sua análise. A alternância de ciclos econômicos sugere que os empregos são criados e destruídos segundo outra lógica, a do mercado, em que as trocas ocorrem porque são vantajosas a ambas as partes.

O aumento geral da prosperidade desde a Revolução Industrial tem sido alcançado mediante elevação consistente da complexidade das economias. Na medida em que isso ocorre, manejá-las torna-se mais difícil. A forma mais eficiente de controlar emaranhados é quebrar os processos em tarefas simples, permitindo a especialização e facilitando o monitoramento. É verdade que muitos trabalhos são peças pequenas de uma engrenagem grande. Por isso parecem inúteis, mas não são. A necessidade de gerir cadeias produtivas globais complicadas é o principal motor da criação das diversas camadas administrativas e serviços empresariais. As bizarrices que decorrem dessa evolução são efeitos colaterais menos relevantes.

Além disso, é complicado separar de antemão o necessário do supérfluo. O próprio Graeber faz a objeção de forma simpática, questionando a relevância dos antropólogos. Não há uma medida objetiva do valor social de um emprego. Sendo assim, elaborar uma análise a partir da hipótese de que ontem eles tinham significado e hoje não é forçar um pouco a barra. Trabalho é um meio para atingir outros objetivos para compradores e vendedores em um mercado competitivo que, de forma geral, não comporta desperdícios. Não dá para saber o que as pessoas têm em mente quando avaliam a importância do que fazem para o mundo - quem paga o salário sabe o motivo.

Um ponto importante da discussão diz respeito à distribuição da renda na medida em que a tecnologia continue avançando. A economia de trabalho braçal deu origem aos trabalhos gerenciais. Daqui a pouco muitas tarefas de caráter administrativo serão também desempenhadas mais eficientemente pelas máquinas. Na verdade, isso está acontecendo rapidamente, como sugere a fala de Yuval Harari no encontro anual do Fórum Econômico Mundial desse ano, em que ele questiona se o futuro será humano - recomendo fortemente ouvir a exposição. Mantida a tendência atual, cedo ou tarde as economias avançadas terão mesmo que encontrar uma forma de redistribuir a renda e reduzir as jornadas de trabalho na linha sugerida por Graeber.

O ponto que mais nos interessa, no entanto, refere-se ao fenômeno dos 'bullshit jobs' em economias que operam aquém da fronteira tecnológica, como nós. Os brasileiros não precisam ter uma visão radical sobre o mundo para reconhecer a existência de inúmeros empregos que, sem a menor sombra de dúvida, são absolutamente desnecessários. A função de ascensorista, por exemplo, além de indigna tem produtividade negativa, pois o cidadão que aperta os botões ocupa um lugar que poderia ser ocupado por um usuário. A sociedade como um todo se beneficiaria se o ascensorista recebesse o mesmo pagamento para fazer o que bem desejasse, mesmo que a opção fosse tomar uma cervejinha jogando Candy Crush. Alguns, quem sabe, poderiam empreender ou enveredar pelas ciências ou artes.

Graeber usa uma teoria conspiratória para explicar os empregos inúteis porque nas economias desenvolvidas o sistema é concebido para ser eficiente. No Brasil, a existência desses empregos pode ser explicada de forma mais simples. O ponto é que a economia aqui é montada para ser ineficiente e, nesse sentido, não funciona como um sistema capitalista. A abundância dos 'bullshit jobs' no Brasil decorre da mentalidade que vê no governo a solução para todos os problemas, viés que origina um festival de intervenções no domínio econômico. A inutilidade é fruto da visão de que a produtividade interessa menos do que a existência dos empregos.

Um dos momentos mais inspiradores de nossa história recente foi alçar ao cargo de ministro da Ciência e Tecnologia um político contrário à adoção de inovações tecnológicas poupadoras de mão de obra. Segundo a doutrina da preferência do ministro e, vale dizer, da maioria dos brasileiros, a adoção de cartões que permitem que os ônibus operem sem cobradores é uma má ideia. A solução tupiniquim para o dilema dos cobradores foi aplicar a tecnologia sem eliminar a função. No dia em que os ônibus não precisarem mais de motoristas não tenho dúvida de que uma lei evitará a 'destruição' desses empregos.

