domingo, 21 de junho de 2015

Textos inéditos de José Saramago: a criatividade íntima do escritor


Por FERRAN BONO, no El País

Nobel português anotava as dúvidas e o processo de escrita de seus romances.

Cinco anos após sua morte, o EL PAÍS publica o ‘making of’ de ‘Ensaio sobre a Lucidez’




O escritor José Saramago, na praia Quemada de Lanzarote, onde foi projetado um plano urbanístico ao final paralisado, em uma imagem de 2007 / PEDRO WALTER

Anotava sempre que lhe ocorria uma ideia para começar um romance. Podia ser de madrugada ou viajando de trem. Expressava suas dúvidas sobre a qualidade do que estava escrevendo ou manifestava sua desconfiança sobre o interesse de uma trama quando ele mesmo já estava enfastiado de urdi-la. José Saramagocostumava anotar tudo, inclusive quando, de repente, decidia mudar o título de um romance até que a opinião de sua mulher, Pilar del Río, o fazia desistir e voltar a seu plano original.

Foi o que aconteceu com Ensaio sobre a Lucidez, obra sobre a qual o EL PAÍS publica uma série de textos inéditos (publicados originalmente em espanhol; em português foram publicados pela revista Blimunda, da Fundação Saramago) no quinto aniversário da morte do prêmio Nobel de Literatura de 1998. São notas escritas pelo autor em 2003, durante a redação do livro que seria lançado um ano mais tarde, que mostram o processo criativo, a construção do relato, a maneira como se fez o romance (o que no cinema se chama making of).
Saramago (Santarém, Portugal, 1922-Lanzarote, 2010) narra emEnsaio sobre a Lucidez a história de uma cidade cujos habitantes decidem votar majoritariamente em branco, o que provoca a reação virulenta do Governo. Estes são alguns fragmentos das notas do autor:

4 de fevereiro

“Na noite de 30 para 31 de Janeiro acordei às 3 horas com o pensamento súbito de que o assunto para um novo romance, de que mais ou menos conscientemente andava à procura, afinal já o tinha. Era aquela “revolução branca” de que falei em Madri e Barcelona na apresentação do Homem Duplicado, o voto em branco como única forma eficaz de protesto contra o abençoado sistema “democrático” que nos governa. Como se isto não fosse já suficiente, tive também a repentina, a instantânea certeza de que tal livro, no caso de vir a existir, teria de levar o título de Ensaio sobre a Lucidez, como se o fato de votar em branco na atual situação do mundo fosse um ato exatamente ao contrário daqueles ou da maioria daqueles que noEnsaio sobre a Cegueira se cometeram. Durante estes dias, a convicção de haver acertado em cheio foi-se tornando mais forte (...)”.

17 de março

“(...) Cheguei à conclusão de que o título do romance determina que as personagens sejam as que habitaram as páginas do outro Ensaio, o da cegueira. Provavelmente não todas. Pensei que a mulher do primeiro cego se teria divorciado do marido e que a mãe do rapazinho estrábico apareceu e tomou conta do filho. Os outros —mulher do médico e marido, rapariga dos óculos escuros e velho da venda preta, mantêm-se. E também o cão das lágrimas, que fechará o livro, com a mulher do médico morta ao seu lado, assassinada por aqueles que decidiram que tudo deveria voltar ao bom tempo antigo (...)”.

29 de março

“O primeiro capítulo começará pela descrição (sumária, claro está) da tempestade de chuva e vento que se abate sobre o país. A televisão e a rádio apelam à consciência cívica dos eleitores para que, apesar do mau tempo, não se deixem ficar em casa. Usar o palavreado balofo próprio das ocasiões patrióticas. Entrar em casa das personagens principais: a mulher do médico e o marido (também o cão, que vive com eles), a mulher divorciada do primeiro ladrão, a rapariga dos óculos escuros e o velho da venda preta, mais o rapazinho estrábico (a mãe nunca apareceu, ou sim?), o escritor e a família (toda? Recordo que era casado e creio que tinha filhas). Às quatro horas da tarde todos saem para ir votar (sairão igualmente os habitantes que ainda não haviam votado). Descrição da caminhada sob a chuva. Bairros inundados, bombeiros, barcos. A rádio e a televisão apressam-se a transmitir a notícia do inopinado acontecimento: os eleitores da cidade X estão a dar um extraordinário exemplo de civismo, arrostando com a intempérie para irem cumprir o sagrado dever (...)”.

