Referência em cirurgia intestinal no país, a médica
de 88 anos foi infectada pelo novo coronavírus e passou cinquenta dias na UTI
Aos 88 anos, a cirurgiã Angelita Harb-Gama
permaneceu intubada na UTI do Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, por
cinquenta dias para tratar de uma infecção gravíssima causada pelo novo
coronavírus. Poucas semanas depois da alta, ela já havia retornado às longas
jornadas no consultório e às operações de alta complexidade no trato
intestinal, sua especialidade. Formada pela Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo na década de 60, ela chegou à capital paulista aos 7
anos, com a família, vinda da Ilha do Marajó. Por ser mulher, em um tempo em
que o preconceito circulava sem recato, ela enfrentou inúmeras resistências
para seguir a carreira, tanto em casa quanto com professores e colegas. A
dedicação e a paixão pela profissão a transformaram na primeira professora
titular em cirurgia da instituição e na maior referência em sua área no país.
Otimista e objetiva, Angelita diz que a Covid-19 lhe fez ainda mais forte e
mais alegre. “Trabalho é a minha condição de vida. Conheço mais a anatomia
de uma barriga do que minhas próprias gavetas”, brinca. Ela falou a VEJA
pessoalmente, na sala de seu amplo apartamento em São Paulo. Elegantíssima e
vaidosa, usava um vestido manequim 38, joias e meias de seda francesa.
A senhora tem ideia de como se infectou? Acredito que tenha sido em
Jerusalém, durante um congresso médico internacional. O evento foi grande, com
2.000 pessoas, repleto de profissionais chineses e coreanos. Estávamos nos
últimos dias de fevereiro, ainda não se sabia da dimensão do vírus,
pouquíssimos usavam máscaras. Por volta de 10 de março, já no Brasil, comecei a
sentir dor no corpo, tosse e uma febrícula. A tosse piorou e desconfiei. Em 18
de março estava internada. Quando vi a tomografia com o estado dos meus
pulmões, logo intuí: tenho de ser intubada. E assim foi. Meu marido (Joaquim
Gama), também cirurgião e que estava comigo no congresso, testou positivo
igualmente. Mas ele nunca teve nenhum sintoma da doença.
Como médica, a senhora, suponho, tinha plena consciência da gravidade da
situação. Teve medo de morrer? Antes de dormir com os medicamentos da
intubação cheguei a ouvir uma frase no quarto: “Não sei se a doutora escapará
dessa”. Achei, sim, que poderia morrer. Nesse momento, é impressionante: a vida
toda passa na sua mente em segundos. Lembrei de muita coisa. Eu me dei conta de
que havia chegado a uma idade boa e tinha vivido bastante, com muita produção e
prazer. Morrer seria natural, claro. Mas, se pudesse esperar mais um pouquinho,
seria melhor, foi o que pensei. Não queria morrer. Acho a vida muito gostosa.
Quando acordei, quase dois meses depois e vi todos a minha volta, senti imensa
alegria. Saí dessa!
Teve alguma sequela, depois de ser submetida a um procedimento drástico, por um
tempo além do comum? A intubação é agressiva, mas, bem-feita, não provoca
sequela alguma. A gente não vê nada, não sente nada. Acorda como se nada
tivesse acontecido. Esse vírus é mortal, mas não para todo mundo. Se o
infectado tiver problema pulmonar em decorrência da doença e for atendido na
hora certa, dificilmente morrerá. O procedimento certo é intubar. A população
tem de entender e perder o medo disso. O tempo certo é quanto antes. Só me
tiraram da intubação quando meus pulmões se restabeleceram por completo, e foi
o que me salvou.
Recebeu algum medicamento? Meu infectologista não quis dar cloroquina por
se tratar de um remédio ainda sem comprovação necessária. Só tomei antibióticos
durante a intubação. Muitos hospitais estão testando medicamentos, o que é excelente,
mas a solução será a vacina. Aposto na inglesa, mas não descarto as outras de
jeito algum, nem mesmo a russa. Vacina é vacina, utiliza-se anticorpos. É
extremamente difícil desenvolver um imunizante vagabundo.
No fim de março, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, deu os
pêsames a sua família, ao vivo, durante uma coletiva de imprensa. O que a
senhora achou dessa postura? Ele não fez por mal. O Mandetta havia ligado
para meu marido e soube que eu estava muito mal. Não me importei. Cuidei de
muita gente da família dele.
A experiência com uma doença grave mudou alguma coisa na sua vida? Quando
se sai de um estado grave de saúde a gente passa a ter consciência de que está
vivo. Não desejo a ninguém uma experiência drástica dessas, mas todo mundo
deveria passar por uma situação de risco para valorizar uma vida sem riscos.
Acho que saí ainda mais forte e alegre da Covid-19. A minha expectativa de vida
sob ponto estatístico não é mais longa. Voltei ao meu cotidiano extremamente
ativa. Hoje faço duas cirurgias semanais, em vez de quatro, apenas porque o
número de pacientes diminuiu por causa da pandemia. Trabalho é a
minha condição de vida. Conheço mais a anatomia de uma barriga do que minhas
próprias gavetas. Mas adoro uma pizza com chopinho. Uma carne ou camarão com
vinho. Amo empadinha de palmito, pães. Não tenho facilidade para engordar. Só
não estou indo ao cinema, ao teatro e aos concertos de música clássica, que eu
adoro, porque ainda estão fechados.
