Após ação de populistas de direita, Justiça determina remoção de ciclovias temporárias construídas para garantir distanciamento entre bicicletas em meio à pandemia. Decisão é baseada em argumento cínico, opina colunista.
Apesar de todas as
restrições, tristeza, medo, impactos econômicos, a pandemia de covid-19 havia
trazido uma mudança positiva para Berlim: foram demarcadas na cidade várias
ciclovias temporárias, como todos os ciclistas sonhavam: separadas das ruas e com
barreiras físicas para impedir automóveis de invadir esse espaço.
Construídas em velocidade surpreendente, as novas ciclovias visavam garantir o distanciamento necessário num momento em que mais e mais moradores usavam a bicicleta para se locomover, como forma de evitar o transporte público em meio à pandemia.
Mas não foi só distanciamento que elas garantiram. Construídas em ruas e avenidas movimentadas, essas ciclovias fizeram uma diferença enorme em relação à segurança para quem costuma se locomover de bicicleta por essas regiões. Apesar de as autoridades terem dito que a mudança seria temporária, muitos ciclistas tinham esperança que ela viesse para ficar.
Movida pela legenda populista de direita Alternativa para Alemanha (AfD) e apoiada pelo Partido Liberal Democrático (FDP) e pela União Democrata Cristã (CDU), da chanceler federal Angela Merkel, a ação contestava oito ciclovias construídas na cidade em plena pandemia. Legisladores estaduais da sigla alegavam que a construção era ilegal por não comprovar a existência de um risco que a tornasse necessária no local.
A legislação alemã prevê que toda a regulamentação de trânsito tenha como objetivo a boa fluência do tráfego para todos os usuários, incluindo ciclistas. Mas se o governo decide construir uma ciclovia numa rua é preciso comprovar a sua necessidade, ou seja, que pedalar por ali é perigoso. Assim, na prática, a igualdade entre todos os envolvidos é uma mera utopia. Carros continuam tendo prioridade.
Com base nesta legislação, o tribunal concluiu que o governo de Berlim não justificou a existência deste risco, e por isso a construção foi ilegal. Apenas a argumentação de que as ciclovias eram necessárias para garantir o distanciamento exigido na pandemia não bastava para comprovar o risco. Sendo assim, a corte determinou a remoção das ciclovias. A cidade afirma que irá recorrer da decisão.
Para mim, o argumento dos populistas de direita que foi acatado pela Justiça parece fantasioso. Quem anda de bicicleta por Berlim sabe muito bem os riscos de pedalar na beira de ruas, principalmente nas avenidas movimentadas. Foram justamente nelas que foram construídas as ciclovias temporárias, que melhoram e muito o trânsito para os ciclistas – além de mais fluído, ficou mais seguro devido às barreiras que impedem carros de invadir esse espaço e também estacionar ali, bloqueando o trânsito de bicicletas.
A construção das ciclovias não agradou a muitos motoristas, que perderam um pouco do espaço. Muitos reclamavam que a mudança gerou congestionamento, mas quase nenhum deles se questiona se são realmente as bicicletas que ocupam um enorme espaço e bloqueiam as ruas, ou seriam os automóveis que estão cada vez maiores e em maior número.
Para mim, a decisão da Justiça é enorme retrocesso para aqueles que desejam uma cidade do futuro e com menos poluição. Devido a décadas de políticas que priorizavam carros em detrimento dos outros envolvidos no trânsito, Berlim ainda é uma cidade regida por automóveis.
Em algumas regiões, é horrível andar de bicicleta, pois muitos motoristas não respeitam ciclistas e ignoram as leis de trânsito. Já passei por vários episódios de estar andando em ruas que são mão dupla para ciclistas e mão única para carros e ser deliberadamente quase atropelada ou xingada por motoristas que não viram a placa. Somente neste ano, 14 ciclistas já morreram em acidentes de trânsito na cidade.
Já passou da hora de ser feita uma divisão mais justa dos espaços urbanos entre os diferentes tipos de transporte, mas para isso é óbvio que aqueles que tiveram preferência até hoje precisarão ceder um pouco. E aí está a dificuldade de se promover qualquer mudança. Quem tem privilégios e não quer perdê-los e costuma culpar os menores pelos problemas. Isso sem mencionar a poluição gerada por motores movidos a combustíveis fósseis e seu impacto para o aquecimento global.
Só com uma divisão mais
igualitária do espaço urbano Berlim poderá se tornar realmente uma cidade do
futuro e uma cidade verde.
Por Clarissa Neher, na DW Brasil
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