Lentidão do órgão, que
acaba de divulgar lista com mais de 4.000 títulos em aberto, é mais uma ameaça
a setor já abalado
O exponencial aumento na produção audiovisual
brasileira nas duas últimas décadas carregou consigo um dado que todos no setor
intuíam, mas que, nesta semana, ganhou forma numa planilha de Excel. Nesta
terça-feira, a Ancine, a Agência Nacional do Cinema, informou, em seu site, que
exatos 4.219 longas-metragens e séries estão com as suas prestações de contas
em aberto.
Algumas das obras foram produzidas há quase 20 anos. A revelação deixou
produtores em choque. “De repente, descobri que, há anos, invisto dinheiro e
tempo em prestações de contas que a agência, simplesmente, não tem capacidade
de analisar”, diz o produtor Rodrigo Teixeira, da RT Features, que tem
indicações ao Oscar e prêmios em Cannes.
“Eu não só pago um funcionário para fazer esse trabalho como alugo um
guarda-móveis para guardar as notas fiscais dos filmes.” Teixeira produziu, no
Brasil, duas séries de TV e 20 longas-metragens.
Mariza Leão, da Morena Filmes, é outra que paga um guarda-móveis para armazenar
os documentos relativos aos filmes produzidos com recursos públicos. Mesmo
assim, não sabe se conseguirá recuperar os documentos que a Ancine agora
requer. “Eles pedem documentos digitalizados de um filme de 2005. Há 15 anos, a
gente não tinha scanner e tinha comprovantes num tipo de papel que a tinta some
com o tempo”, diz.
A produtora de Leão tem 15 títulos na lista da Ancine. Entre eles, há desde
longas-metragens lançados, como “De Pernas pro Ar”, de 201o, e “De Pernas pro
Ar 3”, de 2019, até projetos em desenvolvimento. “Quando fiz o primeiro
‘De Pernas por Ar’, a IN [Instrução Normativa] em vigor era a 21. Agora estamos
na IN 124. Como pode a agência avaliar, com as normas de hoje, projetos do
começo dos anos 2000?”
Mesmo tendo causado espanto e preocupação, essa lista não veio do nada. Ela é
parte de um processo iniciado em 2017 pelo Tribunal de Contas da União,
o TCU. O órgão, já então, apontava para o risco que o passivo de projetos
à espera de análise representava para a política de fomento ao audiovisual.
O tribunal, além disso, questionava o uso do método Ancine+Simples na prestação
de contas. Esse método, adotado a partir de parecer favorável da Advocacia
Geral da União, a AGU, aliás, permite uma análise por amostragem dos
projetos.
Parte das 4.219 obras presentes na lista divulgada tinha sido aprovada por esse
método, que era “declaratório” e não exigia a entrega imediata de notas
fiscais. Só alguns projetos, aqueles sorteados, tinham de apresentar os
documentos. Agora, todos terão de entregar os papéis.
“É bastante normal haver alguma divergência numa prestação de contas tão
complexa como é a de um longametragem. Mas os esclarecimentos tinham que ter
sido pedidos quando fiz a prestação de contas, e não anos depois”, diz Rodrigo
Teixeira.
O que ficou claro, a partir de informações da Ancine e do TCU, é que o
julgamento das contas sempre foi feito num ritmo muito lento. A Ancine já
nasceu com um passivo. Em 2002, ao ser instalada, com quatro diretores e sem
uma sede, a agência herdou o passivo da Secretária do Audiovisual, a SAv.
De lá para cá, a produção e a agência cresceram. Para se ter uma ideia, a
produção de longas-metragens saltou de 30 títulos em 2002 para 185 em 2018. Mas
o fluxo de análises nunca seguiu o ritmo do financiamento.
Em 2015, por exemplo, havia 1.192 projetos em trâmite na Ancine e 344
prestações de contas foram concluídas. É claro que, numa política pública, é
preciso haver um equilíbrio entre passado e presente, e é sabido que o passivo
é realidade em centenas de órgãos públicos. A questão é o equilíbrio. Ou
desequilíbrio.
A situação extrema a que a Ancine chegou tem seu marco em 2018, quando foi
lançado um programa de investimentos da ordem de R$ 1,2 bilhão. Ao tomar
conhecimento dos novos editais, o TCU, que já havia pedido uma solução
para o passivo, ameaçou paralisar as novas contratações.
O ano de 2018 terminou com 3.144 projetos à espera de análise e 78
deliberações. Em abril do ano passado, um acórdão do tribunal sugeriu que a
agência não levasse adiante nenhum novo contrato enquanto não tivesse condições
técnicas e operacionais para tanto.
Dois meses depois, um outro acórdão defenderia que o preço dos ajustes
normativos não podia ser a própria política pública. Ou seja, que não tinha
sentido paralisar toda a política para corrigir a rota. De toda forma, as
exigências de novos parâmetros para a prestação de contas e de solução do
passivo foram mantidas pelo TCU.
“Se, por um lado, os números dão conta da extensão do problema, de outro,
existe um compromisso institucional para a sua resolução”, afirma Alex Braga,
diretor-presidente substituto da Ancine. “É o enfrentamento de um problema
histórico e sistêmico, e estamos fazendo de forma pública e transparente.”
Braga estima resolver o passivo em quatro anos e assegura que, nesse tempo, a
política terá seguimento.
Os produtores estão, porém, preocupados não só com a cobrança de coisas que
consideravam resolvidas, mas com a reprovação das contas. Segundo a Ancine, 102
prestações de contas, num universo de 168 deliberações recentes, foram
recusadas. O fato de tanta gente não conseguir cumprir as regras acaba,
obviamente, pondo em xeque, as próprias regras.
Os gestores, antigos e atuais, por sua vez, agora temem se tornar alvos de
processos por improbidade administrativa e ação negligente.
É o passado a assombrar o presente de uma atividade que, não bastasse tudo
isso, é fortemente impactada pela pandemia do coronavírus.
Por Ana Paula Sousa, na Folha
de S. Paulo