19 de abril

Sobrevoando o Mediterrâneo.
“A ideia de que as personagens da Cegueira devam reaparecer em Lucidez parece-me cada vez melhor. Se o título do novo livro indicia já uma continuidade, a presença das personagens confirma-o definitivamente. No espírito das autoridades perplexas nascerá a suspeita de que a mulher que não perdeu a visão na Cegueira poderá ter algo que ver com o novo “fenômeno”. Passar dela para aqueles a quem ela havia guiado é uma consequência lógica. Se o romance anterior tinha obedecido escrupulosamente a uma certa lógica, este não poderá ficar atrás (...)”.

3 de junho.

Dia em que Sophia de Mello Breyner ganhou o Prêmio Rainha Sofia de Poesia Iberoamericana
“O final não será como foi descrito acima. A mulher do médico será assassinada, mas não na varanda das traseiras da casa. Será morta num jardim, aonde tinha levado o cão das lágrimas a passear. O cão começará a uivar e será igualmente morto. Os cegos perguntar-se-ão: Ouviste alguma coisa, Dois tiros, Mas havia também um cão aos uivos, Já se calou, deve ter sido o segundo tiro, Ainda bem, o uivar dos cães faz-me mal aos nervos”.

As obras e as ideias do Nobel seguem vivas

JAVIER MARTÍN, LISBOA
Cinco anos após sua morte, José Saramago está muito presente. Em todo mundo aumentaram os livros sobre ele, as representações teatrais, as traduções, as cátedras e as mostras e até se publicou, postumamente,Alabardas, Alabardas, Espingardas, Espingardas. “Chama-nos a atenção”, explicou Pilar del Río, viúva do escritor e diretora da Fundação Saramago na quarta-feira em Lisboa, “que, sem nossa iniciativa, muitas televisões recordam esta data”. Na Itália está sendo preparada uma ópera baseada em As Intermitências da Morte, e em São Paulo, a maior mostra sobre o autor no Museu da Língua Portuguesa. Hoje, a Fundação estreia o documentário Um Humanista por Acaso Escritor, do brasileiro Leandro Lopes. E está sendo finalizado um roteiro sobre O Fim da Paciência, obra que nunca chegou a ser apresentada nos palcos.
Suas ideias também não morreram. Em 1998, o primeiro prêmio Nobel português propôs em seu brinde no jantar da Academia sueca criar a Declaração Universal dos Deveres Humanos. “não parece que os Governos tenham feito pelos direitos humanos tudo aquilo a que, moralmente, quando não por força da lei, estavam obrigados. As injustiças multiplicam-se no mundo, as desigualdades agravam-se, a ignorância cresce, a miséria alastra”.
Aquele brinde ao sol foi retomado, 17 anos depois, pela Universidade Autônoma do México, que organiza na próxima quarta-feira um congresso sobre a ideia dos Deveres Humanos. O site Perspectivas do Mundo da UNAM recolheu ideias, e intelectuais de todo o mundo debaterão sobre o futuro que nos aguarda. “José não gostava de ser classificado como intelectual”, recordou Pilar del Río, “ele era um humanista, mas um humanista compassivo”.

    segunda-feira, 15 de junho de 2015

    O buraco negro que, na educação, separa qualidade de quantidade


    As últimas pesquisas, efetuadas pelo MEC e por organismos internacionais, registram a mediocridade em que se encontra o sistema de ensino brasileiro, sobretudo, no que refere-se à qualidade.

    Em torno de 50% dos alunos brasileiros situados na faixa etária dos 15 anos, estão no chamado nível 1 de alfabetização, indicador estabelecido pela Unesco para classificar a performance dos estudantes. Neste patamar, estão aqueles que mal conseguem efetuar leitura e interpretação de textos. Em um dos mais recentes levantamentos, considerando 41 países pesquisados, o Brasil ficou na 37ª posição, à frente apenas de quatro países. No continente americano vencemos apenas o Peru.

    A gravidade da situação que estes indicadores desnudam, está a enfatizar que metade dos alunos brasileiros, com bom aproveitamento acadêmico, que desde sempre estiveram na escola, não dominam a língua pátria e são incapazes de extrair dos textos seus significados. Passam quase dez anos na escola regular sem quase nada aprender. É uma pantomina em que todos enganam-se mutuamente: o estado presta contas divulgando inaugurações de novas e mais novas escolas, os pais contentam-se com um espaço onde possam deixar os filhos, qualquer espaço - desde que fora da violência das ruas - e os alunos acomodam-se na ignorância, que não exige esforço, estudos e trabalhos. E o país amplia a distância que o separa dos países desenvolvidos.

