domingo, 12 de julho de 2020

Novos tempos - um Odorico em pleno século XXI



OS FEITOS E MALFEITOS DE FERNANDO GOMES, PREFEITO DE ITABUNA, NA BAHIA, QUE ANUNCIOU A REABERTURA DO COMERCIO “MORRA QUEM MORRER"

O ano de 2021 está cada dia mais próximo, mas Itabuna, cidade de pouco mais de 200 mil habitantes no sul da Bahia, tem como prefeito uma mistura anacrônica de Sinhozinho Malta e Odorico Paraguaçu, clássicos personagens da televisão brasileira dos anos 1970 e 1980. Sempre trajando pulseira, colar e relógio de ouro, Fernando Gomes, aos 81 anos, é um coronel sem papas na língua, de fala enrolada e jeito bruto. Recentemente, declarou que reabriria o comércio local “morra quem morrer”, em referência ao decreto de isolamento para conter a pandemia do novo coronavírus, que já matou quase 70 mil pessoas no país. A frase chocou pelo tom vil, constrangedor até mesmo para o infame prefeito de Sucupira, que nunca via problemas em pular “os entretanto” e partir para “os finalmente".

De máscara no queixo e tossindo, Gomes declarou no dia 30 de junho que a cidade voltaria a funcionar a qualquer custo. Na ocasião, ele anunciou o adiamento da reabertura, previsto inicialmente para in de julho, em razão da alta taxa de ocupação dos leitos de UTI no Hospital de Base. No entanto, disse que tudo voltaria ao normal no dia 9, a despeito dos mortos. Depois da péssima repercussão, o prefeito pediu desculpas, reafirmou que tem tratado a pandemia com o “máximo de rigor, lutando para salvar vidas’ e que sua declaração foi interpretada de modo “errado e sensacionalista". Itabuna é o quinto município da Bahia com mais casos da Covid-19. totalizando 3.191 infectados em 7 de julho. O município teve 95 mortes confirmadas pelo coronavírus e ocupa o quinto lugar na lista com maior número de casos ativos — 944.

ÉPOCA conversou com alguns habitantes de Itabuna para entender o comportamento do prefeito. No início da pandemia. Gomes até mesmo surpreendeu positivamente ao incentivar de maneira imediata as medidas de segurança e aparecer sempre em público usando máscara. No entanto, conforme as semanas e os meses transcorreram, o prefeito foi alvo de pressão de empresários locais, que pediam a reabertura — situação recorrente em praticamente todas as cidades do Brasil. Apesar de dizer que não disputará um sexto mandato neste ano, ou seja, estaria livre para governar sem pensar na próxima eleição. Gomes cedeu aos apelos.

Os moradores entrevistados por ÉPOCA falaram, em condição de anonimato, que a postura do prefeito fez com que o comércio local continuasse a funcionar de portas fechadas, a despeito do decreto de isolamento, e que nenhuma fiscalização fosse feita. Uma moradora contou que tentou chamar fiscais para denunciar uma festa que acontecia no terreno vizinho, mas foi ignorada.

Expoente de uma linhagem tradicional na região de Itabuna, Gomes seguiu a receita básica da profissão “político", intercalando mandatos de deputado federal com os de prefeito — período em que acumulou patrimônio de R$ 14 milhões, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Assumiu o município pela primeira vez ainda em 1977, durante o governo de Ernesto Geisel, na ditadura militar. A quinta vez foi em 2016. Tamanha competência em vencer pleitos não está associada a uma sólida formação, já que em Itabuna é um mistério a origem do diploma do prefeito — se é que ele existe. Amigos dizem que são muitos os feitos acadêmicos. Inimigos, que ele nem sequer concluiu o ensino médio. Em sua biografia na Câmara dos Deputados, Gomes consta como agropecuarista e empresário.

Os feitos de sua gestão são pitorescos. Já propôs dividir a Bahia para criar o estado de Santa Cruz e chegou a levar a ideia para o Congresso, sem sucesso. Em 1991, abriu a porta de sua casa para a revista Veja e exibiu sua piscina decorada com cascata artificial de 4 metros de altura. Na ocasião, foi descrito como o "marajá dos marajás" por receber seis vezes mais que o então governador da Bahia. Ali, deixou pistas sobre seu modo de lazer política: coronelismo e emprego de parentes na prefeitura.

Moradores contaram a ÉPOCA que, nas eleições municipais de 2016, Gomes distribuiu gentilezas, enviando ônibus para buscar eleitores na zona rural da cidade. Há, também, a lembrança de distribuição de pequenos agrados, como botijões de gás. Quanto ao emprego de parentes. Gomes não parece saber que nepotismo é vedado pela Constituição. Sua esposa é Sandra Neilma Ramos Costa, secretária municipal de Assistência Social.

No Tribunal de Justiça da Bahia, empilham-se processos contra o prefeito, muitos por improbidade administrativa. Em 2016, chegou a ser impedido de tomar posse por suas contas terem sido reprovadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que apontou que ele não entregou obras no município durante sua última gestão. O caso chegou ao Tribunal Regional Eleitoral da Bahia, que deferiu a candidatura de Gomes por não identificar dolo nem comprovação de improbidade.

A gestão de Gomes foi alçada ao escrutínio nacional no final da década de 1990, quando o dono de um jornal de Itabuna, Manoel Leal de Oliveira, foi assassinado com seis tiros na frente de casa, depois de publicar uma série de reportagens que apontavam supostos atos ilícitos na prefeitura. Oliveira sustentava que o prefeito pagava diárias irregulares ao chefe da policia local, Gilson Prata, para perseguir adversários. As denúncias nunca foram comprovadas, mas o assessor de Prata, o policial Mozart Costa Brasil, foi condenado a 18 anos de cadeia em 2003 pelo assassinato do jornalista. Gomes não chegou a ser investigado.

O prefeito foi procurado por ÉPOCA para comentar as declarações contidas na reportagem, mas não respondeu ao contato. Em Itabuna, a pandemia segue seu curso, arrastando vidas, conforme prenuncia Gomes, ele mesmo associado a um grupo de risco, o dos idosos. Uma das últimas vitimas foi a técnica de enfermagem Patrícia da Silva Oliveira, de 49 anos, que atuava na linha de frente do Hospital de Base Luiz Eduardo Magalhães e morreu na terça-feira 7. Oliveira deixou um filho de 14 anos. Em nota de pesar, a prefeitura desejou "que Deus conforte a todos nesse momento”.


Por Alice Cravo, na Revista Época





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