Estudos recentes indicam que elas não costumam
transmitir o agente e podem influenciar no retorno das aulas presenciais nas
escolasTodo pai e toda mãe sabem o que acontece quando um colega de escola do
filho está com gripe. Uma criança transmite para a outra, e não demora até que
os próprios pais, e às vezes até os avós, estejam espirrando, com o corpo
dolorido e mal-estar. Era de esperar um roteiro semelhante com o sars-CoV-2, do
novo coronavírus. Afinal, assim como o influenza, é um agente respiratório.
Mas, surpreendentemente, não é o que vem ocorrendo.
Estudos recentes indicam que as crianças não só se infectam e adoecem menos,
como também transmitem menos o vírus. Uma publicação da Academia Americana de
Pediatria traz levantamentos que comprovam isso. Na China, das 68 crianças com
Covid-19 internadas no Hospital Infantil de Qingdao, entre janeiro e fevereiro,
65 (ou 95,5%) tinham proximidade com adultos que já estavam infectados
anteriormente. Outro caso relatado pela publicação científica foi o de um
menino de 9 anos, na França, com coinfecção por influenza A e sars-CoV-2:
apesar de ter tido contato com mais de 80 colegas de escola, ninguém foi
infectado.
Mais uma situação em estudo ocorreu em Nova Gales do Sul, na Austrália, onde
nove estudantes e nove funcionários infectados em 15 escolas tiveram contato
direto com um total de 735 estudantes e outros 128 funcionários. Apenas duas
infecções secundárias foram identificadas.
A consultora Mariana Mantovano, de 33 anos, vivenciou essa surpresa dentro da
própria casa. A filha, Maria Emília, de 4 anos, teve um mal-estar, foi para o
hospital, fez o exame para Covid-19 e o resultado foi positivo. Pai e mãe, que
apontam o elevador do prédio como o único lugar possível para a contaminação,
testaram negativo. “Mesmo isolada em casa, ela ficou doente, e a gente não
pegou. Foram poucas as vezes em que ela ficou doente, mas, sempre que teve
alguma coisa, todo mundo pegou. Por isso, para mim, parece razoável que as
crianças não transmitam mesmo.”
A Covid-19 em menores de 10 anos é considerada rara. Nos adolescentes, foi
detectada com um pouco mais de frequência, mas ainda de forma desproporcional
aos adultos. No Brasil, dados de óbitos por síndrome respiratória aguda grave
(Srag), que têm notificação obrigatória embora apresentem atraso médio de 14
dias, mostram que apenas 0,7% das 68.842 mortes já confirmadas por Covid-19 são
de menores de 19 anos. O índice cai para 0,3% quando se trata de crianças de
menos de 5 anos, num total absoluto de 239 até 13 de julho.
“A primeira boa notícia é que a Covid-19 não acomete crianças com muita
gravidade, as hospitalizações e óbitos são extremamente raros. Mas sempre
quisemos saber o papel que teriam na cadeia de transmissão. Seriam importantes
vetores como ocorre com o vírus da gripe, influenza? Nas últimas semanas,
muitos estudos mostram que elas não desempenham papel importante na
transmissão, pelo contrário, transmitem menos”, afirmou o infectologista Renato
Kfouri, presidente do Departamento Científico de Imunizações da Sociedade
Brasileira de Pediatria. No entanto, ele pede cautela, porque os dados ainda
estão sendo gerados e é preciso ver o que acontece com o retorno às aulas na
Europa.
Os motivos para a baixa transmissão ainda não foram esclarecidos. Mas há
teorias. De acordo com Kfouri, a principal delas está relacionada aos chamados
receptores pulmonares, uma enzima que permitiria o acesso do patógeno às
células, num “mecanismo chave-fechadura”. Essas enzimas estariam em menor
quantidade no pulmão infantil, por isso o vírus teria muito mais dificuldade em
penetrar no organismo. E, como não infecta, também não pode ser transmitido.
Isso também explicaria a existência de manifestações não pulmonares da doença
nas crianças, como perda de olfato e diarreia. Embora nos adultos, além da
idade, as comorbidades que levam aos quadros mais graves da doença já tenham
sido bem identificadas, como diabetes, hipertensão e cardiopatias, entre as
crianças ainda não ficou claro por que algumas ficam doentes. Mas o presidente
do Departamento de Infectologia da Sociedade Brasileira de Pediatria, Marco
Aurélio Safadi, aponta que cardiopatias, quadros neurológicos, asma grave e
obesidade seriam complicadores.
As descobertas científicas podem ajudar políticas públicas e famílias a decidir
o melhor momento de mandar as crianças de volta às aulas. A produtora executiva
Paula Milet, de 34 anos, vive a angústia sobre mandar ou não o filho, Luigi, de
3, para a escola. A partir de agosto, ela vai precisar trabalhar
presencialmente em algumas ocasiões, e o marido, em intensa rotina de home
office, não pode assumir sozinho os cuidados com o pequeno. “Agora vem o dilema
de como vou fazer com meu filho. Estou apavorada. Não tenho vontade de voltar e
não acredito 100% em nada. E, se fico com medo de levar meu filho para a
creche, como pedir que minha funcionária pegue dois ônibus? Não faz sentido. Confesso
que, como mãe e cidadã, estou bem confusa”, afirmou.
Segundo Milet, se por um lado foi enriquecedor ficar pertinho de Luigi nos
últimos meses, por outro ela percebeu que o menino ficou muito agarrado, passou
a ter momentos de irritabilidade e regrediu em alguns pontos de seu desenvolvimento.
Para o pediatra Marco Aurélio Safadi, esses aspectos precisam ser considerados
e, nas cidades onde o número de casos está caindo, as aulas deveriam ser
retomadas lentamente. “Temos de olhar a situação com equilíbrio e sensatez.
Existe risco, óbvio, e, apesar de os desfechos graves serem raros, eles
ocorrem. Mas é preciso considerar também que privar as crianças da escola por
muito tempo traz danos. A própria influenza talvez seja, para elas, até igual
ou pior que a Covid-19. E a gente não paralisa as escolas.”
Por Constança Tatsch, na Revista
Época