APÓS TRÊS SÉCULOS CENTRADO NA INDUSTRIALIZAÇÃO E NO MUNDO
TECNOLÓGICO, O SER HUMANO VOLTA A VALORIZAR A RELAÇÃO COM O ALIMENTO. E NÃO
APENAS COM A COMIDA, MAS COM QUEM A PRODUZ
A PANDEMIA está resgatando o
relacionamento da sociedade urbana com o alimento. Para o filósofo Mario Sérgio
Cortella, este momento tem ajudado a desconstruir preconceitos sobre o
profissional do campo - e a valorizar aquilo que chega ao prato.“Nós nos
afastamos tanto da nossa capacidade de produzir parte das coisas da nossa vida,
até que durante o movimento pandêmico houve uma explosão de pessoas que
passaram a fazer pão em casa, a cuidar de produzir seus alimentos. ”
Nascido em Londrina, no Paraná, terra de agronegócio forte, Cortella é pé
vermelho com orgulho, como são chamados seus conterrâneos. Rodeado por irmãos e
primos agrônomos e veterinários, ele foi o único que enveredou para a filosofia
e segue tentando desmitificar o significado pejorativo da palavra "caipira
", anteriormente desenhado por Monteiro Lobato na figura de Jeca Tatu. “Eu
acho que a humanidade do século XXI está olhando o mundo do campo, o mundo do
agro, não só como sustentador das nossas vidas e facilitador das nossas
encrencas econômicas, mas também um mundo que, como não o conhece, honra e
respeita menos do que deveria”, diz.
Em entrevista à revista Globo Rural, Cortella ainda ressalta que a era da
informação também contribui para a curiosidade do consumidor e para o
esclarecimento da origem do alimento, desde questões sanitárias até o
conhecimento dos rótulos de embalagem.
GLOBO RURAL_ Por que a população urbana ainda tem uma visão distorcida sobre o
produtor rural?MARIO SÉRGIO CORTELLA_ Temos duas contribuições que levaram a
pintar a pessoa do campo como menos escolarizada e mais ingênua. De um lado,
você tem o Monteiro Lobato, que pintou o Jeca Tatu, que, sendo alguém que veio
da roça, estava o tempo lodo falando errado. E tem o Mazzaropi, que, ao fazer
sua principal personagem entre os anos de 1950 e 60 também caricaturou o
caipira, em vez de caracterizar. E eu acho que em parte houve uma contribuição
da comunicação, que deu um ar de menos desenvolvido e mais ligado às coisas brutas,
que é o manejo com o gado, com a terra. Eu costumo brincar, quando perguntam
por que eu fui para a filosofia, que eu não queria trabalhar, porque o
agronegócio dá muito trabalho. Como diz a antiga frase, a agricultura é a arte
da paciência, então podemos dizer que o agronegócio é a arte da paciência.
GR_ Há também um movimento de resgatar as origens e voltar a produzir os
próprios alimentos. Como você analisa esse comportamento?CORTELLA_ Em todas as
culturas e sociedades na história, estar ligado à terra sempre foi inerente à
natureza humana. Não por acaso, a palavra humano tem origem no vocábulo
"humus", que significa terra fértil. Portanto, a própria origem nossa
como denominação está conectada ao mundo da fertilidade. Nesse sentido, a lógica
dos últimos três séculos mais recentes, que esteve ligada com maior
exclusividade à indústria, ao mundo tecnológico exclusivo do ambiente urbano,
sofre uma guinada agora e produz para mui ta gente uma admiração. Pessoas estão
querendo saber como é, não só por conta da procedência, dadas as preocupações
de natureza ecológica ou, claro, de proteção alimentar, de segurança, mas
querendo também desvendar um pouco esse mundo misterioso. Eu acho que a
humanidade do século XXI está olhando o mundo do campo, o mundo do agronegócio,
não só como sustentador das nossas vidas e facilitador das nossas encrencas
econômicas, mas também um mundo que, como não conhece, honra e respeita menos
do que deveria.
