A Festa Literária das Periferias
reinventa-se em edição virtual para atualizar Carolina Maria de Jesus"1º
de janeiro de 1960. Levantei às 5 horas e fui carregar água”, anotou Carolina
Maria de Jesus em lápis e papel numa letra firme e grande. Sessenta anos
depois, Roberta Domingos Ferreira escreve no teclado de um computador. “29 de
abril de 2020. Por um segundo pensei estar presenciando a corrida contra a
fome. Eram mulheres e crianças descendo a ladeira de mãos vazias. Sem comida.
Sem comer. E com raiva.” Marco da escrita feminina no Brasil e fenômeno
editorial que superou 1 milhão de exemplares vendidos em 40 países e 14
línguas, Quarto de Despejo, de Carolina, transborda como nunca. E, para
celebrar, a Festa Literária das Periferias (Flup) decidiu homenagear a
escritora com a atualização de sua obra inaugural.
Quase 500 mulheres se inscreveram para participar do projeto Flup Pensa,
batizado de “Uma Revolução Chamada Carolina”. A inscrição era uma mensagem a
ser enviada para a pioneira autora Carolina, ex-catadora de papéis descoberta
em 1958 na Favela do Canindé, em São Paulo, pelo jornalista Audálio Dantas.
Paulistana, formada em Administração e educadora social, Roberta Domingos
Ferreira foi uma das 200 selecionadas pelo relato que fez a partir de seu olhar
sobre a pandemia. A mesma pandemia que obrigou os organizadores da Flup a
adaptarem o evento com oficinas de criação reunindo em 14 encontros virtuais
personalidades como Conceição Evaristo, Zezé Motta, Preta Rara e Erica
Malunguinho.
Pela Flup, o diário de uma favelada, a poetisa da favela do Canindé, na Zona
Norte de São Paulo, adquiriu novas faces e facetas. Agora as vidas por escrito
são das herdeiras literárias de Carolina, que são também as filhas, netas e
sobrinhas das políticas de reparação dos governos Lula e Dilma. “Eu me sinto
uma verdadeira Carolina”, diz Edilaine Gonçalves, de 48 anos, mais conhecida
como Dona Naná. Filha de pai ferramenteiro e mãe que estudou até a quarta
série, Naná começou a trabalhar como empregada doméstica aos 9 anos. Sua tarefa
era “vigiar” um bebê da patroa. Depois foi fazer faxina na casa da irmã dessa
mulher. Ingressou na faculdade de Direito, sem concluí-la. Teve depressão,
divorciou-se, ficou só com o filho pequeno numa casa de um cômodo e então descobriu
a reciclagem de materiais.
Naná reencontrou-se no mesmo trabalho que garantiu a sobrevivência de
Carolina. Mas graduou-se em Engenharia Ambiental Sanitária, como bolsista da
Universidade Estácio de Sá. Quis acompanhar o filho, que se forma neste ano
como engenheiro civil. “Dentro da catança de materiais começaram a vir as
realizações, o prazer daquilo que sempre quis ser”, diz ela, apaixonada por
matemática, física e química e como usar esse conhecimento para pensar num
planeta sustentável. “A Flup me acrescentou demais, porque tem me ajudado a
construir minha história, da minha família e dos catadores.”
Para o processo de formação, a Flup recebeu inscrições de mulheres negras de
todos os estados, com exceção de Alagoas, e também de outros países, como
França, Angola, Guiné-Bissau, Estados Unidos, Espanha e Portugal. A mais nova
tinha 16 anos e a mais velha, 65. Mas o que chamou a atenção de Júlio Ludemir,
diretor e curador da Flup, foram os 41% de inscritas com superior completo, e
38% delas com mestrado ou doutorado. “Quem diria que um festival literário na
favela seria possível?”, questiona Ludemir, para logo responder. “Havia uma
turma que estava emergindo a partir das políticas afirmativas desde os anos
2000. Mas elas mais falam da fome da mãe e da avó do que da própria fome.”
A festa literária estava programada para 30 e 31 de maio, com 40 escritoras
convidadas. Ganhou novo formato online, incluindo a oficina de criação. O
primeiro encontro foi em 12 de maio e contou com a presença de Conceição
Evaristo e Vera Eunice, a filha de Carolina Maria. A Flup surgiu em 2012, a
partir do devaneio de Júlio Ludemir, que idealizou uma Flip (a Festa Literária
Internacional de Paraty) para jovens das comunidades pobres do Rio. Écio
Salles, então secretário de Cultura de Nova Iguaçu (RJ), comprou a ideia e
desde então a literatura vê o surgimento de novos nomes. Jessé Andarilho (autor
de Fiel e Efetivo Variável) e Rodrigo Santos (Macumba) foram alguns dos 43
autores da primeira edição do livro da Flup. Nos anos seguintes, vieram Geovani
Martins, autor de O Sol na Cabeça, traduzido em mais de dez países, e Raquel de
Oliveira (A Número Um), que narrou sua experiência pessoal com o tráfico.
A escritora Ana Paula Lisboa, de 32 anos, também fez parte da primeira turma da
Flup. Há três anos em Luanda, Angola, ela orienta um dos grupos de formação e
tem percebido o Flup Pensa como um processo de cura para traumas das mulheres
negras. “Hoje, elas conseguem se enxergar como grupo, ver seus pares e que
existe uma produção e uma potência, uma diferenciação dessas narrativas de
pessoas negras e periféricas e de como elas contam suas histórias em primeira
pessoa.”
O processo enriquecedor tem alimentado a escrita de ribeira, como gosta de se
definir Clara Anastácia, de 29 anos. Roteirista, compositora e escritora, ela
foi criada pelo pai, porque a mãe, Maria Nazareth, morreu quando tinha 8 anos.
Mas herdou dela e da avó, educadoras da Pavuna, o gosto pela escrita. O
desabrochar foi quando tomou contato com autores como Frantz Fanon, Angela
Davis, Bertolt Brecht e Samuel Beckett, como ouvinte na UniRio. Entrou em
Ciências Sociais na UFRJ, mas desistiu depois de três anos ao ingressar na
UniRio para estudar estética e teoria do teatro. No ano passado, foi convidada
por Ana Moretti para criar personagens negros de uma série em produção para a
Netflix. “Cada qual traz um pedaço para compartilhar nessa grande troca que é a
Flup, e tudo isso impulsionado pela voz de comando de Carolina Maria de Jesus”,
diz Clara Anastácia.
Por Eduardo Nunomura, na Revista
Carta Capital
|
Coleção Educação e Folclore com 10 livros, saiba aqui. |
|
Coleção Educação e Democracia com 4 livros, saiba aqui. |
|
Coleção Educação e História com 4 livros, saiba mais. |