sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O nacionalismo seletivo na Amazônia

 


Para antropóloga, clima de conspiração e ataques a ambientalistas propagados por militares no governo são parte de "projeto de privatização das florestas". Presidente, afirma ela, confunde política com guerra.

 

Atenta ao desmonte de órgãos de fiscalização ambiental e aos ataques por parte do governo federal direcionados à pesquisa e entidades que defendem uma exploração sustentável da Amazônia, a antropóloga e socióloga Andréa Zhouri vê semelhanças entre o momento atual e o período da ditadura militar.

A ideia espalhada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro de que uma conspiração internacional estaria por trás das críticas contra o desmatamento e queimadas é uma estratégia antiga, como mostrou a pesquisa de Zhouri, ainda na década de 1990.

Usada por militares desde os anos 1980, quando a destruição da Floresta Amazônica começou a repercutir fortemente no cenário internacional, e repetida por Bolsonaro, a teoria afirma que ONGs e os povos da floresta ameaçam a soberania do país na região.

Zhouri, pesquisadora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), analisa o discurso de então, repetido vigorosamente na atualidade, como perigoso e conveniente. 

"Um discurso que trata opositores políticos como inimigos é perigoso, porque confunde política com guerra. Enquanto opositores são vencidos, os inimigos são eliminados. E esse discurso é conveniente e politicamente estratégico como conjunto de justificativas para certa proposta de ocupação econômica da Amazônia", diz em entrevista à DW Brasil.

A tática de Bolsonaro seria desqualificar quem defende a preservação e o uso comum das terras na Amazônia como forma de atingir o objetivo desse governo.

"A diferença desse discurso de hoje em relação ao do passado é que antes se pretendia ‘integrar o Brasil para não entregar’. E agora trata-se de integração do país à economia-mundo por meio de exportação de commodities", pontua a pesquisadora. 

DW Brasil: Na década da 1990, logo após o fim da ditadura militar, você finalizou uma pesquisa que analisou a origem do discurso contra a defesa do meio ambiente e contra as ONGs que vinha dos militares e de políticos da Amazônia. Assistimos à volta desse discurso no governo Bolsonaro? 

Andrea Zhouri: É muito parecido. Todo esse contexto ambiental dos anos 1980 volta à memória hoje. Quando Chico Mendes morreu, em dezembro de 1988, as imagens de queimadas na Amazônia eram iguais às que estamos vendo hoje. Era muito impactante na época. A imagem internacional da Amazônia era a do fogo. De certa forma, tudo muito parecido com o que a gente está vivendo hoje. 

Falamos de retrocesso porque nós já vimos isso nos anos 1980, assim como as mudanças ocorridas nos anos 1990, que pareciam voltadas para um maior engajamento dos governos com a perspectiva do desenvolvimento sustentável, embora sempre de maneira adjacente, tensa e questionável. 

Os discursos dos militares que hoje ocupam cargos de governo, como o general Hamilton Mourão [vice-presidente] e o general Augusto Heleno [ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional], são os mesmos discursos dos anos 1980 e 1990. Esse foi o ponto de partida para eu buscar entender o ambientalismo global na minha pesquisa de doutorado. Os discursos dos militares perduram porque refletem uma cultura corporativa presente nas Forças Armadas, uma certa ideologia que eles têm sobre o que é o Brasil e como ele deveria ser. 

Pessoas como o general Heleno e o próprio Bolsonaro, que foi militar nos anos 1980, foram formadas dentro dessa cultura, acionando as formações discursivas do tipo "muita terra para pouco índio" ou "a nação brasileira é uma só". Compartilham uma visão de Estado-nação como entidade englobante, constituída por uma homogeneização étnico-racial que também corresponda a uma unificação territorial. Uma língua, um povo, um território. 

Em relação a Bolsonaro, Mourão tenta mostrar uma faceta um pouco menos escrachada, mais ponderada, na medida que reproduz uma certa retórica democrática. Mas se buscar os discursos dele mais antigos, você vai encontrar uma defesa da volta do regime militar. Então, a ideia inicial, de que os militares poderiam ser um contrapeso dentro do governo Bolsonaro, não se realiza na verdade.

Recentemente, Mourão voltou a atacar os dados sobre queimadas produzidos pelo Inpe, dizendo que pesquisadores são contra o governo. Esse comportamento, tentando criar um clima de conspiração, segue esse padrão desde a época do governo militar? 

Anteriormente às eleições de 2018, Hamilton Mourão já havia defendido publicamente a volta do regime militar. Antes mesmo de ser escolhido por Jair Bolsonaro como seu candidato a vice-presidente. Ele tinha defendido abertamente o fechamento do Congresso. [Em 2017, num evento numa Loja Maçônica, Mourão defendeu uma intervenção militar caso as instituições não resolvessem "o problema político" no país]. Bolsonaro o escolheu para vice justamente em função dessas posições, como alguém com discurso que representa posições mais radicais dentro do Exército.

O general Heleno é outra figura da reserva que já tinha um posicionamento público parecido na época da ratificação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em 2008, sobre o Brasil ser uma "coisa só", questionando a noção de "nações indígenas", as reivindicações identitárias dos quilombolas... Heleno defendia a demarcação das terras indígenas em áreas descontínuas, alegando que organismos internacionais queriam lucrar e ganhar o controle do território amazônico e usariam os indígenas para isso. 