Nossos empregos inúteis existem porque a sociedade prefere um estado paquidérmico onipresente e paternalista, que equacione na marra os problemas econômicos como se eles não envolvessem dilemas. Aqui todos recebem um mimo do governo e todos são contra os privilégios dos outros. É daí que nascem as boquinhas no serviço público, a burocracia infernal, os cartórios e monopólios, as exigências custosas e absurdas, as organizações de classe e sindicatos que criam reservas de mercado para beneficiar associados, o viés contra as privatizações apesar de tantas evidências de ineficiência e corrupção e por aí vai.

O Brasil é um dos países com pior ambiente de negócios do mundo, como o Banco Mundial mostra a cada edição do 'Doing Business'. O nosso desperdício resulta de imposições estúpidas que nós mesmos criamos. Só avançaremos se mudarmos a mentalidade e passar a ver o Estado sob outro prisma. Isso parece estar distante, como mostram as preferências eleitorais e os discursos dos candidatos. Vide a reação da população e do governo diante do imbróglio do setor de transportes. Que laboratório é melhor do que esse para entender as distorções do país e a dificuldade que o brasileiro tem de entender o papel do estado em uma economia de mercado?

A boa notícia é que nossos 'bullshit jobs' não resultam de uma conspiração. Existem porque gostamos deles.
Por Celso Toledo, no Portal Exame

Teatro completo



terça-feira, 29 de maio de 2018

Falsa democracia



Na Itália, a Operação Mãos Limpas naufragou porque não houve mobilização da sociedade e após ser atingido o coração das organizações criminosas o corpo político reagiu estrategicamente, usou o poder de forma contundente e elaborou leis que impediram o prosseguimento do trabalho dos juízes e do Ministério Público (MP).

Legislou-se contra o bem comum, visando à autoproteção diante da letargia do povo, e as conquistas da Mãos Limpas foram por água abaixo. Esse roteiro é de pleno conhecimento do juiz Sergio Moro e dos procuradores da Lava Jato.

Temos vivido outro processo histórico, especialmente a partir de junho de 2013, quando o povo saiu às ruas – aparentemente para protestar contra um aumento de tarifa de ônibus. Logo se percebeu que os motivos eram muito mais graves: insatisfação com a política e os partidos.

Por isso foi rejeitada a PEC 37, que a Câmara, então presidida por Henrique Alves (preso por corrupção), pretendia aprovar para monopolizar a investigação criminal nas mãos da polícia, impedindo o MP de fazê-lo. Foi rejeitada por 430 x 9.

Além da rejeição da PEC 37, a Câmara aprovou naquele momento também as Leis 12.846 (anticorrupção) e 12.850 (delação premiada), mas, infelizmente, a verdade é que esse movimento teve o exclusivo objetivo de acalmar a sociedade. Quando a situação voltou a estar razoavelmente sob controle, reapresentou-se a crise de representatividade política que vivemos já há vários anos, com o descumprimento grave do papel de mandatários e partidos.

Aliás, as legendas políticas, em especial de centro e de direita, há mais de dez anos vêm rejeitando a denominação “partido” em seu nome. Querem esconder que o são. O PFL em 2007 deu início ao movimento transformando-se em DEM. Depois, o Solidariedade (2013), o Novo e a Rede (ambos em 2015). O PMDB baniu o P da sigla, assim como o PTN, que virou Podemos. Esses são apenas alguns exemplos.

No Congresso, diversas proposituras legislativas que não visam à proteção do bem comum nem à eficiência no combate à corrupção têm sido observadas nos últimos anos. Ao contrário, percebe-se nelas o objetivo de enfraquecer o sistema de Justiça e criar obstáculos ao trabalho de magistrados e do MP.

