O livro
com os discursos de Erico Verissimo quando ele trabalhou na OEA revela um
defensor da liberdade e da inclusão social em plena Guerra Fria
Em 1951, Erico Verissimo (1905-1975), já um escritor
famoso, publicou O retrato, a segunda parte da trilogia O tempo e o vento, na qual
acompanha as desventuras das famílias Terra e Cambará desde o século XVIII,
quando as missões jesuíticas ocuparam os territórios gaúchos, até o fim da
ditadura do Estado Novo de Getulio Vargas (1937-1945). A primeira parte, O
continente viera a lume em 1949 e conquistara o aplauso da crítica e dos
leitores ao apresentar personagens inesquecíveis, como Ana Terra e “um certo
capitão Rodrigo”. O retrato, protagonizado não mais pelo destemido capitão
Rodrigo, mas pelo sofisticado Doutor Rodrigo, seu descendente, teve recepção
menos entusiasmada, o que forçou Verissimo a repensar seus planos para O
arquipélago, a última parte da trilogia, publicada apenas em 1961. A demora
para a conclusão de O tempo e o vento não foi resultado apenas de insegurança
de escritor. Verissimo precisou se afastar dos Terra-Cambará para assumir, meio
a contragosto, funções diplomáticas junto à Organização dos Estados Americanos
(OEA).
O convite para substituir o intelectual católico Alceu Amoroso Lima (também
conhecido pelo pseudônimo Tristão de Athayde) na direção do Departamento de
Assuntos Culturais da OEA veio em dezembro de 1952. O então ministro das Relações
Exteriores, João Neves da Fontoura, queria indicar alguém que pudesse divulgar
a cultura brasileira nos Estados Unidos. Verissimo tinha livros publicados no
mercado americano, algo raríssimo na época, e, entre 1943 e 1945, ensinara
literatura brasileira na Universidade da Califórnia em Berkeley, onde suas
aulas eram tão populares que a sala onde lecionava precisou ser adaptada para
acomodar um número maior de alunos. Em 1941, ele já havia viajado pelos Estados
Unidos a convite do Departamento de Estado. As temporadas no país também
tiveram motivações políticas — Verissimo se opunha ao regime ditatorial de
Vargas — e renderam os relatos de viagem Gato preto em campo de neve (1941) e A
volta do gato preto (1947).
Apesar das reclamações de Clarissa, sua filha mais velha, Verissimo aceitou o
convite para regressar aos Estados Unidos. “A Clarissa teve de deixar um
namorado em Porto Alegre, sem saber quando o veria outra vez. Também deixou um
grande número de amigos. Para mim foi mais fácil. Não tinha namorada e nem era
de muitos amigos”, contou a ÉPOCA o escritor Luis Fernando Verissimo, o caçula
da família. Em março de 1953, os Verissimos deram adeus ao Brasil. “O pai não
sabia quanto tempo ficaríamos em Washington. Alugou uma boa casa e comprou um
carro. Eu, com 16 anos, fui para uma high school. A Clarissa foi para uma
universidade católica, começou a fazer teatro e conheceu David Jaffe, com quem
se casou e teve três filhos. Ela ainda mora em Washington”, disse Luis Fernando
Verissimo, que durante sua estada americana tornou-se um amante do jazz e viu
Charlie Parker e Dizzy Gillespie tocarem no Birdland de Nova York.
Verissimo, o pai, permaneceu no posto até 1956. O trabalho burocrático
era pesado e, além de dar conta de toda a papelada, ele ainda tinha de viajar e
proferir conferências sobre os esforços da OEA para promover a integração das
nações latino-americanas e, de quebra, divulgar a cultura e a literatura
brasileiras. “A função do pai era dirigir o Departamento de Assuntos Culturais
da União Pan-Americana, um braço da OEA, mas o trabalho também
envolvia um lado social, para o qual ele não tinha nenhuma vocação”, recordou Luis
Fernando Verissimo. “Entre as exigências do cargo, a que mais lhe agradava eram
as palestras, que fazia em universidade e outros locais, nos Estados Unidos e
em outros países das Américas. Mas ele era, mesmo, um diplomata contra a
vontade.”
Onze desses discursos foram preservados e acabam de ser reunidos no livro Erico
Verissimo na União Pan-Americana, organizado pelas pesquisadoras Maria da
Glória Bordini e Ana Leticia Fauri e publicado pela editora Makunaima. O livro
é resultado de uma pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq) e está disponível em edição digital e gratuita no site da
editora. Os discursos foram localizados por Fauri na Biblioteca Colombo, da
OEA, quando ela coletava material para sua tese de doutorado sobre o pensamento
político de Verissimo.
Quando discursava, Verissimo aproveitava para expor suas próprias ideias sobre
o pan-americanismo, defender a democracia, expressar preocupação com a miséria
e a falta de liberdade dos povos latino-americanos, desfazer clichês propagados
por Hollywood e contar divertidíssimos causos gaúchos. Diferentemente de outros
importantes escritores brasileiros, como Graciliano Ramos (1892-1953) e Jorge
Amado (1912-2001), ele nunca abraçou o comunismo, embora denunciasse
incansavelmente a desigualdade e as injustiças sociais. Para uns, ainda que
nunca tivesse se filiado ao Partido Comunista, Verissimo era sem dúvida um
“vermelho”. Para outros, era um conservador, talvez até um reacionário, que,
naqueles tempos de Guerra Fria, aceitava convites do governo americano.