    Para construirmos uma nova realidade para a educação, urge entendermos o caos em que nos encontramos. É o primeiro passo, identificar com precisão nossos problemas, para que tenhamos condições de encará-los de frente, estabelecendo políticas, diretrizes e estratégias que os conformem aos objetivos e metas traçados. Para criar um país desenvolvido, em que as oportunidades e a justiça sejam patrimônio de todos, será preciso muito mais.

    As edificações destinadas ao ensino carecem de reformas, adequações e principalmente, um novo conceito. Estes espaços devem ser reconcebidos. As salas de aula convencionais, não mais respondem às necessidade contemporâneas. O espaço em que interagem professor e aluno deve se ampliar para todo o espaço de convivência comunitária. As ruas, praças e demais logradouros e equipamentos públicos devem ser extensões de nossas salas de aula. Todo o ambiente que nos envolve deve ser utilizado como salas de aula, laboratórios de pesquisas e oficinas de aprendizagem. A realidade é que a escola sempre funcionou como uma instituição externa à sociedade. Sobretudo neste momento em que a violência urbana as têm tangido para o isolamento. Muralhas de concreto armado, cercas eletrificadas, sistemas de monitoramento eletrônico, cães de guarda... vultosos investimentos que deveriam se destinar à área pedagógica, são carreados para o setor de segurança.

    De igual modo, os conteúdos ministrados estão defasados, inadequados. Os assuntos são tratados e abordados de forma cartesiana e mecânica, de modo que não exercem fascínio, não exercem encanto sobre os alunos. Agrava o quadro o sistema adotado de remuneração dos professores: salários miseráveis que retiram de um dos principais atores deste processo, o estímulo. Pior, afeta de maneira irremediável a auto-estima dos educadores.

    Mas nem tudo foi ou está perdido.

    No último século o país investiu na universalização do ensino, massificando a oferta de vagas. E neste sentido, muito foi conquistado. No ano de 2000, a taxa de escolarização da população de 7 a 14 anos - faixa destinada ao ensino fundamental - chegou a 94,5%. É um dado extremamente relevante, que não deve ser ignorado.

    Outras conquistas merecem registro. Nos idos de 1940, a taxa de analfabetismo se situava em torno de 65,1% da população com mais de 15 anos de idade. No ano de 2000, esta taxa era de 13,6%. São indicadores que ainda não satisfazem ao anseio de progresso e desenvolvimento da sociedade, mas enfatizam categoricamente que é possível avançar quando há vontade política e determinação.

    É evidente que muito ainda há o que fazer. Quando cotejamos estes dados com os dos demais países - inclusive os latino-americanos - é que percebemos o quanto estamos atrasados. Mas ignorar os progressos obtidos até aqui seria um erro tão elementar quanto o de ignorar a necessidade de novos e urgentes investimentos, agora priorizando a qualidade e não a quantidade.

    Assim como estamos ganhando a batalha da massificação da oferta de vagas, deveremos agora enfocar o desafio de massificar a qualidade.

    E qualidade refere-se, sem dúvida, à edificações, conteúdos e didáticas adequadas. Mas refere-se também à criação de um eficiente e continuado processo de qualificação da mão de obra, o que inclui a adoção de vigorosos processos de capacitação, planos de progressão funcional, e de políticas salariais consistentes.

    Direção, professores, servidores e comunidade, devem estar plenamente engajados na construção deste novo cenário, onde a universalização se dê pelo acesso, como também pela qualidade.

    Hoje, na área da educação, é visível o descompasso entre estes dois componentes: quantidade e qualidade. E mais: o buraco negro que separa o acesso (quase universalizado) da qualidade do ensino, compromete de maneira determinante nosso desenvolvimento social, fazendo com que gerações e gerações percam sonhos e oportunidades.

    Responder, com sabedoria e rapidez, a este desafio é o que está na ordem do dia.