Mas já há alguma retomada das atividades. Como avalia as decisões das
autoridades brasileiras em relação à quarentena? Mesmo com o isolamento
obrigatório os supermercados ficaram lotados no Brasil. As pessoas têm de ter
mais consciência. Procurar horários alternativos para fazer as atividades fora
de casa, usar máscaras sempre, manter o distanciamento social. Atribuir a
responsabilidade de isolamento apenas ao Estado é muito delicado. É difícil
manter a quarentena por muito tempo. Se demorasse mais para flexibilizar, o que
seria da economia? Das grandes indústrias? Do pequeno comércio? O povo precisa
sair de casa para trabalhar. Muita gente perdeu o emprego e não está
encontrando outro. As pessoas têm de ter sua própria responsabilidade,
individualmente. Sempre digo que inteligência é capacidade de adaptação. Em
qualquer situação. A falha talvez tenha sido do presidente da República, ao
demorar para tomar medidas. Ele achava que se tratava de uma “gripezinha”. Um
governante não pode colocar em atos o que sente. Tem de fazer o que é bom para
o povo.
A senhora se especializou em uma época em que a medicina era formada por
homens, em sua maioria. Como lidou com isso? Venci as inúmeras barreiras
pela minha capacidade de estudo. O primeiro “não” que recebi foi do meu pai e
da minha mãe. Eles queriam que eu cursasse magistério, como minhas outras
irmãs. Meu pai chegou a me levar para o vestibular, mas quando viu o bolo de
gente que ia prestar o mesmo curso ele pensou que eu não entraria e se
tranquilizou. Passei em sétimo lugar, direto. Na residência, não queriam
aceitar a minha inscrição. Falavam para mim que eu iria me casar, ter filhos e
desistiria. Havia apenas oito vagas. Só não me proibiram porque eu tinha sido a
melhor aluna da graduação. Mais tarde, pedi uma bolsa para trabalhar no St
Mark’s Hospital, na Inglaterra, a maior referência em tratamento de aparelho
digestivo. Fui recusada por ser mulher. Disseram isso para mim textualmente.
Levaram dois anos para me aceitar, quando finalmente atentaram ao meu currículo
acadêmico, e me tornei a primeira mulher da instituição.
Mas a sua área continua sendo especialmente bastante masculina. A mulher é
excelente na cirurgia. Mas para vencer não basta ter habilidades na mesa de
operação. É preciso ter capacidade de convencer as pessoas de que se é um bom
profissional. Confiar em si mesmo. Falta muito, ainda, para muitas mulheres
terem consciência do valor que possuem, e vejo isso nitidamente em minha
equipe.
O que falta às profissionais do seu grupo de trabalho? Ter coragem
para admitir que são ótimas. Muitas delas escondem a capacitação. Atribuo esse
comportamento tímido, em boa parte, à criação familiar. Ainda hoje um casal
educa de forma diferente o filho homem. A mulher, lá no fundo, tem de
trabalhar, mas por hobby, e não mais do que isso. Claro que está mudando, há
avanços. Mas falta muito caminho ainda. Tenho uma sobrinha cirurgiã vascular.
Ela trabalha na Clínica Mayo, nos Estados Unidos. É talentosíssima, mas deveria
se impor mais para ter o prestígio que poderia ter. Os homens são mais
convidados para congressos. É automático isso acontecer. O que ela deveria
dizer, como indagação: por que não me convidam? Deveria afirmar, claramente:
sou competente. A mulher está se libertando do trabalho doméstico,
muitos homens participam igualmente da rotina em casa. No campo do trabalho,
porém, há muito ainda a percorrer.
Sofreu preconceito também por não ter tido filhos, por não ser mãe? A
cobrança foi grande. E acredito que muitas mulheres ainda sofram isso. Eu me
casei com a opção de não ter filhos. Eu podia ter casado antes. Tive namorados.
Mas quis um homem que não fizesse questão de filhos. Os homens quando casam
pensam na família. O Gama nunca foi afeito a crianças. Temos um casamento de 54
anos muito feliz, conversamos e debatemos sobre tudo. Quando os sobrinhos dele
vêm em casa, ele fica lendo na maior parte do tempo. Ele gosta de ler e de
operar.
Existe uma máxima entre os médicos que diz que os cirurgiões se tornam, ao
longo dos anos de profissão, especialistas arrogantes, resultado da função que
exercem. Isso é verdade? O cirurgião tem de ser autoconfiante. Há decisões
que precisam ser tomadas em frações de segundos, quase por reflexo. Quem opera
tem de ser perfeccionista e obsessivo. Se a cirurgia não é perfeita, dá
problema. Quando eu acabo de operar não tem uma gota de sangue no chão.
Tampouco no meu avental. Isso não é ser arrogante. O otimismo também é
fundamental. Mesmo quando vou operar um paciente grave digo a ele que vai dar
certo. E eu acredito nisso, de verdade. Sempre tenho esperança, por menor que
seja. Só o fato de entrar alegre no quarto do doente antes da operação pode
fazer bem para ele.
A senhora tem alguma fé religiosa? Nasci católica, mas não frequento
igreja. Os padres ficaram um pouco para trás. No entanto, acredito, sim, em
algo especial que direciona o mundo. Porque nem tudo depende da vontade da
gente. A maioria sim, mas nem tudo. Já li muito sobre religião e admito não ter
chegado a nenhuma conclusão. Quando fiquei doente falei com “Ele” e pedi para
ficar.
Por Adriana Dias Lopes, na Revista Veja
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