terça-feira, 25 de agosto de 2020

Vultos da cultura - utopias e ruínas

 

O Brasil da bossa nova e o de hoje, na visão do crítico Lorenzo Mammì

 

O crítico Zuza Homem de Mello lembra-se do lugar e do momento em que foi surpreendido: próximo ao Monumento às Bandeiras, nas imediações do Parque Ibirapuera, em São Paulo. Ia ao volante da sua perua Dodge verde. De repente, a estação de rádio começou a transmitir uma voz que cantava de maneira estranha, sussurrante e anasalada. Corria o final da década de 1950, e aquela era a primeira vez que o jovem especialista em jazz, recém-retornado de um período de estudos de música nos Estados Unidos, ouvia João Gilberto entoando os versos de Desafinado. Decidiu encostar o carro. Queria ouvir a canção “no máximo de silêncio possível e livre de qualquer motivo de distração”.

Homem de Mello não seria o único a ter o privilégio de testemunhar o mundo se dividindo em duas eras. “Que estranho momento foi esse para tanta gente?”, perguntou-se o jornalista, após descrever o episódio num livro sobre o cantor baiano. “Qual foi a revelação? Foi inesquecível, afirmariam anos depois. Muitos se lembram dele até hoje, onde estavam, o que faziam e o que pararam de fazer, maravilhados que ficaram.”

Desde então João Gilberto se tornou, segundo o crítico e artista plástico Nuno Ramos, “a nossa esfinge”. Um mistério difícil de explicar. “A perfeição daquilo é uma coisa que ninguém decifra exatamente.” Ou não decifrava. No início dos anos 1990, mais de três décadas após o lançamento do disco Chega de Saudade, um intelectual nascido na Itália e que morava havia apenas cinco anos no Brasil tratou de tentar dar uma resposta – para muitos, ainda hoje a melhor resposta – àquelas perguntas. Qual o mistério de João Gilberto?

O ensaio, publicado na Novos Estudos – então a melhor revista de ideias e análise social do país –, teve impacto raro para um texto interpretativo, voltado a um público com interesses intelectuais. Ao aparecer na edição de novembro de 1992, João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova viralizou, diríamos hoje. “Teve uma repercussão de fato grande, que eu não esperava”, reconhece o crítico de arte Lorenzo Mammì, autor do artigo. “Todo mundo me ligava, me falava do texto. Alguma coisa devia ter acontecido.”

O crítico de arte Tiago Mesquita, que anos mais tarde seria orientado por Mammì em seu doutorado na Universidade de São Paulo, se lembra do momento em que, aluno de graduação, leu o ensaio sobre o compositor de Bim Bom, na década de 1990. O passo seguinte foi o de compartilhar aquela descoberta, como fazemos ao ouvir uma música que entusiasma, contou Mesquita. “Foi tão impactante que eu quis logo mostrar para os meus amigos.”

Nessa mesma época, o poeta e músico João Bandeira era aluno do curso de letras, também na USP, e ainda não conhecia Mammì. Tempos depois eles trabalhariam juntos e se tornariam grandes amigos. “Encontrei o artigo na Novos Estudos, folheando a revista. Entrei na biblioteca da Faculdade de Filosofia e dei de cara com isso lá. ‘João Gilberto? Quero ver o que é.’ Li. Fiquei entre alegre e espantado. Querendo fazer alguma coisa. Naquele entusiasmo em que você sente a necessidade de produzir algo.”

Que estranho momento foi esse para tanta gente? Qual foi a revelação? “O ensaio, que não tem mais que dez páginas, é um desses cuja leitura é capaz de iluminar o assunto e alterar substancialmente o entendimento que temos dele”, observou José Miguel Wisnik, músico e professor de literatura na USP. Um desses textos que você lê, e de repente tudo mudou.

Lorenzo Mammì tem 63 anos, nasceu em Roma e estudou história da música em Florença. Em 1987, aos 30 anos, sem emprego fixo e com a vida prática ainda indefinida, decidiu morar em São Paulo. O motivo da mudança de continente e da aposta num futuro ainda mais incerto foi uma brasileira: a editora de livros Maria Emilia Bender, com quem havia se casado na Itália meses antes.

Bender morava na capital paulista e já era, àquela altura, uma profissional bem-sucedida. Mais tarde viria a se tornar uma das principais editoras de textos literários do país, trabalhando por mais de vinte anos na Companhia das Letras (ela também foi editora da piauí, entre 2014 e 2019). Tem 65 anos. É elegante, embora o avesso de uma pessoa blasée: entusiasma-se com frequência, e sua risada pode encher uma sala. Os cabelos, agora grisalhos, foram por muito tempo pintados de vermelho-vivo, o que levava muita gente a confundi-la com a cantora Rita Lee. A decisão do casal de morar no Brasil estava relacionada a questões práticas: Bender tinha emprego, e bom; Mammì, não.

