Consta no livro Como as nações fracassam, de Daron
Acemoglu e James Robinson, uma comparação entre as cidades gêmeas de Nogales:
uma no Arizona, Estados Unidos, outra em Sonora, México.
O retrato das duas cidades separadas apenas pela fronteira já virou um novo clássico do pensamento político. Aos que ainda não conhecem, faço uma breve síntese.
Na obra, os autores questionam por que cidades tão próximas – e com tanto em comum em matéria de clima, perfil populacional, cultura, ancestrais e história (até 1853 ambas faziam parte do mesmo país, o México) – apresentariam, atualmente, tantas características diferentes?
Os habitantes de Nogales, Arizona, têm renda anual média de cerca de 30 mil dólares, o triplo daqueles da cidade irmã, e as condições de vida, incluindo segurança, infraestrutura, acesso a serviços de saúde e expectativa de vida, são muito superiores em relação a Nogales, Sonora.
As duas cidades fronteiriças são utilizadas pelos autores para defender a tese principal do livro: as instituições políticas e econômicas fariam a sorte de uma e outra Nogales. Seriam elas a “principal causa das diferenças de nível de prosperidade econômica de um lado e de outro da fronteira”. Instituições de caráter inclusivo promoveriam democracia, integridade e desenvolvimento, enquanto instituições de caráter extrativista gerariam autoritarismo, corrupção e pobreza.
O livro não está isento de algumas teses questionáveis, como a avaliação positiva sobre o governo federal sob o Partido dos Trabalhadores, mas ressalva-se que, em 2012, as contradições e os problemas da época ainda não tinham vindo totalmente à tona, principalmente para estrangeiros. Cabe também questionamento a avaliação, pelo menos ainda não confirmada pelos fatos, de que o potencial de crescimento da China seria limitado pela falta de abertura democrática daquele país.
Pois bem, servindo-me do exemplo, cabe a pergunta natural decorrente: No Brasil, em qual Nogales estamos e para qual Nogales estamos indo?
Se essa pergunta fosse feita entre 2014 e 2018, eu diria que a Operação Lava Jato representava a afirmação do império da lei e a esperança de que a corrupção desenfreada, característica das instituições extrativistas, tinha seus dias contados. E não só pelos processos e condenações efetivas.
As mudanças mais gerais promovidas pelo Supremo Tribunal Federal, como a execução em segunda instância, a limitação do foro privilegiado e a vedação das doações eleitorais por corporações, bem como toda a mobilização cívica contra a corrupção, sugeriam um cenário promissor. Milhões de brasileiros foram às ruas reclamando maior integridade do governo, o que não é trivial.
Atualmente, não posso dizer com certeza para onde estamos indo, mas não parece ser para a Nogales do Arizona.
A energia cívica das grandes manifestações de 2013, 2015 e 2016 parece ter se dissipado ou estar latente. O governo que assumiu em 2016 realizou algumas reformas relevantes, como a nova lei das estatais, mas posteriormente não conseguiu desvencilhar-se de pautas negativas geradas por escândalos de corrupção. O governo eleito em 2018 gerou muitas expectativas, promoveu a reforma da Previdência e reduziu a criminalidade violenta no primeiro ano, mas, atualmente, há sérias dúvidas acerca de sua capacidade ou mesmo vontade para promover outras reformas.
Como se não bastasse, vivemos um contexto de extremada polarização política, fomentada por muitos, que compromete nossa capacidade de diálogo e de tolerância com as divergências, essenciais para a democracia. A política atual não parece ser a do debate das ideias, mas sim a do embate de facções. Até mesmo o combate à pandemia foi afetado pela polarização.
É necessário canalizar a energia cívica desse passado recente e retomar a pauta das grandes reformas. Elas não precisam ser feitas necessariamente através de emendas constitucionais. Mudanças relevantes podem ser feitas mediante alteração da legislação ordinária ou até mesmo por atos emanados do Poder Executivo.
Reformas que busquem a eficiência do serviço público, sem vilanizar o servidor; reformas que protejam as instituições e a administração pública do patrimonialismo e do loteamento político; reformas que simplifiquem o sistema tributário; reformas que modernizem a educação pública e o serviço de saúde; reformas que foquem na redução da violência e no combate à corrupção e ao crime organizado. É longa a lista, mas acredito que até a reforma política, embora mais difícil, deva igualmente ser encarada.
A pandemia do novo coronavírus, embora seja uma tragédia sem precedentes, com perdas de vidas, de empregos e de renda, tem o potencial de promover a união e a soma de forças em busca da reconstrução do país em torno da agenda perdida das reformas.
Para tanto, temos que deixar de lado nossas diferenças e trabalhar com nossas convergências. Lembro sempre do discurso de Abraham Lincoln na inauguração de seu segundo mandato presidencial. Em meio a um cenário de devastação e divisão provocadas pela Guerra Civil, o presidente vitorioso deixou de lado o ressentimento para anunciar a reconstrução do país, nas palavras dele, “sem malícia contra ninguém, com caridade para todos”.
Infelizmente, no Brasil atual, com a pauta política dominada pelo conflito, de todos contra todos, com rompantes autoritários, pendências criminais pretéritas e sem clareza de liderança, Nogales, Arizona, está bem distante e há algum risco de deixarmos mesmo Nogales, Sonora, com destino a locais piores.
Há tempo para correção de rumo mesmo sob o governo atual, desde que haja, evidentemente, vontade política.
O segundo semestre deste ano, que ora se inicia, será um grande teste pelas boas oportunidades que oferece. Por exemplo, o ímpeto da agenda anticorrupção pode ser facilmente retomado com a aprovação, para processos futuros e pendentes, da emenda constitucional que restabelece execução da condenação criminal a partir do julgamento em segunda instância. A responsabilidade é do Congresso e do Poder Executivo, considerando a influência deste naquele. A partir dessa aprovação, outras pautas reformistas, como as apontadas acima, podem se seguir facilmente com o incremento progressivo do capital político das instituições envolvidas, facilitando cada passo adiante. A reconstrução passa pelo fortalecimento das instituições, pela redução da polarização e pela reafirmação da democracia e do império da lei. Serão postas à prova nossa vontade e nossa capacidade de retomar os rumos corretos. E você, para qual Nogales pretende ir ou em qual pretende estar?
PS: Muitos gostaram da coluna anterior, alguns outros, não. Um procurador do TCU entendeu que eu não posso cobrar, durante o período de quarentena imposta por ter deixado o cargo de ministro, para escrever artigos, mesmo tendo a atividade sido autorizada prévia e expressamente pela Comissão de Ética da Presidência da República. Enquanto isso não é resolvido – e longe de mim querer encrenca com o TCU – pedi aos editores a suspensão dos pagamentos (ainda não havia recebido nenhum). Então, saiba o leitor que está lendo uma coluna escrita “pro bono”. Posso até parafrasear o Chico Buarque e aconselhar o leitor: “leia esta coluna que eu lhe dou de graça”.
Por Sergio Moro, na Revista Crusoé
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