sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Palco em ruínas



Grupo XIX de Teatro tenta evitar o desabamento de umprédio histórico que usa como sede na vila Maria Zélia,em São Paulo, mas agora enfrenta pedido de reintegração de posse do governo

 

Dentro de um dos prédios, um caixão de

madeira se decompõe enquanto pombas lançam titicas

sobre destroços. Em outro, uma floresta brota com

troncos rompendo o concreto, heras abraçando vigas

abandonadas e copas de árvores vazando pelas janelas

do segundo andar.

 

Pode parecer a cena de algum filme distópico ou essas

fotografias que exploram a estética das ruínas e

aparecem em galerias e museus. Mas é São Paulo,

mais especificamente seis prédios tombados em que o

colapso físico das construções serve de imagem para

outros abandonos —nesse caso, o do patrimônio

histórico e o de grupos de teatro independentes.

 

Estamos na vila Maria Zélia, conjunto inaugurado em

1917 para abrigar 2.500 operários de uma fábrica na

zona leste da capital e considerado a primeira vila

operária do Brasil. Tombado no início dos anos 1990, o

espaço preserva ainda hoje um certo ar do passado,

como se a vilazinha jamais tivesse conseguido se

desvencilhar do século 20.

 

Mas esse ar nostálgico, marcado por crianças que

brincam nas ruas, fachadas coloridas e portões com

muros baixos, é quebrado pelos seis edifícios

abandonados que pertencem ao governo federal.

 

Mesmo protegidos pelo estado e pela prefeitura, eles se

impõem como um ruído na vila ao ostentar telhados

caídos, buracos no lugar das janelas e estruturas

abaladas a ponto de quase desmoronar.

 

Das seis construções, só uma está sendo usada e tem

algum grau de preservação.

 

Ela fica logo na entrada, colada à igreja, e é sede da

associação cultural da vila e do Grupo XIX de Teatro,

um dos mais importantes da cidade. Embora não

tivessem autorização do governo para ficar no espaço,

ambos resolveram entrar, fazer a limpeza e os reparos e

cuidar da manutenção. Agora, são alvos de um pedido

de reintegração de posse.

 

“Estamos há 15 anos lá e nunca vimos nenhuma

reforma nem preocupação com a situação dos prédios”,

diz Luiz Fernando Marques, diretor do XIX, que chegou

à vila em 2004. “Toda a manutenção sempre foi feita por

nós, inclusive a troca do telhado.”

 

Os atores são só a ponta de um caminho tortuoso na

história da Maria Zélia. A vila foi idealizada e fundada

pelo médico Jorge Street, mas depois passou de mão

em mão, pertenceu às famílias Scarpa e Guinle e virou

um presídio no Estado Novo. Nos anos 1930, por

problemas com impostos, foi confiscada pelo antigo Iapi,

o Instituto de Aposentadorias e Pensões dos

Industriários.

 

Com o passar do tempo, as casas, que ficam divididas

em 24 quadras, puderam ser compradas pelos

moradores. Mas os seis prédios que abrigavam as

escolas, a farmácia, o açougue, o escritório e o

armazém seguiram com o governo. E hoje pertencem

ao INSS, que absorveu as funções do Iapi e está por

trás do recente pedido de reintegração de posse.

 

A possibilidade de despejo é a cereja do bolo de um

certo inferno astral que o grupo XIX enfrenta neste ano.

A companhia, batizada com o número 19 em algarismos

romanos, completa 19 anos em 2020 e preparava

comemorações para a efeméride.

 

“Fomos atrapalhados por outro 19, o da Covid”, brinca

Marques, também conhecido como Lubi. O grupo

apresentaria na vila oito espetáculos do seu repertório.

Entre eles, os elogiados “Hysteria” e “Hygiene”,

lançados em 2001 e 2005, nesta ordem.

 

Também abriria inscrições para núcleos de pesquisa e

começaria todo o processo de criação de uma nova

peça. “Passaria por temas como as fake news, a infâmia

e a não verdade”, adianta o diretor.

 

Mas tudo foi adiado por causa da quarentena. As

oficinas terão inscrições abertas em outubro, mas as

peças só deverão ser encenadas no ano que vem —até

porque não há previsão de o XIX retornar à vila.

 

“A gente entrou no prédio para chamar a atenção dos

governos para aquele lugar. Sempre nos entendemos

como um espaço público. E só vamos reabrir quando os

equipamentos de cultura do governo e da prefeitura

também retornarem”, afirma Lubi.

Fechado desde março, o edifício vê a camada de poeira

se adensar e aguarda a volta dos atores —ou a

concretização da reintegração de posse, o que não tem

data para ocorrer.

 

O Condephaat, o Conselho de Defesa do Patrimônio

Histórico, do governo estadual, e o Conselho Municipal

de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e

Ambiental, da prefeitura, disseram saber do estado de

ruína e que isso é de responsabilidade do INSS.

 

“O conselho notificou o instituto por conduta irregular em

2012, 2014, 2015 e 2016”, diz o órgão estadual, que

também afirma ter exigido do governo federal

providências para a recuperação do lugar. Já o

conselho de proteção do município conta que, em abril,

requisitou do INSS um levantamento da conservação

das construções abandonadas —mas não teve

resposta.

 

O instituto, porém, respondeu ao repórter. Afirmou que a

ruína dos prédios é anterior à preservação pelo

patrimônio histórico e acrescentou que o próprio

tombamento dificulta a manutenção. “Quaisquer obras

de melhoria exigem a restauração das construções,

serviços de alto custo e de difícil contratação pelo

INSS.”

 

O órgão diz ainda que considera irregular a presença da

associação cultural e da companhia de teatro, mesmo

que os grupos façam a conservação do edifício e evitem

o esfacelamento. O pedido de reintegração atende a

uma ação de restauro proposta pelo Ministério Público

Federal.

“Sempre tivemos claro que o patrimônio precisa ter uso

—caso contrário, há o abandono”, afirma Lubi, do grupo

XIX. A fala encontra eco no próprio Condephaat. “Uma

das formas de preservação de um patrimônio é o seu

uso adequado, aliado a manutenção e zeladoria, como

ocorreu com o armazém utilizado pela Associação

Cultural Vila Maria Zélia”, diz o conselho.

 

O INSS se escora ainda em uma resolução do Tribunal

de Contas da União de 2005 que recomenda ao

instituto “alienar imóveis que não utiliza”. Em outras

palavras, vender tudo. O instituto afirma que não há

planos para qualquer uso dos edifícios da vila.

“É diferente do que acontece com outros grupos que

perderam ou podem perder suas sedes”, avalia o ator e

diretor Celso Frateschi, que está à frente do Motin,

movimento que reúne companhias independentes da

cidade. “No caso do XIX, não há uma pressão direta do

mercado imobiliário. Ela vem do governo.”

 

Ele lembra os casos recentes da companhia Pessoal do

Faroeste, que perdeu sua sede por dever R$ 200 mil de

aluguel, e do acervo do grupo Oficina, que precisou ser

retirado de uma casa que dará lugar a um novo edifício.

Nesse sentido, muitos grupos independentes lembram

os prédios da vila Maria Zélia —correm o risco de ficar

em silêncio. Ou de desmoronar.

Por Bruno Molinero, na Folha de S. Paulo


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