terça-feira, 21 de julho de 2020

No quarto de despejo


A Festa Literária das Periferias reinventa-se em edição virtual para atualizar Carolina Maria de Jesus"1º de janeiro de 1960. Levantei às 5 horas e fui carregar água”, anotou Carolina Maria de Jesus em lápis e papel numa letra firme e grande. Sessenta anos depois, Roberta Domingos Ferreira escreve no teclado de um computador. “29 de abril de 2020. Por um segundo pensei estar presenciando a corrida contra a fome. Eram mulheres e crianças descendo a ladeira de mãos vazias. Sem comida. Sem comer. E com raiva.” Marco da escrita feminina no Brasil e fenômeno editorial que superou 1 milhão de exemplares vendidos em 40 paí­ses e 14 línguas, Quarto de Despejo, de Carolina, transborda como nunca. E, para celebrar, a Festa Literária das Periferias (Flup) decidiu homenagear a escritora com a atualização de sua obra inaugural.

Quase 500 mulheres se inscreveram para participar do projeto Flup Pensa, batizado de “Uma Revolução Chamada Carolina”. A inscrição era uma mensagem a ser enviada para a pioneira autora Carolina, ex-catadora de papéis descoberta em 1958 na Favela do Canindé, em São Paulo, pelo jornalista Audálio Dantas. Paulistana, formada em Administração e educadora social, Roberta Domingos Ferreira foi uma das 200 selecionadas pelo relato que fez a partir de seu olhar sobre a pandemia. A mesma pandemia que obrigou os organizadores da Flup a adaptarem o evento com oficinas de criação reunindo em 14 encontros virtuais personalidades como Conceição Evaristo, Zezé Motta, Preta Rara e Erica Malunguinho.

Pela Flup, o diário de uma favelada, a poetisa da favela do Canindé, na Zona Norte de São Paulo, adquiriu novas faces e facetas. Agora as vidas por escrito são das herdeiras literárias de Carolina, que são também as filhas, netas e sobrinhas das políticas de reparação dos governos Lula e Dilma. “Eu me sinto uma verdadeira Carolina”, diz Edilaine Gonçalves, de 48 anos, mais conhecida como Dona Naná. Filha de pai ferramenteiro e mãe que estudou até a quarta série, Naná começou a trabalhar como empregada doméstica aos 9 anos. Sua tarefa era “vigiar” um bebê da patroa. Depois foi fazer faxina na casa da irmã dessa mulher. Ingressou na faculdade de Direito, sem concluí-la. Teve depressão, divorciou-se, ficou só com o filho pequeno numa casa de um cômodo e então descobriu a reciclagem de materiais.

Naná reencontrou-se no mesmo trabalho que garantiu a sobrevivência de Carolina. Mas graduou-se em Engenharia Ambiental Sanitária, como bolsista da Universidade Estácio de Sá. Quis acompanhar o filho, que se forma neste ano como engenheiro civil. “Dentro da catança de materiais começaram a vir as realizações, o prazer daquilo que sempre quis ser”, diz ela, apaixonada por matemática, física e química e como usar esse conhecimento para pensar num planeta sustentável. ­ “A Flup me acrescentou demais, porque tem me ajudado a construir minha história, da minha família e dos catadores.”

Para o processo de formação, a Flup recebeu inscrições de mulheres negras de todos os estados, com exceção de Alagoas, e também de outros países, como França, Angola, Guiné-Bissau, Estados Unidos, Espanha e Portugal. A mais nova tinha 16 anos e a mais velha, 65. Mas o que chamou a atenção de Júlio Ludemir, diretor e curador da Flup, foram os 41% de inscritas com superior completo, e 38% delas com mestrado ou doutorado. “Quem diria que um festival literário na favela seria possível?”, questiona Ludemir, para logo responder. “Havia uma turma que estava emergindo a partir das políticas afirmativas desde os anos 2000. Mas elas mais falam da fome da mãe e da avó do que da própria fome.”

A festa literária estava programada para 30 e 31 de maio, com 40 escritoras convidadas. Ganhou novo formato online, incluindo a oficina de criação. O primeiro encontro foi em 12 de maio e contou com a presença de Conceição Evaristo e Vera Eunice, a filha de Carolina Maria. A Flup surgiu em 2012, a partir do devaneio de Júlio Ludemir, que idealizou uma Flip (a Festa Literária Internacional de Paraty) para jovens das comunidades pobres do Rio. Écio Salles, então secretário de Cultura de Nova Iguaçu (RJ), comprou a ideia e desde então a literatura vê o surgimento de novos nomes. Jessé Andarilho (autor de Fiel e Efetivo Variável) e Rodrigo Santos (Macumba) foram alguns dos 43 autores da primeira edição do livro da Flup. Nos anos seguintes, vieram Geovani Martins, autor de O Sol na Cabeça, traduzido em mais de dez países, e Raquel de Oliveira (A Número Um), que narrou sua experiência pessoal com o tráfico.

A escritora Ana Paula Lisboa, de 32 anos, também fez parte da primeira turma da Flup. Há três anos em Luanda, Angola, ela orienta um dos grupos de formação e tem percebido o Flup Pensa como um processo de cura para traumas das mulheres negras. “Hoje, elas conseguem se enxergar como grupo, ver seus pares e que existe uma produção e uma potência, uma diferenciação dessas narrativas de pessoas negras e periféricas e de como elas contam suas histórias em primeira pessoa.”

O processo enriquecedor tem alimentado a escrita de ribeira, como gosta de se definir Clara Anastácia, de 29 anos. Roteirista, compositora e escritora, ela foi criada pelo pai, porque a mãe, Maria Nazareth, morreu quando tinha 8 anos. Mas herdou dela e da avó, educadoras da Pavuna, o gosto pela escrita. O desabrochar foi quando tomou contato com autores como Frantz Fanon, Angela Davis, Bertolt Brecht e Samuel Beckett, como ouvinte na UniRio. Entrou em Ciências Sociais na UFRJ, mas desistiu depois de três anos ao ingressar na UniRio para estudar estética e teoria do teatro. No ano passado, foi convidada por Ana Moretti para criar personagens negros de uma série em produção para a Netflix. “Cada qual traz um pedaço para compartilhar nessa grande troca que é a Flup, e tudo isso impulsionado pela voz de comando de Carolina Maria de Jesus”, diz Clara Anastácia.

 

Por Eduardo Nunomura, na Revista Carta Capital  






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