Em 2007, depois de dois filhos e duas décadas de casamento, eles se separaram. Mas continuaram próximos, vão a festas juntos, a família toda se reúne com frequência. “Foi um divórcio que não deu certo”, ela define, achando graça. Moram em casas separadas, mas no mesmo bairro, a uma distância caminhável e visitável.

Mammì é calvo, tem os cabelos que restam grisalhos, e baixo, com pouco mais de 1,60 metro. “É forte, parrudo”, diz a ex-mulher. “Vai sempre ao Clube Pinheiros, faz academia.” O maxilar quadrado e o corpo troncudo lhe dão um ar de boxeador peso médio, esporte a que gosta de assistir. É conhecido entre amigos e na família por ser esquecido e distraído, nunca saber onde deixou os óculos, que às vezes vão parar dentro da geladeira.

Ficou famosa a história, registrada pelo escritor Mario Prata em uma crônica, da vez em que Mammì se viu encarregado de deixar o filho mais velho numa festa de crianças. Antonio devia ter uns 6 anos, a comemoração do amigo era num prédio em Higienópolis. Por azar, outra celebração infantil acontecia num bufê ao lado do endereço correto, e lá, no bufê, o menino foi deixado. Quando afinal vieram buscá-lo, Antonio informou aos pais que tinha passado algumas horas – agradáveis, é verdade – na festa de um desconhecido. “Tinha comida, foi bom”, recorda-se o filho, hoje com 30 anos, jornalista.

O próprio Antonio Mammì conta outra história, mais recente, também ilustrativa da distração do pai. Numa caminhada pelo bairro, foram interpelados por um morador de rua, que por algum motivo tinha uma tesoura na mão e pedia dinheiro. “Meu pai respondeu: ‘Putz, não, obrigado.’ Seguimos andando. Eu achei estranho. ‘Por que você falou obrigado?’, perguntei, mais à frente. Em geral a gente pede desculpas e não agradece, ao recusar um pedido de esmola. ‘Porque eu cortei o cabelo ontem’, ele me disse. Meu pai achou que o cara estava se oferecendo para cortar o cabelo dele.”

De onde ele tirou essa ideia, noves fora a tesoura, Antonio não sabe. Diz que a distração frequente do pai provavelmente se deve ao gosto de Mammì por “ficar viajando nas próprias teorias”. Não só as teorias que viram ensaios sobre música e artes plásticas, ou aquelas que se tornam textos acadêmicos e aulas na faculdade – Mammì é professor de filosofia medieval na USP, especialista em Santo Agostinho, de quem traduziu as Confissões do latim para o português –, mas muitas vezes sobre temas do dia a dia: as razões para o jogador Lionel Messi, do Barcelona, não conseguir levar a Argentina a ganhar uma Copa do Mundo, por exemplo. “Ele tem essa frase, que sempre repete: ‘Tenho uma tese!’”, lembrou o filho, imitando o sotaque italianado.

No início de julho, sozinho no apartamento em que mora, Mammì reclamou do fato de há meses não poder encontrar Antonio e o filho mais novo, Bruno. Passou a ver os dois apenas em conversas por vídeo, no computador. De resto, a longa quarentena, iniciada em março, não o incomodava.

O curso daquele semestre na faculdade – sobre o conceito de “vontade” em Agostinho – havia sido adaptado para um esquema de aulas por teleconferência. Mammì saía de casa apenas para ir ao supermercado ou dar uma volta solitária pelo bairro. Ocupava-se com prazer das pilhas de livros que acumula no escritório. Às vezes tocava piano. Numa das conversas com a piauí, pediu licença um segundo para receber uma garrafa de vinho que havia encomendado.

“Eu consigo me manter ocupado numa situação doméstica”, explicou. “Só que isso ao mesmo tempo acentua uma certa tendência autista minha. E eu preciso reagir de alguma maneira a ela. Posso passar dois dias sem falar com ninguém, sem dizer uma palavra. Não tenho dificuldade nisso.”

Depois especulou que o mundo talvez caminhe para uma versão mais amena desse tipo de distanciamento, com adoção frequente do trabalho em casa. “Está funcionando. Mas eu não queria que continuasse assim. Tem esse discurso, e acho que vai mesmo acontecer: muita coisa vai acabar ficando só home office. Mas é um empobrecimento. Quando você vai ao trabalho, fala com o guarda, com a moça da limpeza, não é só a sua turminha. Isso é a primeira coisa: cria uma situação social mais rígida. Depois, tem o fato de que o pessoal, quando trabalha, namora. Às vezes casa! Não é só a eficiência do trabalho que importa. Mas vai ser assim, porque custa menos.”