GR_ Ainda assim, parece haver uma desconfiança sobre a origem do alimento e dos
processos produtivos. Porquê?CORTELLA_ São dois movimentos. De um lado, o fato
de que existe todo um movimento de esclarecimento em relação aos problemas de
uma indústria que, quando não cuidadosa, acabou perdendo a capacidade de um
controle maior. Nesse sentido, o mundo da informação e da velocidade dessa
difusão faz com que a gente tenha acesso a conhecimentos que não tínhamos. Não
basta mais eu olhar a embalagem de um alimento. Já tenho à disposição no meu
celular a possibilidade de ir sabendo cada um dos componentes que estão
registrados no rótulo. Há também filosofias de vida novas, como o
vegetarianismo, pela filosofia do que aquilo representa. O outro lado 6 a ideia
de que nós nos afastamos tanto da nossa capacidade de também produzir parte das
coisas da nossa vida, até que durante o movimento pandêmico houve uma explosão
de pessoas que passaram a fazer pão em casa, a cuidar de produzir seus
alimentos, de guardar aquilo que um dia pode ser a compota. Isso tudo faz com
que eu olhe algo e, não que eu faça por desconfiar da indústria, mas porque
também acho que posso ter autoria nisso.
GR_ Qual o motivo de haver essa polarização entre quem consome e quem produz o
alimento? É falta de entender o consumidor exigente ou de desconhecer o
agronegócio? CORTELLA_ Nós temos alguma forma de desconhecimento que
conduz ao preconceito do urbano, que, não entendendo direito o campo, supõe, de
modo equivocado, que ali seja um local de atraso, portanto não tem visão nítida
sobre o que significa essa área da produção humana. Por outro lado, algumas
pessoas do campo entendem que há uma agressividade na forma de reação. Em
alguns momentos, é preciso escolher o mocinho e o vilão. Quando a gente tem
processos econômicos difíceis, momentos inflacionários que são mais difíceis de
lidar, a primeira forma de ataque é o alimento que vem do campo, porque é o
primeiro contato que é essencial e que ao chegar ao mercado vai se falar do
preço do tomate, da cebola, da batata, do queijo, etc. E, de repente, de quem é
a culpa? Acha o urbano que ele está tendo de pagar por algo que alguém lá na
punta é o responsável. Daí essa forma muito atrapalhada de relações que eu acho
que começam a ficar mais nítidas nesses momentos pandêmicos. A gente vê quanto
é necessário que a gente se entenda, porque a interdependência é muito
importante. Se o povo não planta, não colhe, não abate, não tem alimento. E se
eu não significar aquilo que consumo, não haverá necessidade da produção.
GR_O que podemos tirar de lição com essa pandemia? Você acredita que o ser
humano será melhor com esse “novo normal”?CORTELLA_ Há muitas coisas que
podemos tirar como ensinamento, afinal nós somos alunos e alunas da vida. E,
por uma boa coincidência, a palavra "alumno" no latim significa a
pessoa que está sendo nutrida, alimentada. Portanto, sabemos que podemos
aprender várias coisas em meio à tormenta, entre elas a maior capacidade de
solidariedade, a necessidade de economia dos recursos naturais e a necessidade
de compreender o trabalho do agronegócio como aquele que, neste tempo, enquanto
uma parte de nós se recolheu e pôde fazê-lo, foi porque alguém continuou na
atividade de provimento dos recursos para continuarmos vivos. Evidentemente que
esse tipo de percepção exige um aprendizado à necessidade de humildade pedagógica
e intelectual. Por outro lado, não acho que vamos mudar tanto. Muita gente não
poderá e não conseguirá ser mais como era. E esse tipo do “novo normal” talvez
seja uma fase transitória para a gente aprender algumas coisas.
GR_ Do ponto de vista da filosofia, existe diferença entre comer e se
alimentar?CORTELLA_ Um dos principais pensadores da contemporaneidade é o
antropólogo Lévi-Strauss, que tem um livro com o título O cru e o cozido, no
qual mostra que o que nos diferencia dos outros seres vivos é que a nós não
basta apenas a mera alimentação. Queremos que haja nessa nutrição algumas
maneiras de dar um ar em que a nossa autoria esteja presente. Nesse sentido, a
própria atividade de não ter o alimento apenas no estado original, mas ser
capaz de sofisticá- lo, é uma maneira de expressar nossa cultura. Mas, tomando
o ponto mais fundo da questão, se olhamos os sinais da humanidade, desde aquilo
que se chama de homem pré-histórico, as marcas mais fortes da nossa convivência
foram quase sempre em volta de uma fogueira, de um círculo de convivência
alimentar. Portanto, a vida não é vida sem alimento. Alimentação não é só
ingerir coisas que agregam proteína e carboidrato, mas também uma maneira de
vida coletiva. Tanto que, quando este momento pandêmico tiver controle maior, a
primeira coisa que quero fazer é cozinhar para meus filhos e netos.
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