Grupo XIX de Teatro tenta evitar o desabamento de umprédio histórico que usa como sede na vila Maria Zélia,em São Paulo, mas agora enfrenta pedido de reintegração de posse do governo
Dentro de um dos prédios, um caixão de
madeira se decompõe enquanto pombas lançam titicas
sobre destroços. Em outro, uma floresta brota com
troncos rompendo o concreto, heras abraçando vigas
abandonadas e copas de árvores vazando pelas janelas
do segundo andar.
Pode parecer a cena de algum filme distópico ou essas
fotografias que exploram a estética das ruínas e
aparecem em galerias e museus. Mas é São Paulo,
mais especificamente seis prédios tombados em que o
colapso físico das construções serve de imagem para
outros abandonos —nesse caso, o do patrimônio
histórico e o de grupos de teatro independentes.
Estamos na vila Maria Zélia, conjunto inaugurado em
1917 para abrigar 2.500 operários de uma fábrica na
zona leste da capital e considerado a primeira vila
operária do Brasil. Tombado no início dos anos 1990, o
espaço preserva ainda hoje um certo ar do passado,
como se a vilazinha jamais tivesse conseguido se
desvencilhar do século 20.
Mas esse ar nostálgico, marcado por crianças que
brincam nas ruas, fachadas coloridas e portões com
muros baixos, é quebrado pelos seis edifícios
abandonados que pertencem ao governo federal.
Mesmo protegidos pelo estado e pela prefeitura, eles
se
impõem como um ruído na vila ao ostentar telhados
caídos, buracos no lugar das janelas e estruturas
abaladas a ponto de quase desmoronar.
Das seis construções, só uma está sendo usada e tem
algum grau de preservação.
Ela fica logo na entrada, colada à igreja, e é sede da
associação cultural da vila e do Grupo XIX de Teatro,
um dos mais importantes da cidade. Embora não
tivessem autorização do governo para ficar no espaço,
ambos resolveram entrar, fazer a limpeza e os reparos
e
cuidar da manutenção. Agora, são alvos de um pedido
de reintegração de posse.
“Estamos há 15 anos lá e nunca vimos nenhuma
reforma nem preocupação com a situação dos prédios”,
diz Luiz Fernando Marques, diretor do XIX, que chegou
à vila em 2004. “Toda a manutenção sempre foi feita
por
nós, inclusive a troca do telhado.”
Os atores são só a ponta de um caminho tortuoso na
história da Maria Zélia. A vila foi idealizada e
fundada
pelo médico Jorge Street, mas depois passou de mão
em mão, pertenceu às famílias Scarpa e Guinle e virou
um presídio no Estado Novo. Nos anos 1930, por
problemas com impostos, foi confiscada pelo antigo
Iapi,
o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos
Industriários.
Com o passar do tempo, as casas, que ficam divididas
em 24 quadras, puderam ser compradas pelos
moradores. Mas os seis prédios que abrigavam as
escolas, a farmácia, o açougue, o escritório e o
armazém seguiram com o governo. E hoje pertencem
ao INSS, que absorveu as funções do Iapi e está por
trás do recente pedido de reintegração de posse.
A possibilidade de despejo é a cereja do bolo de um
certo inferno astral que o grupo XIX enfrenta neste
ano.
A companhia, batizada com o número 19 em algarismos
romanos, completa 19 anos em 2020 e preparava
comemorações para a efeméride.
“Fomos atrapalhados por outro 19, o da Covid”, brinca
Marques, também conhecido como Lubi. O grupo
apresentaria na vila oito espetáculos do seu
repertório.
Entre eles, os elogiados “Hysteria” e “Hygiene”,
lançados em 2001 e 2005, nesta ordem.
Também abriria inscrições para núcleos de pesquisa e
começaria todo o processo de criação de uma nova
peça. “Passaria por temas como as fake news, a infâmia
e a não verdade”, adianta o diretor.
Mas tudo foi adiado por causa da quarentena. As
oficinas terão inscrições abertas em outubro, mas as
peças só deverão ser encenadas no ano que vem —até
porque não há previsão de o XIX retornar à vila.
“A gente entrou no prédio para chamar a atenção dos
governos para aquele lugar. Sempre nos entendemos
como um espaço público. E só vamos reabrir quando os
equipamentos de cultura do governo e da prefeitura
também retornarem”, afirma Lubi.
Fechado desde março, o edifício vê a camada de poeira
se adensar e aguarda a volta dos atores —ou a
concretização da reintegração de posse, o que não tem
data para ocorrer.
O Condephaat, o Conselho de Defesa do Patrimônio
Histórico, do governo estadual, e o Conselho Municipal
de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e
Ambiental, da prefeitura, disseram saber do estado de
ruína e que isso é de responsabilidade do INSS.
“O conselho notificou o instituto por conduta irregular
em
2012, 2014, 2015 e 2016”, diz o órgão estadual, que
também afirma ter exigido do governo federal
providências para a recuperação do lugar. Já o
conselho de proteção do município conta que, em abril,
requisitou do INSS um levantamento da conservação
das construções abandonadas —mas não teve
resposta.
O instituto, porém, respondeu ao repórter. Afirmou que
a
ruína dos prédios é anterior à preservação pelo
patrimônio histórico e acrescentou que o próprio
tombamento dificulta a manutenção. “Quaisquer obras
de melhoria exigem a restauração das construções,
serviços de alto custo e de difícil contratação pelo
INSS.”
O órgão diz ainda que considera irregular a presença
da
associação cultural e da companhia de teatro, mesmo
que os grupos façam a conservação do edifício e evitem
o esfacelamento. O pedido de reintegração atende a
uma ação de restauro proposta pelo Ministério Público
Federal.
“Sempre tivemos claro que o patrimônio precisa ter uso
—caso contrário, há o abandono”, afirma Lubi, do grupo
XIX. A fala encontra eco no próprio Condephaat. “Uma
das formas de preservação de um patrimônio é o seu
uso adequado, aliado a manutenção e zeladoria, como
ocorreu com o armazém utilizado pela Associação
Cultural Vila Maria Zélia”, diz o conselho.
O INSS se escora ainda em uma resolução do Tribunal
de Contas da União de 2005 que recomenda ao
instituto “alienar imóveis que não utiliza”. Em outras
palavras, vender tudo. O instituto afirma que não há
planos para qualquer uso dos edifícios da vila.
“É diferente do que acontece com outros grupos que
perderam ou podem perder suas sedes”, avalia o ator e
diretor Celso Frateschi, que está à frente do Motin,
movimento que reúne companhias independentes da
cidade. “No caso do XIX, não há uma pressão direta do
mercado imobiliário. Ela vem do governo.”
Ele lembra os casos recentes da companhia Pessoal do
Faroeste, que perdeu sua sede por dever R$ 200 mil de
aluguel, e do acervo do grupo Oficina, que precisou
ser
retirado de uma casa que dará lugar a um novo
edifício.
Nesse sentido, muitos grupos independentes lembram
os prédios da vila Maria Zélia —correm o risco de
ficar
em silêncio. Ou de desmoronar.
Por Bruno Molinero, na Folha de S. Paulo
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