Mammì havia iniciado a sua quarentena particular um pouco antes do conjunto dos cidadãos de São Paulo, que se trancaram em casa – os que puderam – ali por meados de março. A fim de visitar um acervo de obras de arte, ele teve que viajar à Suíça no início do ano. Na volta, passou pela Itália para visitar a família. Chegou ao Brasil em meados de fevereiro, e logo apresentou sintomas de gripe. No início de março, sentindo febre, consultou um médico, que por via das dúvidas pediu um exame de Covid-19 e recomendou que Mammì permanecesse em casa.

Bender foi ao seu socorro. Fazia as compras no supermercado e levava os mantimentos para o ex-marido. Deixava as sacolas com o porteiro, pedindo que ele as mandasse por elevador para Mammì. Começou a temer que o procedimento, repetido, gerasse suspeitas. “Eu não queria assustar os vizinhos, porque senão ele ia ficar estigmatizado, ia virar o italiano doente do prédio.”

O diagnóstico demorou a sair. “Teve uma sobrecarga de testes naquele momento”, lembrou Bender. “Saiu, sei lá, uns quinze dias depois.” Tratava-se de um alarme falso, de toda forma. O resultado foi negativo.

Passados alguns meses da pandemia, Mammì fez comparações entre a situação na Itália – que acompanhou não só pelos meios de comunicação, mas em conversas frequentes com a irmã, que mora em Roma – e no Brasil. Como a muita gente, impressionava-o o modo de relação com a morte, de um lado e do outro do Atlântico.

“Falando com a minha família na Itália, dá a impressão de que a morte tem um sentido diferente. Aqui o sujeito diz: ‘Vai morrer gente, e daí?’ Seria impensável algum político europeu dizer isso. Como dizer ‘brasileiro se joga no esgoto e não acontece nada’. Imagina um político francês dizer isso sobre os franceses. Quanto tempo ele dura? Há coisas que lá parecem absurdas.”

Para tentar explicar essa diferença, o crítico se valeu da oposição clássica, na sociologia, entre “comunidade”, fundada em relações próximas, de vizinhança ou parentesco, e “sociedade”, onde imperam regras impessoais.

Uma versão dessa oposição ajudou a constituir a ideia de cordialidade, utilizada por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Mammì leu o livro assim que chegou ao país e diz que o conteúdo o impactou. No texto, Buarque de Holanda estabelece essa distinção entre dois tipos de solidariedade social: uma de tipo arcaico, que “existe somente onde há vinculação de sentimentos mais do que relações de interesse – no recinto doméstico ou entre amigos”; e outra, moderna, de tipo impessoal, fundada em regras que independem – que precisam ser independentes – de vínculos de parentesco, amizade ou vizinhança.

Em função do passado predominantemente rural e patriarcal da sociedade brasileira, dizia o historiador paulista, ainda prevalecia quando ele escreveu o livro, na década de 1930, o primeiro tipo de vínculo. É isso a cordialidade, essa preponderância da lógica e do espaço privado sobre o público. O que faz com que surja, completou Mammì, “uma coisa que é ao mesmo tempo uma força e uma fraqueza do Brasil: um conceito de comunidade mais forte do que o de sociedade civil; uma sociedade civil muito fraca do ponto de vista das relações institucionalizadas”.

Essa prevalência dos laços pessoais sobre os vínculos impessoais – a lei, as normas de convívio, regras de etiqueta –, que aparece no discurso do presidente Jair Bolsonaro, talvez ajude a explicar, avalia Mammì, por que as mortes de quem não é próximo ou parente tenham tido um significado diferente, para muitas pessoas, na Europa e no Brasil.

Ajuda a explicar, também, João Gilberto.

“Bossa nova é classe média, carioca. Ela sugere a ideia de uma vida sofisticada sem ser aristocrática, de um conforto que não se identifica com o poder. Nisso está sua novidade e sua força.”

A ideia aparece logo nas primeiras linhas de João Gilberto e o Projeto Utópico da Bossa Nova, o texto de 1992 na revista Novos Estudos. A vida sofisticada e confortável a que Mammì se refere, conduzida em apartamentos à beira-mar na década de 1950, tampouco se identificava com o mundo do trabalho, e basta lembrar o conjunto de imagens associado ao gênero – banquinho, barquinho, violão – para suspeitar disso. No conteúdo e na forma, a bossa nova articulou um certo projeto de modernidade e características pré-modernas da sociedade brasileira. Uma modernidade bem específica, capaz de deixar para trás um dos motores do progresso até então: a fábrica e os conflitos do mundo do trabalho. E uma característica pré-moderna em particular: a cordialidade, a prevalência do espaço privado sobre a ordem pública.

