THE OBSERVER “Eu e a biosfera estamos no último 1%
de nossas vidas”, afirma o cientista James Lovelock, 101 anos
James Lovelock é mais conhecido como o pai da
Teoria de Gaia, a ideia revolucionária de que a vida na Terra é uma comunidade
autorregulada de organismos que interagem entre si e com seu entorno. Cientista
independente, que evita o establishment acadêmico, ele foi descrito
alternadamente como pioneiro, profeta do apocalipse, filósofo ambiental e Gandalf.
Neste mês, ele completa 101 anos, mas dá poucos sinais de reduzir o ritmo de
sua produção intelectual. Uma versão em brochura de seu último livro, Novacene,
será lançada em breve, e no momento ele trabalha numa sequência.
Catorze anos atrás, o senhor predisse que o clima extremo se tornaria a norma e
o mundo veria mais desastres em 2020. O senhor se sente justificado como
cientista, ou decepcionado como ser humano, por suas palavras apocalípticas
terem se mostrado proféticas?Tudo é muito óbvio, na realidade, mas você só
percebe que entendeu as coisas direito muito tempo depois, porque pode surgir
uma surpresa. Além disso, não sou um cientista de verdade. Sou um inventor, ou
um mecânico. É outra coisa. A Teoria de Gaia é simplesmente engenharia em
palavras simples, de fato. Quero dizer, você tem essa bola rotatória ideal no
espaço, iluminada por uma bela estrela comum. Até agora, o sistema manteve as
coisas em ordem na Terra, adequadas à vida, essa é a essência de Gaia. É
um trabalho de engenharia, e foi bem-feito. Mas eu diria que a
biosfera e eu estamos no último 1% de nossas vidas.
O vírus faz parte da autorregulação de Gaia?Definitivamente, é uma questão de
fontes e ralos. A fonte é a multiplicação do vírus e o ralo é qualquer coisa
que possamos fazer para nos livrar dele, o que no momento não é muito eficaz.
Tudo isso faz parte da evolução como Darwin a entendeu. Não haverá uma nova
espécie florescendo, a menos que haja uma fonte de alimento. Em certo sentido é
nisso que estamos nos tornando. Somos o alimento. Eu poderia facilmente fazer
um modelo e demonstrar que, conforme a população humana no planeta aumentou sem
parar, a probabilidade de surgir um vírus que a reduziria era bastante alta.
Não somos exatamente um animal desejável para ser solto no planeta em número
ilimitado. Malthus tinha razão. No tempo dele, quando a população humana era
muito menor e distribuída menos densamente pelo planeta, não acho que a
Covid-19 teria chance.
Como o lockdown afeta esse prognóstico?Depois do vírus, suspeito que uma
mudança muito ampla será perceptível. Acho que os seres humanos vão descobrir
todo tipo de coisas que podem fazer que não faziam antes. Talvez elas percebam
que engordar não é uma ideia muito boa, que grande parte do sofrimento que elas
têm na meia-idade e mais tarde na vida é causado simplesmente por comer demais
do tipo errado de alimento. Eu sempre acho fascinante como as estatísticas
ilustram que a saúde do país estava extremamente melhor no fim da Segunda
Guerra Mundial do que no início.
O senhor revelou que estamos em um sistema fechado e muito precário, que
precisamos estabilizar. Acha que os indivíduos estão dispostos a admitir
isso?Eu senti durante algum tempo que as universidades estão ficando
perigosamente parecidas com a igreja no seu início. Elas têm dezenas de seitas
diferentes e se orgulham se você pertencer a uma delas: se você for um químico,
muitas vezes não sabe nada de biologia, e assim por diante. É por isso que a
ciência universitária comum não é realmente útil, pois o departamento que
examina as algas marinhas não seria o mesmo que examina o iodeto de metila. É
uma divisão em pedacinhos. Está na hora de as universidades passarem por uma
revolução e terem muito mais pensamento em comum. É incrível quanta objeção há
a Gaia. Estou me perguntando até que ponto você pode atribuir isso às
indústrias de carvão e petróleo, que lutaram contra qualquer tipo de
mensagem que fosse ruim para elas.
Se a Teoria de Gaia fosse mais bem compreendida, poderia ser a base para um credo
que preenchesse as lacunas que a religião costumava ocupar em termos de viver
bem, viver para os outros, viver para as futuras gerações?Acho que, de certa
maneira, você está certo. Ninguém compreende totalmente Gaia, e isso me inclui,
mas é algo mais fácil de entender que Deus e a religião. Você precisa
considerar esses como verdades absolutas. Mas com Gaia você pode sair pelo
mundo e medir as coisas.
O senhor é religioso?Não, eu fui criado como quaker. Fui doutrinado com a ideia
de que Deus é uma vozinha imóvel dentro de você, e não um velho senhor
misterioso lá fora no universo. A intuição vem daquela voz interna, e é um
grande dom para os inventores.
O senhor acredita que a humanidade pode inventar algo para estabilizar o
clima?Bem, é melhor termos, ou estamos condenados, mas temos feito o oposto ao
queimar combustíveis fósseis. Sempre defendi o nuclear como uma maneira boa,
barata e sensata de obter energia, especialmente agora que o tório está
disponível como combustível. Mas muita gente o odeia. Eu gosto da sugestão de
Edward Teller de um guarda-sol em uma órbita heliocêntrica que difundiria um
porcentual de luz solar da Terra. Você quase não perceberia que estava lá. Se
pudesse ser feito, e eu acho que um grande programa da Nasa quase certamente
conseguiria fazê-lo, poderia salvar a nossa pele. Parece uma proposta mais
revoltante e difícil que outros projetos de geoengenharia, como colocar enxofre
na estratosfera, mas eu o prefiro. Poderia ser feito de modo que, se alguma
coisa desse errado, ele se fecharia automaticamente. Mas, de modo geral, não
acho que devamos começar a mexer com o sistema de Gaia, enquanto não soubermos
bem mais sobre ele. Está começando a parecer que a energia renovável – eólica e
solar –, se usada adequadamente, pode ser a resposta para os problemas de
energia da humanidade.
O senhor fará 101 anos em 26 de julho. Como vai marcar seu aniversário?Não será
nada parecido com a festa do ano passado, ou iríamos à falência. Mas vamos
comemorar. Se o tempo estiver bom, faremos uma caminhada. Minha mulher, Sandy,
e eu andamos de 3 a 5 quilômetros quase todos os dias, ao longo da costa ou
subindo os morros. Fui um dos felizardos que gostaram do isolamento porque há
menos gente e não há ônibus estacionados. E talvez eu trabalhe em meu próximo
livro, no qual estou mergulhado. É sobre a evolução, particularmente a evolução
dos seres humanos. Os humanos evoluem rapidamente. Nós passamos de um animal
tribal para um animal urbano. Observe a maioria dos insetos e eles também
percorreram esse caminho. Há muito a escrever sobre isso.
Por Jonathan Watts, na Revista
Carta Capital
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