“O pai sempre se definiu politicamente como um socialista democrático, ou um
socialista que não aceita nenhuma forma de totalitarismo”, disse Verissimo, o
filho. Verissimo, o pai, odiava ditaduras. Em uma solenidade da OEA realizada
em Caracas, na Venezuela, em 1954, recusou-se a cumprimentar o ditador Marcos
Pérez Jiménez (1914-2001), apoiado pelos americanos. “O próprio Erico se
definia como um humanista”, afirmou Fauri, professora do Departamento de
Línguas e Literaturas Românicas da Universidade de Notre Dame, nos Estados
Unidos. “Ele acreditava que não havia democracia sem liberdade. Não aquela
liberdade que acaba quando começa a liberdade do outro, mas a que começa junto
com a liberdade do outro.”
Verissimo apresentou um pouco de seu pensamento político na conferência
“Liberdade na América Latina”, proferida no Hollins College, no Sul dos Estados
Unidos, em fevereiro de 1955. Mas primeiro divertiu a plateia com duas anedotas
gaúchas. “Venho de um estado no Brasil onde se supõe que os homens sejam durões
e amem a liberdade”, disse. Segundo o escritor, quando instalaram semáforos em
um município gaúcho, os cidadãos protestaram, pois consideravam as leis de
trânsito “uma limitação de sua liberdade”. Ele contou ainda a história de um
gaúcho valente, acostumado a resolver disputas à bala, que decidiu se mudar de
sua cidadezinha fronteiriça. Quando lhe perguntaram o porquê, ele respondeu: “A
cidade mudou muito recentemente. Se você mata alguém hoje em dia, eles imprimem
a história no jornal e todo mundo esperneia por dias”. Essas anedotas, afirmou
o escritor, indicam que “Dona Liberdade tem um rosto especial ou um vestido
diferente, não apenas para cada país em separado, mas às vezes até para cada região
dentro do mesmo país”.
Verissimo lamentou que, para os latino-americanos, a liberdade às vezes fosse
“uma mera questão de palavras”, que nos contentássemos em ter Constituições
liberais e viver em regimes repressivos e indiferentes às necessidades da população.
Segundo o escritor, os países latino-americanos não desfrutam de liberdades
caras aos americanos, como as liberdades “de culto”, “de expressão” e “do
medo”: “As massas não podem viver suas vidas sem a constante ameaça de opressão
política”. Em vez de se limitar a defender o respeito às liberdades individuais
na América Latina, Verissimo propôs uma concepção de liberdade que compreendia
também o bem-estar material dos indivíduos, o que, naquela época e naquele
país, podiam lhe render uma acusação de “vermelho”. “Parece a este contador de
histórias que ninguém pode realmente ser considerado livre se for privado das
necessidades materiais fundamentais da vida, como comida, saúde, roupas, um lar
e uma vida sexual normal”, afirmou.
Crítico das intervenções americanas no restante do continente, Verissimo
terminou a palestra desejando que os países latino-americanos não seguissem o
exemplo dos Estados Unidos e abraçassem o capitalismo, mas que lutassem por “um
tipo de socialismo cristão moderado, pleno de liberdade social”. Ao defender um
“socialismo moderado e cristão” que nada tinha a ver com o autoritarismo
soviético, e uma concepção de liberdade indissociável da diminuição das
desigualdades, Verissimo driblou as amarras ideológicas de seu tempo e confundiu
seus críticos, incapazes de entender se ele era comunista ou aliado do
imperialismo americano. “O que há de original no discurso é que Erico não se
submete aos conceitos de liberdade da época, mas mistura elementos da tradição
liberal e da tradição socialista. É uma atitude muito corajosa, porque ele
sabia que seria julgado por isso e criticado por uns e também por outros”,
disse Fauri. Em outra conferência, “A América do Sul e o Sul Americano”,
proferida em abril de 1955 numa universidade americana, Verissimo afirmou que a
“presença do negro” havia tornado a cultura das duas regiões “mais humana,
interessante e colorida”. Talvez hoje o discurso pareça demasiado romântico,
mas, naquela época, exaltar a cultura negra no Sul americano, onde ainda vigorava
a segregação racial, era arriscado politicamente, em especial para um diplomata.
Verissimo não falava só de política. Em dezembro de 1953, na Universidade
Harvard, deu uma palestra intitulada “Reflexões sobre um enigma literário:
Machado de Assis” e confessou que o “autor de Dom Casmurro”, que “tinha sangue
negro nas veias”, era uma de suas “mais profundas paixões literárias”. Embora
tenha atrasado a conclusão de O tempo e o vento, a vivência diplomática
inspirou a literatura de Verissimo. “A OEA permitiu que Erico conhecesse
diversas culturas e pessoas que o fascinaram, que o marcaram como escritor. Nas
viagens diplomáticas, ele conheceu de perto experiências exasperantes de
desigualdade e de falta de liberdade que depois apareceram em seus livros”, disse
Maria da Glória Bordini, professora da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul (UFRGS) que agora está organizando a correspondência do Verissimo
diplomata. “Não é à toa que O arquipélago é o livro que mais tem discussão
ideológica. Depois, ele publicou romances como O senhor embaixador (1965), que
retrata um país que passa de ditadura capitalista para uma comunista, e O
prisioneiro (1967), uma crítica do intervencionismo americano inspirado na
Guerra do Vietnã.”
A experiência politizou ainda mais a literatura de Verissimo, mas ele nunca
perdeu o gosto por uma boa história, como indicam os causos gaúchos que incluía
em suas palestras. Quando discursava, ele preferia se apresentar não como um
diplomata, mas como um “romancista” ou um “mero contador de histórias”.
“Imagino que o pai teve o mesmo cuidado como palestrante que teve como
ficcionista, o de proporcionar uma leitura clara e criativa que cativa o
leitor, no caso o ouvinte”, arriscou Luis Fernando Verissimo. Ele disse a ÉPOCA
se lembrar do pai falando de suas viagens, mas que só agora vai conhecer o
conteúdo de suas palestras.
Por
Ruan de Sousa Gabriel, na Revista Época
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