Dito assim, fica esquemático. A beleza do artigo está em mostrar como isso se relaciona intimamente com as características formais do novo gênero e, sobretudo, com a interpretação única de João Gilberto. Logo no segundo parágrafo, Mammì estabelece o contraponto que orientará o esquema do ensaio e lhe permitirá passar da canção ao contexto social, e vice-versa. Enquanto todo mundo, até então, via continuidade entre o gênero brasileiro e o jazz, o crítico italiano ressaltaria os contrastes entre as duas formas musicais – que se relacionavam, por sua vez, com diferenças entre as duas sociedades que as produziram, a norte-americana e a brasileira.

O jazz, com seus improvisos em sequência, executados pelos músicos do ensemble sobre uma base comum, de alguma maneira remete às tarefas específicas de tipo fabril. “A organização interna da big band, na década de 1930, repete a da fábrica, mas como que em negativo”, ele escreve. “A atividade do músico é altamente especializada, como a do operário na divisão taylorista do trabalho. O produto final, porém, não é o resultado da mera divisão de tarefas, e sim da adição de atos criadores.” Na bossa nova, em contrapartida, não funciona esse tipo de organização coletiva bem estruturada que dá margem à manifestação de improvisos individuais, diz Mammì. E aí deixamos as relações de produção para voltar à música.

Jazz é harmonia, bossa nova é melodia, define o crítico. Enquanto uma privilegia as estruturas de acordes, a outra se organiza a partir do canto. “Para um jazzista, compor significa encontrar uma estrutura harmônica capaz de infinitas variações melódicas. Para [Tom] Jobim, é encontrar uma melodia que não pode ser variada, já que ela é que é o centro estrutural da composição.” É por isso, continua o crítico, que as improvisações jazzísticas sobre temas de bossa nova em geral não funcionam bem. “As linhas melódicas do jazz são compactas, claramente seccionadas e organizadas em volta de centros tonais definidos. Na maioria dos casos, podem ser lidas como ornamentações da progressão harmônica. As melodias da bossa nova são compridas, complexas e livres. Não podem ser esquematizadas sem perder o caráter.” Sobre elas não se pode improvisar.

À dualidade melodia/harmonia, Mammì justapõe outro par: amadorismo e profissionalismo. Claro que tanto os músicos de jazz quanto os de bossa nova são profissionais – a questão é o valor que cada cultura e cada gênero musical atribui a esses tipos de atividade. Na bossa nova, o amadorismo não se confunde com desleixo, com falta de rigor: é antes um traço de estilo. Tom Jobim, sendo altamente rigoroso e profissional, estilizava o amadorismo e a informalidade. Há na canção brasileira “uma certa utopia lírica, uma vontade de trazer as relações de tipo informal para a esfera pública”, comentou Wisnik, ao falar sobre o ensaio do amigo.

No seu artigo, Mammì observa que um concerto de João Gilberto, “mesmo num estádio, mantém algo de uma reunião de apartamento, em que se pede ao convidado uma canção (com o risco, inclusive, de que ele não cante)”. O amadorismo como traço de estilo e a própria cordialidade, de que ele deriva, aparecem não apenas na relação com o público, mas no modo mesmo como o cantor interpreta, reinventa, as canções. No pulso da bossa nova, escreve Mammì, “a própria oposição forte/fraco é relativizada, torna-se fluida, como se o tempo ainda não fosse solidificado num movimento mecânico e deixasse espaço a variantes individuais”. A oposição forte/fraco, ele diz, mas poderíamos ler: os conflitos, as normas impessoais, o espaço público. “O pulso da bossa nova, e sobretudo o de João Gilberto, é uma pulsação doméstica, o correr indefinido das horas que ficamos em casa.”

O cantor baiano vai além em seu ultra-amadorismo. Mesmo o que geralmente tem caráter residual numa execução – o correr dos dedos nas cordas do violão, a respiração do intérprete, ruídos do ambiente – ganha significado e merece a atenção obsessiva de João Gilberto. “Até o ato de respirar, que faz um barulhinho, ele faz em tempos exatos”, comentou Mammì. “Tudo isso que seria resíduo, que você não considera, ele transforma em linguagem. Nada é descartável. E isso não é eficiente. Não dá para botar na partitura.” Não é, em suma, profissional. Ser amador, nesse caso, não é estar aquém do profissionalismo, mas além, observou Wisnik.