Nessa linha, a PEC 89/2015, que propunha a estranha criação de juizados de instrução presididos por delegados de polícia. Como o nome já diz, juizado é presidido por juiz, que colhe provas sob o crivo do contraditório. Para um delegado poder exercer funções de juiz deve ser aprovado em concurso para juiz, sob pena de violarmos o princípio constitucional da separação de Poderes, porque delegados são subordinados ao governador ou ao presidente e quem preside um juizado de instrução deve ser independente.

Em 29/11/2016 tivemos o público e notório pisoteamento das 10 Medidas contra a Corrupção, subscritas em projeto de iniciativa popular por quase 3 milhões de cidadãos brasileiros. E exatamente uma semana antes, à exceção de apenas quatro dos 35 partidos – Rede, PSOL, PHS e PPS –, os demais articularam anistia para todos os ilícitos praticados com caixa 2 eleitoral e pretendiam aprová-la em votação secreta. Isso só não se concretizou porque a manobra acabou vazando e a sociedade se mobilizou, reagindo fortemente contra a iniciativa.

Recentemente, sem alarde, o PL 7.448 caminhou sem discussões, sem audiências públicas na Câmara, sem debate em plenário e foi aprovado, trazendo em seu bojo simplesmente o desmantelamento do sistema de combate à corrupção, afetando especialmente o TCU, permitindo contratações com graves afrontas à lei sob o argumento de “modernização do sistema”. Seria um ataque grave ao Direito Administrativo. Nos “acréscimos do segundo tempo”, a sociedade civil virou o jogo com muita luta, conseguindo demonstrar os riscos do projeto, o que levou o presidente da República a vetar os mais escandalosos dispositivos.

O que se percebe em todas as situações é que o farol que tem iluminado o exercício do poder é apenas o da autoblindagem, como detectou a pesquisa Latinobarometro 2017 (97% dos brasileiros consideram que os políticos somente exercem o poder em próprio benefício), ganhando força, por isso, ideias como a das candidaturas avulsas.

Não foi diferente a inspiração do projeto que pretendia impedir a colaboração premiada de presos, ferindo frontalmente o princípio da isonomia, assim como o decreto de indulto presidencial “Black Friday”, que liquidava 80% das penas de corruptos numa canetada, esta contida pelo STF.

Nesse cenário surgem agora o projeto do novo Código de Processo Penal (CPP), sob a relatoria do deputado Delegado João Campos, e o “Estatuto de Responsabilidade Civil”, de autoria do deputado Hugo Napoleão (o mesmo proponente da PEC 89). São projetos que exigem extrema atenção da sociedade. Trazem questões delicadíssimas dentro de si.

O projeto do CPP (elaborado por advogados e professores) estipula prazo de duração para inquéritos, como se fosse possível haver uma tabela e como se os casos não tivessem complexidades distintas. Passou o prazo, impunidade! Além disso, a prova colhida nos inquéritos é jogada fora e desconsiderada no processo, e sem cerimônia ressuscita-se a PEC 37, pois novamente se vulnera brutalmente o poder de investigação do MP, mesmo depois de decisão do pleno do STF que o consolidou.

O “Estatuto da Responsabilidade Civil” nada mais é que o projeto do abuso de autoridade maquiado e disfarçado, que pretende, na verdade, minar a independência do Judiciário e dificultar o combate à corrupção, o que reforça as evidências de não mais vivermos uma real democracia, mas uma verdadeira tirania, em que se pretende de forma indisfarçável tornar inviável o exercício livre da magistratura e do Ministério Público no Brasil.

