“A resposta dos governos à Covid-19 representa a
maior falha das democracias ocidentais desde a Segunda Guerra Mundial”,
escreveu Richard Horton, editor-chefe da revista científica “The Lancet”, em
livro recém-lançado
A revista da Associação Médica Americana (Jama) veiculou no final de junho um
editorial sobre o desafio inédito que a pandemia representa para as publicações
científicas. De janeiro ao final de maio, chegaram à Jama mais de 11 mil
manuscritos originais. Foram 4 mil no mesmo período de 2019. Virtualmente todo
o aumento é atribuído à Covid-19. Para avaliar as novas pesquisas, a revista
criou um mecanismo de pareceres técnicos expressos, capaz de publicá-las em até
dez dias. “Nos manuscritos cujos resultados possam influenciar a prática
clínica ou representar interesse e preocupação ao público, porém, a revisão
externa por pares (incluindo um ou mais estatísticos) sempre é feita”, afirma o
editorial. “Embora a publicação rápida de informação clinicamente útil seja
importante numa pandemia, veicular resultados que não tenham validade pode
gerar danos.” O alvo implícito do editorial da Jama era uma concorrente, a
britânica The Lancet, primeira a publicar, na última semana de janeiro, os
cinco estudos chineses que dispararam, na comunidade científica, o alarme para
os riscos do novo coronavírus.
A Lancet também se tornou protagonista do maior escândalo científico da
pandemia até agora, num tema com mais relevância política que médica: a
cloroquina. Em 22 de maio, publicou um estudo que associava o uso da droga a
maior mortalidade. Havia falha nos dados — e a revista se viu obrigada a emitir
uma retratação dias depois (como o New England Journal of Medicine, que
publicara outra pesquisa com base em dados da mesma empresa).
Em 1998, Horton publicou a pesquisa falsa de um ex-colega associando um tipo de
vacina ao autismo. Daquela vez, a publicação provocou danos até hoje não
reparados, e a retratação levou mais de dez anos. Desta vez, Horton foi mais
rápido. Alegou ter sido vítima de “fraude monumental” e, numa entrevista à
New Yorker, afirmou: “Todos cometemos um erro coletivo: acreditar naquilo que
nos diziam”.
Os erros de Horton não devem obscurecer seus acertos. Conhecido pelo caráter
político que imprimiu às páginas da Lancet, ele não tem economizado tinta nem
bits para atacar a postura pusilânime de Boris Johnson, Donald Trump ou Jair
Bolsonaro diante do vírus. “A resposta dos governos à Covid-19 representa a
maior falha das democracias ocidentais desde a Segunda Guerra Mundial”,
escreveu no recém-lançado The Covid-19 catastrophe (A catástrofe da Covid-19).
“A inação levou à morte evitável de milhares de cidadãos.” Os dois principais
alvos do livro são Trump (acusado de “crimes contra a humanidade” por suspender
pagamentos à Organização Mundial da Saúde) e Johnson (visto como covarde e
mendaz na defesa da estratégia errada contra o vírus). Horton critica ainda a
hesitação da China no início da pandemia. Elogia, em contrapartida, os
cientistas chineses pela ação “decisiva” para proteger a população. Não poupa
quem, no Ocidente, sustentou as políticas trágicas de governos incompetentes:
“Vimos o conluio bizarro entre cientistas e políticos, de modo que desacredita
ambos”, disse à New Yorker.
Horton formula corretamente os principais dilemas levantados pela pandemia.
Como conciliar a vigilância necessária para preservar a saúde aos direitos
individuais? Como impor ao nacionalismo tacanho uma ação global contra vírus
que não conhecem fronteiras nem ideologia? Como conferir o protagonismo das
decisões aos detentores do conhecimento, informados pela ciência? Como manter a
indignação necessária diante de governos ineptos, corrompidos por interesses
espúrios? “Foi necessário um vírus para nos conectar na vida e na morte.
Entendemos agora, acredito, nossa extraordinária interdependência e unidade
como espécie”, disse Horton. “Apesar disso, nosso mundo está organizado e
ordenado pela separação, pela divisão — países e continentes, línguas e fés,
sistemas políticos e preferências ideológicas.” Pena que o primeiro a misturar
ciência e ideologia seja ele próprio.
THE COVID-19 CATASTROPHE
Richard Horton, Polity Books
2020 | 140 páginas | US$ 15
Por Helio Gurovitz, na Revista Época
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