Lorenzo Mammì faz então uma derradeira contraposição, ao terminar o ensaio. “Se o jazz é vontade de potência, a bossa nova é promessa de felicidade.” Que promessa é essa? É, justamente, o “projeto utópico da bossa nova” de que fala o título, o de conciliar modernidade com cordialidade. “Essa ideia de uma modernidade comunitária, sem arestas, sem separação muito grande de funções é o que caracteriza a utopia brasileira.”

Afetuoso com o Brasil, o crítico não vê na cordialidade algo com efeitos necessariamente negativos – ou positivos. Sustenta a sua ambiguidade o tempo todo. “Essa ideia de comunidade é fundamental para entender a sociedade brasileira. É seu grande triunfo e sua grande fraqueza. Por um lado, é arcaico; por outro, é riquíssimo. Tem soluções surpreendentes. Faz com que de vez em quando a gente dê um pulo para a frente sem saber bem por quê. Tem momentos de muita vitalidade.”

É o caso da bossa nova. “Física e musicalmente, João Gilberto não sai de casa”, conclui Mammì, no ensaio. “É uma atitude que em geral seria rotulada como regressiva. Contudo sua música se projeta no futuro, possui uma carga utópica. Até um comercial de televisão, cantado por ele, comunica uma sensação de temporalidade suspensa que não é ócio, mas uma atividade que se produz naturalmente, sem sofrimento ou esforço, como por emanação.”

Lorenzo Mammì passou parte da infância, na década de 1960, no Centro de Roma, uma região “ainda popular”, com construções antigas e não muito valiosas, ele diz. O local de vida relativamente barata atraía intelectuais. Italo Calvino tinha casa ali, Natalia Ginzburg também. A mãe de Mammì, Renata, leitora voraz e dedicada, com sensibilidade e apreço pelas artes, gostava de puxar conversa com os vizinhos escritores.

“Na praça, tinha um mercado a céu aberto, e eles se encontravam lá”, explicou Mammì. “Calvino não era muito de conversar, não. Natalia Ginzburg tampouco falava mais do que duas frases por dia. Mas acho que ela gostava de ouvir. E a minha mãe era ótima conversadora.”

Ninguém nas gerações mais velhas da família de Mammì era propriamente intelectual. Seu avô materno possuía uma loja de peças de madeira, que tinha marceneiros como público-alvo. A mãe ajudava a atender os clientes. No meio do dia, parentes que trabalhavam no negócio vinham almoçar em casa. O mais querido pelo pequeno Lorenzo era o tio Sergio, tido por todos como um pouco “tonto”.

“Ele era evidentemente autista”, explicou Mammì. “Hoje em dia seria diagnosticado assim, com um leve autismo. Tinha todas as características. Desenhava mapas de cor. E havia essa história ótima, que minha avó contava. Quando criança, meu tio Sergio ficava olhando o relógio e depois ia brincar. Mas continuava a repetir ‘tique-taque, tique-taque’. Passava um tempo, minha avó ia até ele e perguntava: ‘Sergio, que horas são?’ Ele dizia: ‘Onze e vinte e três.’ Sempre acertava! Uma vez eu perguntei para a minha avó: ‘Mas você não se preocupou, não levou ao médico?’ E ela respondeu: ‘Não, de jeito nenhum. Era útil!’”

Na hora do almoço, tio Sergio tocava um piano de armário que a avó de Mammì, matriarca da família, havia comprado para distraí-lo. O sobrinho adorava ouvi-lo, encantado com o estilo fluido, um pouco kitsch, cheio de arpejos. O menino tinha grande prazer também quando colocavam para tocar um disco de Tchaikovski. Em determinado momento ouviam-se tiros de canhão, inseridos na peça pelo compositor russo. Os pratos e copos na cristaleira tremiam. “Tio Sergio tocando Fascination e as louças vibrando são as primeiras emoções musicais de que tenho memória.”

As primeiras leituras também vieram cedo. Aos 3 anos, Mammì ficou doente. Uma nefrite o deixou acamado por meses. Distraía-se olhando as figuras dos gibis e assistindo à tevê. Um dos programas se chamava Non È Mai Troppo Tardi (Nunca é tarde demais), dedicado à alfabetização de adultos. Entre o final dos anos 1950 e início dos 1960, explicou Mammì, o analfabetismo ainda era um problema numa Itália que só então deslanchava economicamente. “Havia um professor nesse programa, maestro Manzi, que ensinava a ler. Eu tinha os gibis, e os meus pais achavam que eu estava só olhando as figuras. Um dia comecei a ler em voz alta. Foram checar e descobriram que eu estava lendo.”