Por ROBERTO LIVIANU, em O
 Estado de S. Paulo


Teatro completo




segunda-feira, 28 de maio de 2018

Projetos contra a violência sexual infantil não avançam na Câmara


Quatro anos depois do fim da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara que investigou por dois anos denúncias de turismo sexual e exploração sexual de crianças e adolescentes, o Congresso Nacional não votou nenhum dos projetos indicados no relatório final da CPI. Das treze proposições nascidas na comissão, apenas três estão prontas para serem votadas em plenário. O restante ainda está em fase de debate e análise das comissões temáticas.
Entre as propostas que aguardam apreciação dos deputados, está a que tipifica como crime “o estupro de vulnerável independentemente do consentimento da vítima ou desta já ter mantido relações sexuais anteriores”. Também aguarda votação o projeto que trata do combate à exploração sexual de crianças e adolescentes em contextos de grandes obras, como construção de hidrelétricas e outros empreendimentos que atraem muitos homens para áreas com populações vulneráveis.
Na lista pendente de votação, constam ainda projetos que preveem o fechamento de boates e casas de espetáculo que não tenham documentação adequada, a criação de um banco de DNA específico para crimes contra a dignidade sexual de crianças e adolescentes, além da definição de promoção ou facilitação de tráfico de crianças como crime passível de reclusão.

Denúncias

O relatório mais recente da Ouvidoria do Ministério dos Direitos Humanos mostra que as violações contra crianças e adolescentes lideram a lista de denúncias registradas no Disque 100 em 2017. E um estudo preliminar do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) aponta que 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes.
O Congresso Nacional tem mais de 4 mil proposições que tratam de direitos das crianças e dos adolescentes e são monitoradas pelo programa da agenda legislativa da Fundação Abrinq. Desse total, mais de 90 estão diretamente relacionadas à questão da violência sexual infantil.
Muitas das propostas nasceram de polêmicas que ganharam repercussão nacional, como denúncias de abuso de crianças em clubes esportivos. A divulgação recente pela imprensa de casos envolvendo atletas chamou a atenção para o Projeto de Lei 8038, de 2014, que estabelece algumas condições para escolas de formação esportiva destinadas a crianças e adolescentes.
O projeto propõe que as escolinhas sejam cadastradas nos conselhos tutelares dos municípios, que deverão ter a responsabilidade compartilhada com as federações esportivas de monitorar o trabalho das escolas. O projeto prevê ainda que o estabelecimento deverá ter suas atividades suspensas em caso de abuso ou maus-tratos contra crianças ocorridos no local de treinamento.
“É importante também que se estabeleçam os efetivos mecanismos de fiscalização da atuação dessas escolinhas de treinamento esportivo de criança e adolescente para que a violação de fato não aconteça, ou se alguma irregularidade estiver sendo colocada em prática, que isso seja percebido e que as denúncias possam ser investigadas a termo. E que a gente não precise de tempos em tempos passar por esses processos públicos de denúncias coletivas, porque a legislação é permissiva, do ponto de vista da atuação com criança e adolescente”, destaca Maitê Gauto, líder de políticas públicas da Fundação Abrinq.

Fiscalização

Para a fundação, muitas proposições do Legislativo ainda precisam ser atualizadas para não repetir o que já existe na legislação brasileira e não é cumprido. Maitê cita como exemplo o projeto de lei 8039/2014, que está na lista das propostas da CPI de Exploração Sexual. O projeto prevê a suspensão do funcionamento dos postos de combustível onde for identificada a prática de exploração sexual, medida já prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente.
“As instituições que fiscalizam precisam dispor dos recursos necessários pra que essa fiscalização seja efetiva. Então, muitas vezes a solução está muito mais em fortalecer a capacidade institucional dos órgãos de fiscalização do que fazer uma proposição legislativa que vai apenas reforçar aquilo que a lei já prevê, que é a suspensão da atividade de qualquer estabelecimento onde seja identificada a prática de exploração sexual de criança e adolescente”, esclarece Maitê Gauto.
A pesquisadora explica ainda que muitas proposições são bem-intencionadas, mas ao longo do processo legislativo sofrem alterações que podem comprometer o objetivo final de garantia de direitos e promover retrocesso. Foi o que ocorreu com o projeto de lei que nasceu da repercussão do estupro coletivo de uma adolescente no Rio de Janeiro. O fato motivou a rápida elaboração e tramitação de um projeto da senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) para tipificar o estupro coletivo como crime.
Contudo, quando chegou na Câmara, a proposta, apesar de considerada positiva pelos ativistas, sofreu uma modificação que preocupou a rede de proteção dos direitos da criança e do adolescente. O substitutivo previa uma redução da pena para o estupro, inclusive de vulnerável (crianças até 14 anos de idade), levando em consideração a intensidade do dolo e que há diferentes tipos de danos.
“É um raciocínio bastante prejudicial do ponto de vista da criança, porque você não tem como de fato quantificar qual é o dano que uma violência sexual em uma criança de seis anos de idade, por exemplo, vai ter tanto naquele momento quanto ao longo da vida. Então, ao discutir a velocidade da tramitação a gente precisa olhar caso a caso, porque existem casos em que é melhor que a proposição não vá adiante, porque não vai promover nenhum progresso do ponto de vista do aprimoramento do marco legal”, acrescentou.

