É um milagre que A Última Ceia, de Leonardo da
Vinci, pintada entre 1494 e 1498, tenha resistido à pátina dos séculos. O
imenso afresco de 4,6 metros por 8,8 metros, encomendado por Ludovico Sforza, o
duque milanês amante das artes, sobreviveu ao frágil conjunto de técnicas com
que foi pintado (a têmpera, mistura de pigmentos solúveis em água com gema de
ovos; e óleo em parede) e ao bombardeio de aviões britânicos em agosto de 1943,
durante a II Guerra Mundial. Salvou-se ainda dos ataques de tropas de Napoleão
Bonaparte que, em 1796, fizeram do refeitório do convento de Santa Maria delle
Grazie, a pousada da obra-prima, um arsenal de guerra e de necessidades
fisiológicas. Houve também os maus-tratos da umidade, a migração de sais do
reboco para a superfície e sucessivas restaurações irresponsáveis. E, mesmo
assim, o trabalho manteve-se vivo, no qual a “sensação do movimento
humano fica evidente nos gestos de cada apóstolo, bem como na notória
habilidade em revelar os movimentos da alma — as emoções — através dos
movimentos dos corpos”, segundo Walter Isaacson, autor da mais completa
biografia do gênio do Renascimento.
Aparentemente invencível, o desenho perdeu cores, teve suas fragilidades
expostas — condição que não retirou da cena bíblica, a derradeira refeição de
Jesus ao lado de seus apóstolos, antes da crucificação, já sabendo da traição
de Judas, o título de um dos cumes míticos da civilização ocidental. Sempre foi
difícil, aliás, a visitação do painel na igreja de Milão, com horários
restritos e longas temporadas de fechamento. Com a pandemia, é claro, o
isolamento foi definitivo — e ainda que a humanidade tenha sido subtraída da
magia dos sfumatos que borram os contornos e da precisão da perspectiva, um
prodígio das artes e das ciências, ao menos assegurou-se uma saudável reclusão
do tesouro. Na quarentena, A Última Ceia está bem cuidada.
E o mais importante: nunca antes como agora ela poderá ser apreciada nos
detalhes, em zoom — aquele antigo, o da aproximação, e não o das
videoconferências. O projeto Google Arts and Culture em parceria com a Royal
Academy of Arts de Londres acaba de publicar na internet uma versão
digitalizada, em altíssima definição, com mais de 1 bilhão de pixels, da
clássica imagem. Usou-se, em nome da qualidade, uma cópia feita por discípulos
do ateliê de Da Vinci, Giampietrino e Giovanni Antonio Boltraffio, que
trabalharam com óleo sobre tela, material e plataforma mais duradouros — os
acadêmicos e especialistas em restauro usaram esse carbono, fidelíssimo, para
estudos aprofundados da criação do gênio toscano e para recentes iniciativas de
recuperação.
A possibilidade de ver de perto, bem de perto, como se a partir da imagem aérea
de um campo de futebol desse para levar os olhos a um fiapo da grama, entrega
segredos interessantes — além da revelação dos pés de Cristo, cobertos por uma
porta em Milão (veja no quadro ao lado). “Nota-se, muito claramente, na tela,
as sucessivas camadas de reintegração”, diz Hernando Freire, conservador e
restaurador, sócio-proprietário do Ateliê Arte e Restauração, de São Paulo.
Freire identifica, com a visão microscópica oferecida on-line, ao comum dos
mortais, um recurso conhecido como tratteggio — método pelo qual se cobrem as
lacunas mediante finos traços que se justapõem e que se ajustam, em espessura e
cores, ao original. Do casamento da arte com a tecnologia, enfim, brota um
extraordinário passeio pela ação dos séculos, travessia que fez crescer a
beleza e a magia da composição de Leonardo da Vinci, atalho para uma impressão
que se adéqua perfeitamente aos dias de hoje, de afastamento. “Precisamos
respeitar o tempo”, diz Freire. Eis um bom conselho, e que A Última Ceia traduz
à perfeição.
Por Fábio Altman, na Revista Veja
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