Do lado paterno, o avô tinha sido, muitos anos antes, funcionário dos Correios. Quando o partido fascista impôs a filiação compulsória de todos os servidores públicos italianos, ele se recusou a seguir a ordem de Mussolini. Foi demitido. “É curioso. A vida toda eu o vi como uma pessoa fraca, muito submetido à mulher. Bebia. Mas na verdade teve esse ato de coragem. Que, no fundo, definiu sua vida. Pelo resto da vida foi meio fracassado.”

O pai de Lorenzo, Oscar Mammì, era um homem forte, muito bem-sucedido. Começou a vida como bancário, participou do movimento sindical e entrou para a política. Foi vereador em Roma, mais tarde deputado, e finalmente ministro dos Correios e das Telecomunicações, nos anos 1980.

Do pai político, Mammì herdou a disposição para o debate. “Ele gostava de ganhar discussão. E era profissional! Eu tinha esse crivo, que me fez bem. O curioso é que eu nunca votei no meu pai, mas ele também nunca se ofendeu por causa disso.”

Nos anos 1970, enquanto o Partido Republicano, de Oscar Mammì, ajudava a dar sustentação a sucessivos primeiros-ministros, Lorenzo ingressou, no final da adolescência, num grupo de esquerda de inspiração maoísta, a Lotta Continua. Participou da ocupação de prédios abandonados no Centro de Roma, em apoio a uma população mais pobre, pequenos artesãos que não tinham condições de pagar aluguel.

Passados alguns anos de militância, acabou se desiludindo com as duas tendências em que aos poucos o grupo se dividiu. De um lado, os que procuravam o conflito armado. “Você ia a uma manifestação, e tinha gente que puxava o revólver. Eu já tinha uma resistência ao uso da violência, uma rejeição pessoal, mais emotiva. Minha impressão era a de que procuravam uma justificação para o uso da violência e sentiam prazer naquilo.” De outro, uma corrente mais anárquica, que advogava o valor de “viver o momento presente”, uma coisa meio inconsequente, segundo o hoje crítico de arte.

Ele se lembra de certo dia, no interior de um palácio do século XVII que o grupo havia ocupado, se incomodar com as manifestações dessa fração mais bicho-grilo. “De repente tinha lá um palhaço com pernas de pau. Eu me lembro dessa imagem, de eu ficar olhando para o palhaço, e então pensar: ‘Quer saber?’ Depois disso, me mudei para Florença.” Já cursava sociologia, em Roma. Disse aos pais que na cidade ao Norte o curso universitário seria melhor, com menos gente. “Era o momento da universidade de massas, em que se entrava livremente. Tinha professor que dava aula com megafone. Sociologia era muito frequentada, e história da música era menor. Mas era uma desculpa. Eu já queria ir embora.”

Sua irmã, Alessandra Mammì, três anos mais velha, afirma que o irmão, como muita gente da mesma idade e da mesma época, ainda estava tentando se encontrar. “Ele estava fugindo de Roma, de uma certa maneira. Para se testar, ver o que conseguia fazer longe de uma situação familiar muito confortável. Longe de um pai muito poderoso, longe de uma mãe muito amorosa. Tudo isso talvez fosse demais.”

O irmão, de toda forma, voltava com frequência para Roma. Numa dessas visitas, conheceu Maria Emilia Bender, que ao terminar a faculdade decidiu passar um ano na Itália, entre 1979 e 1980, na companhia de uma amiga. Hospedaram-se na casa de Alessandra. A irmã de Lorenzo já conhecia estudantes brasileiros na Europa, e seu apartamento acabou virando um porto seguro para quem vinha de São Paulo ou do Rio de Janeiro. Mammì e Bender só viriam a namorar, porém, quando ela fez uma segunda viagem à Itália, em 1984.

Alessandra Mammì acha que o irmão afinal se encontrou em São Paulo. “Ele ama o Brasil, que agora é o país dele. Ele se mudou por causa do amor pela Maria Emilia, claro, mas também tentando responder a essa pergunta sobre quem ele era. Acho que o Brasil é perfeito para o Lorenzo. É um país menos agressivo, de uma certa maneira. É mais gentil, mais calmo, como ele.”

Há uma época de ouro da cultura, posterior à Segunda Guerra Mundial, que talvez supere, em importância e capacidade inventiva, os cimos alcançados pelas vanguardas do início do século XX. Lorenzo Mammì já defendeu essa ideia em mais de uma ocasião. Essa espécie de Renascença recente, que se ergue depois dos fascismos e da destruição nos campos de batalha da década de 1940, coincide com o avanço do Estado de bem-estar social, com os ganhos de produtividade e de qualidade de vida, com a ascensão da juventude e do estudante como atores sociais. De certa forma vai dos anos 1950, seu auge, até, com boa vontade, a década de 1980.