    Artigo de Antônio Carlos dos Santos publicado na Revista Bula e no portal Goiás Educação.

    segunda-feira, 8 de junho de 2015

    BIRDMAN


    segunda-feira, 1 de junho de 2015

    O resgate do Estado de bem-estar

    O legado mais negativo da crise, para Garrido, é um modelo social europeu ferido de morte


    JOAQUÍN ESTEFANÍA, no El País



    Manifestação de fevereiro em Atenas em apoio ao Governo grego. / AFP

    As metáforas para definir o que nos aconteceu nos últimos sete anos se tornam mais sofisticadas. Durante muito tempo bastava falar de Grande Recessão, mas o conceito foi se tornando insuficiente. Da mesma forma que Yanis Varoufakis, antes de ser famoso e ministro das Finanças do Governo grego, a chamou de “Minotauro global”, López Garrido analisa como “a idade do gelo”, uma etapa fria e dura que não constituirá um mero intervalo entre duas eras de normalidade e afetará, principalmente, o hemisfério norte. Durante a primitiva Idade do Gelo, extensas regiões da Terra ficaram cobertas pelo gelo, o clima esfriou em todo o planeta e o nível dos mares e dos rios diminuiu, já que a maior parte congelou. Na atual idade do gelo, congelou, acima de tudo, o dinheiro, o alimento da economia da nossa era: congelaram as artérias do sistema, os bancos, e, em especial, congelou o coração da economia, sua pulsação produtiva e trabalhista, e entrou em um período de sono invernal, freando o crescimento e o emprego.

    Agora que muito timidamente começam a surgir os sintomas do descongelamento, o principal é estabelecer o legado de tal glaciação econômica. Essa herança tem três grandes componentes: um poder financeiro incontrolável, um modelo social ferido gravemente e um Estado sem poder tributário, que é o eixo do poder político. O primeiro dos três parece um paradoxo: tendo todos os problemas começado nocoração financeiro do mundo, Wall Street, e tendo contagiado o resto do sistema com abusos, irregularidades e roubos, quem primeiro sai, com mais poder do que nunca, com as mesmas formas de agir e com o orgulho de quem se considera superior, é o próprio sistema financeiro, e o faz com gestores parecidos (se não os mesmos) depois de ter usado para sua normalização mais e mais dinheiro público; ou seja, de todos os cidadãos.
    O modelo social não é idêntico no mundo todo. Em muitas partes, nem sequer existe. Nem mesmo na velha Europa, que é a zona onde mais se desenvolveu, é comum aos diferentes países. Mas havia sim um denominador que se repetia: o alto nível de proteção social, ajudas especiais aos setores mais vulneráveis da sociedade, uma posição beligerante dos poderes públicos sobre o emprego, uma presença determinante destes poderes na definição de uma autêntica política social, que não se deixava ao arbítrio do mercado, e um papel crucial dos interlocutores sociais. Durante essa crise, tudo isso foi enfraquecido intencionalmente; primeiro, deslegitimando (contribui para a ineficácia, tira potencial de crescimento, gerou privilégios) e, a seguir, cortando as vias de financiamento, tornando mais frágil.
    E aqui chegamos ao último componente da herança da crise, a verdadeira obsessão de López Garrido nesse livro e em seus artigos na imprensa, o núcleo duro de seu pensamento: a destruição do sistema fiscal através da redução de impostos, a sonegação fiscal, a evasão fiscal legal, a multiplicação dos paraísos fiscais, a aceitação de uma taxação mínima a muitas multinacionais, em uma espécie dedumping fiscal sistemático. Para o autor desse texto, foram sendo substituídos os impostos (que são pagos segundo o poder aquisitivo e a propriedade dos contribuintes, e que seriam devolvidos em forma de contrapartidas) por dívida pública (que afeta todos os cidadãos e se devolve a quem empresta o dinheiro: os bancos). Isso ativou o mecanismo pelo qual essa crise, que começou sendo do capitalismo, acabou se tornado uma crise da dívida (o outro mecanismo é a socialização das perdas, de modo que a gigantesca dívida privada, o “ópio das classes médias”, passou a ser dívida pública).
    O outro ponto incisivo do autor é o papel da Europa nesse período, em especial em relação aos EUA. López Garrido analisa como as dificuldades econômicas atingiram a União Europeia e o bloco não foi capaz de acelerar os tempos por falta de vontade política, e porque nem todos os países se saíram tão mal, porque alguns eram credores (os mais fortes, com a Alemanha à frente) e outros eram devedores (os países do sul).
    A austeridade tem sido uma política que expressa macroeconomicamente a luta de classes que, como disse Warren Buffet, está sendo ganha de goleada pelos seus, ou seja, os mais poderosos. O principal papel dos intelectuais e analistas é buscar os responsáveis pelo ocorrido e desmascará-los, porque, se não, além de cornos, espancados: os cidadãos, além de serem os grandes pagadores dos abusos provenientes das instituições financeiras e de outros centros de poder, serão os culpados por “terem vivido acima de suas possibilidades”. Um duplo saque.
    La edad de hielo (A Idade do Gelo). Diego López Garrido. RBA. Barcelona, 2014. 447 páginas.