Investimento

Uma das questões mais debatidas na Câmara durante a CPI da Exploração Sexual, realizada no contexto da preparação do Brasil para sediar a Copa do Mundo, foi a necessidade de aumento do investimento em ações de combate à exploração sexual infantil. Isso constou do relatório final.
Levantamento feito pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) mostra que o orçamento do canal de denúncias Disque 100 recebeu um corte de 49,5% em 2017, em relação ao ano anterior. A pesquisa do instituto também revela que o montante do orçamento público federal destinado a programas de defesa dos direitos da criança e do adolescente vem caindo nos últimos anos. Ainda segundo o Inesc, em 2017, a política de proteção da infância pagou R$ 8,3 milhões, recursos que foram destinados em sua totalidade para a construção, reforma, ampliação e equipagem de unidades de atendimento.
“É importante olhar a dotação inicial do que foi aprovado como orçamento e o que de fato foi empenhado. Porque, como o nosso orçamento não é impositivo, é apenas de planejamento, o governo diz que vai gastar tanto, mas não significa que no fim do ano ele vai ter investido todo o recurso. E é nessa conta onde a gente percebe a redução do investimento”, ressalta Maitê Gauto.
Como exemplo, a especialista cita o programa de enfrentamento das violências contra criança e adolescente, coordenado pelo Ministério de Direitos Humanos. No início deste ano, a pasta tinha previsto um pouco mais de R$ 3,5 milhões de dotação inicial e executou R$ 195 mil, segundo dados do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do governo federal.
A pesquisadora alerta ainda que uma análise preliminar do orçamento permite constatar que o maior volume de investimentos tem sido feito em prol de ações referentes à violência cometida por adolescentes em conflito com a lei e não para prevenir futuras agressões. Maitê informou que a Fundação Abrinq está elaborando um levantamento detalhado da execução orçamentária dos últimos três anos para identificar o montante destinado e pago a ações de defesa dos direitos da infância e da adolescência. O relatório deve ser lançado em agosto deste ano.
O Ministério dos Direitos Humanos apresentou números diferentes dos citados pelo Inesc. Segundo a pasta, o orçamento destinado ao Disque 100 subiu de R$ 22,6 milhões, em 2016, para R$ 26,4 milhões no ano passado.
O ministério informou ainda que o Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte (PPCAAM), que é executado em parceria com governos estaduais e organizações não governamentais, cresceu de R$ 7,7 milhões em 2016, para R$ 9,7 milhões, em 2017, e saltou para  R$ 14,5 milhões, em 2018. Atualmente, o programa está presente em 13 estados: Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espírito Santo, Maranhão, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Pernambuco, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Nos estados que não possuem programa local, o atendimento é prestado pelo Núcleo Técnico Federal. Em 2017, o PPCAAM protegeu 1.170 pessoas, sendo 473 crianças e adolescentes e 697 familiares.
Agência Brasil

Teatro completo