“É um momento de passagem, em que você não está mais preso na produção industrial, que no fundo é violenta, leva à ditadura e à guerra, e começa a viver no mundo do consumo”, argumenta Mammì. “Mas o consumo ainda não é tal que aniquile a experiência individual, das relações mais próximas.” Numa fórmula, cunhada pelo crítico para definir esse momento de liberdade: a fábrica sai de cena, mas ainda não se instalou plenamente o circo.

As identidades individuais e as relações sociais passam então a ser menos determinadas pelo lugar de cada pessoa na esfera da produção, e começam a ser constituídas sobretudo por suas escolhas de consumo. “Há o fato de você ter mais tempo. De poder viajar, nem que seja de carona. De que o intervalo entre a infância e a inserção no mundo do trabalho aumenta. Curiosamente, o mercado te oferecia opções para se inventar de maneiras diferentes. Os movimentos da década de 1960 foram gerados pela sociedade de consumo, num momento de liberdade entre uma coisa e outra”, entre a fábrica e o circo. Mas esse momento passou, defende Mammì.

“Se você pensar, todos os grandes movimentos da década de 1960 e 1970 foram também movimentos de consumo: o disco, a motocicleta, o cinema, a roupa. Você tinha a possibilidade de dar peso e importância ao que seria supérfluo, mas não com uma aceleração tal que tornasse tudo obsoleto o tempo todo.” É nesse tempo que vivemos agora, de aceleração vertiginosa, com menos tempo e liberdade, afirma o crítico. “As coisas se diluem quando se aceleram a um tal ponto que impedem uma apropriação reflexiva. Isso impede que as coisas criem realmente significado.”

Quando se mudou para o Brasil, em 1987, Mammì despachou da Itália um contêiner com seus livros e discos. Ele já não se recorda de quantos eram, mas Maria Emilia Bender se lembra de um conjunto que pesava 300 kg e que se juntou aos tantos que ela já tinha, se espalhando pela casa, do quartinho dos fundos à sala, e em estantes nos quartos de dormir.

Antes da mudança, ele não conhecia quase nada do Brasil. “Eu não sabia quem era Tom Jobim. Achava que Garota de Ipanema era do Toquinho. E imaginava São Paulo com praia e palmeiras. Mas conhecia o futebol, claro.”

Em São Paulo, começou a procurar e a consumir tudo que podia sobre o país – ou seja, a comprar mais livros e discos. “Fui com muita fome. Ia para os sebos e comprava tudo. Até em loja de umbanda comprei também. Eu tinha curiosidade. Não sabia o que precisava aprender.”

Logo contou com a orientação de um novo amigo, a quem diz dever não só parte do repertório, mas em boa medida a maneira de ver e interpretar artes plásticas, música e a sociedade brasileira: Rodrigo Naves. Por acaso, Naves era casado com uma amiga de Bender. Em breve ele se tornaria também um dos principais críticos de arte do país, ajudando a mudar a forma como são compreendidos alguns dos nossos principais artistas. Coincide com a chegada de Mammì ao Brasil a produção dos ensaios de Naves que viriam a resultar no livro A Forma Difícil, uma das obras mais influentes sobre artes plásticas escritas no país.

Formado em jornalismo pela USP, Naves começou a se dedicar ao estudo da arte quando participava do centro acadêmico da faculdade. Em meados dos anos 1970, ele e seus colegas de movimento estudantil organizavam discussões sobre cultura no campus da universidade, que aconteciam aos sábados pela manhã. Apesar do horário ingrato, “o auditório ficava lotado”, lembra o editor Matinas Suzuki, que foi colega de Naves na USP e, anos mais tarde, na Folha de S.Paulo. Para um desses debates, trouxeram do Rio o crítico de arte Ronaldo Brito. “Ele foi a pessoa que mais me influenciou”, comentou Naves.

“Ronaldo Brito foi o crítico brasileiro mais influente da nossa geração”, explicou Mammì. Foi Brito o responsável por estabelecer um novo cânone das artes plásticas no país. “Ele disse ‘são esses’: Hélio Oiticica, Mira Schendel, Iberê Camargo, Sergio Camargo, Amilcar de Castro. O que agora é óbvio, foi ele que organizou.” Mas, enquanto Brito tinha “mais uma postura de esteta, de relação direta com a obra”, Rodrigo Naves passou a ter “essa preocupação da relação da obra de arte com a história”.