Esse discurso a propósito do caso Raposa Serra do Sol repetia, na verdade, o que já havia ocorrido na década de 1990, com a demarcação da Terra Indígena Yanomami. Eram as mesmas representações simbólicas, as mesmas justificativas. É o mesmo discurso que permaneceu em algumas alas do Exército, agora representadas em cargos de governo. 

E o que gerou esse discurso de uma conspiração internacional para tomar a Amazônia nas décadas passadas? 

Esse receio é antigo na história brasileira. Aparece já na doutrina geopolítica do general Golbery do Couto e Silva nos anos 1960. Quando fiz minha pesquisa sobre o ambientalismo global, nos anos 1980 e 1990, um marco importante foi o assassinato de Chico Mendes, em 1988. O tema da Amazônia chega mais forte às outras regiões do país. Comecei, então, a observar toda a movimentação nacional e internacional envolvendo a Amazônia. 

Em 1991 teve essa discussão sobre a demarcação da Terra Indígena Yanomami. Fernando Collor, eleito, demarca as terras antes da realização da Rio-92, conferência da ONU sobre desenvolvimento sustentável que aconteceria no Rio de Janeiro, em meados de 1992. Os militares e políticos da região amazônica eram contra essa demarcação e faziam acusações contra as ONGs, dizendo que seriam uma espécie de "fachada" para os verdadeiros interesses de outros países sobre a Amazônia.

Acreditavam, como ainda acreditam, que as ONGs representavam uma ameaça à soberania brasileira na Amazônia. A própria Rio-92 foi vista como uma conspiração internacional para ocupar a Amazônia. O general Leônidas Pires, à época ministro do Exército, falava que sentia ódio de José Lutzemberger, que era secretário de Meio Ambiente com status de ministro. Ele já falava de ódio naquela época. 

Collor havia convidado Lutzembenger para ser secretário, também numa jogada de marketing político. Lutzemberger era um dos maiores ambientalistas do Brasil. Ele falava outras línguas muito bem, então tinha uma penetração internacional muito grande, circulava pela Europa e pelos Estados Unidos falando sobre a Amazônia. Ele foi protagonista de uma série internacional chamada The Decade of Destruction, feita na década de 1980 e que mostrou a história de Chico Mendes, os problemas dos programas de colonização da Amazônia, o garimpo, o desmatamento, enfim, como as terras da floresta não eram apropriadas para a agricultura tradicional que se fazia no sul. 

Lutzemberger foi o link com o ambientalismo internacional. Por isso, Leônidas Pires dizia que sentia por ele o mesmo ódio que sentia por Luís Carlos Prestes, do Partido Comunista. Quer dizer, já havia essa associação entre ambientalistas e comunistas na época. Os ambientalistas ocupavam, para os militares, esse lugar "subversivo", de "forças adversas", como registram documentos encontrados em um QG militar em Marabá, no ano de 2001. As críticas ao modelo econômico predatório brasileiro eram lidas como críticas ao Brasil, como falta de patriotismo.

Por que, na sua opinião, mesmo o Brasil fazendo parte do mundo globalizado, recebendo mais cooperações e dinheiro internacionais, esse discurso conspiratório prevalece no governo atual?

Trata-se de um discurso ideológico que é perigoso e conveniente. Um discurso que trata opositores políticos como inimigos é perigoso, porque confunde política com guerra. Enquanto opositores são vencidos, os inimigos são eliminados. E esse discurso é conveniente e politicamente estratégico como conjunto de justificativas para certa proposta de ocupação econômica da Amazônia. 

É um nacionalismo seletivo, porque as mineradoras estão lá, os noruegueses, os britânicos, os chineses estão lá ocupando quilômetros de terras, explorando madeira, minério, gado. O solo já é bastante internacionalizado na Amazônia. Os próprios militares cederam a base de Alcântara no Maranhão para os Estados Unidos. 

Existe um projeto político-econômico ao qual eles aderem e procuram abrir caminhos para sua execução. Parece meio paradoxal, porque eles aderem a grandes corporações internacionais com um discurso nacionalista.  

A diferença desse discurso de hoje em relação ao do passado é que antes se pretendia "integrar o Brasil para não entregar". E agora trata-se de integração do país à economia-mundo por meio de exportação de commodities. Então, por isso, é preciso coibir esse discurso sobre meio ambiente e a proteção dos indígenas, porque são ações voltadas para a proteção dos bens comuns, coletivos, das terras que são da União, como são as unidades de conservação. São bens comuns e terras que estão fora do mercado de terras. 

A proteção ambiental e as reivindicações indígenas e quilombolas se chocam com os interesses privatistas na Amazônia. Eles precisam desqualificar e deslegitimar as ONGs, o ambientalismo, a luta indígena, enfim, porque são essas são uma barreira a esse projeto de privatização das florestas, dos rios, do avanço do capital sobre esses territórios. 

O discurso dos militares pavimenta o caminho para a intenção de se inserir as terras que estão fora no mercado internacional de terras. E essas são observações que têm base em muitas pesquisas, não apenas a minha. Trata-se de conhecimento científico ancorado em muitos anos de estudos. Por isso que as ciências, inclusive as sociais, estão sendo tão atacadas. Esses ataques são também uma forma de limitar o acesso ao conhecimento histórico.

Por Nádia Pontes, na Deutsche Welle


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