Na crítica de pintura, escultura e instalações, Naves procurava relacionar forma artística com forma social, encontrando particularidades das obras feitas no Brasil que remetiam a características específicas da sociedade brasileira. Procedia, em grande medida, à maneira do que o crítico Roberto Schwarz havia feito com a literatura, ao identificar traços dos caprichos ideologicamente elásticos da elite do país – capaz de conciliar o liberalismo que lhe interessava com a manutenção da escravidão, no século xix – na prosa volúvel de Brás Cubas.

Naves queria entender as diferenças de estilo entre a melhor pintura feita no Brasil em meados do século xx, de um lado, e as formas modernas da arte europeia ou norte-americana, de outro – formas que, no hemisfério Norte, se inseriam num contexto de relações sociais e de produção também modernas, capitalistas.

Pelas mãos das vanguardas europeias, a pintura abandonou a perspectiva, a profundidade ilusionista que organizava o espaço, e afirmou o seu caráter formalmente superficial, chamando a atenção para os elementos que antes eram sobretudo meios de expressão – a linha, a cor, as formas. “A afirmação da superfície na arte moderna era o correlato de uma existência sem fundamentos, sem deuses, poderes hereditários ou ordenações dadas”, escreveu Naves. “No mundo da luta de classes, tudo estaria em jogo, sem exceções.”

Essas formas fortes, bem marcadas, continuava o crítico, teriam encontrado dificuldade para se estabelecer entre nós. Mesmo nossos melhores pintores, como Alberto da Veiga Guignard e Alfredo Volpi, pareciam utilizar essas possibilidades modernistas de maneira tímida, hesitante. Aí estaria a especificidade desses artistas: a sua riqueza, cheia de originalidade, e também o seu limite. Os quadros de Volpi, por exemplo, apesar de serem modernos em sua geometria e quase abstração, devem muito ainda, nas formas sem transições bruscas, nas cores lavadas e nas tênues variações tonais, a um mundo artesanal, pré-industrial. A timidez da forma, nesses artistas, teria a ver com uma sociedade “pouco estruturada e institucionalizada”, segundo Naves.

Guardadas as devidas diferenças, algo desse modo de ver o mundo, de relacionar história e formas artísticas, também viria a aparecer nas críticas de Mammì. “Eu comecei a escrever sobre arte um pouco copiando o Rodrigo”, ele diz. Por meio do amigo, Mammì também se inseriu, muito rapidamente, num ambiente de intensa atividade crítica e de criação, na São Paulo do final dos anos 1980.

Rodrigo Naves e o crítico Alberto Tassinari haviam cursado disciplinas de filosofia juntos, onde foram colegas de Nuno Ramos, que viria a se tornar não apenas um dos expoentes das artes plásticas brasileiras, como também um importante crítico e ensaísta. Com outros pintores da mesma idade, todos muito jovens, Ramos havia participado do grupo Casa 7, uma espécie de banda de rock das artes plásticas na primeira metade da década de 1980. Dali saíram alguns dos melhores artistas plásticos surgidos depois da redemocratização.

Era um ambiente raro, em que a produção artística conversava com a nova produção crítica. Naves, Tassinari e outros intelectuais se reuniriam, no final dos anos 1980, para ler e estudar com rigor obras clássicas de estética. Mammì se integrou ao grupo. “Estudamos a Crítica do Juízo, de Kant, depois a estética do Hegel, Nietzsche, Walter Benjamin”, lembrou Tassinari. “E naufragamos na Teoria Estética do Adorno. Aquilo era uma pedrada. Paramos no meio. O Lorenzo uma vez me disse que depois ele continuou essa leitura sozinho.”

Tudo isso aconteceu, segundo Tassinari, pouco depois de o amigo – “um cara que nós importamos direto da Renascença para o Brasil” – ter chegado ao país. “O Lorenzo entrou na dança rápido. O meio já estava se formando em São Paulo, galerias, artistas novos, e ele logo escreveu sobre artes plásticas. Depois participou desse seminário.” Tampouco demorou para Mammì conseguir trabalho na universidade, primeiro no departamento de música da USP, e mais tarde na Faculdade de Filosofia. O crítico iria se tornar também um curador importante, atividade que exerceu entre 2015 e 2018 no IMS, o Instituto Moreira Salles.

“O Lorenzo teve um espaço de potência muito grande aqui”, observou Nuno Ramos. “Como outros estrangeiros antes dele, o Otto Maria Carpeaux, o Paulo Rónai. Ele está nessa linhagem. A diferença é que ele teve, no caso das artes plásticas, uma conexão com uma cena que estava se fazendo. Ele entrou nesse lugar. Isso foi muito legal para nós. Imagino que para ele também.”

Mais ou menos nessa mesma época a que Ramos se refere – final dos anos 1980 –, Rodrigo Naves se tornou editor da revista Novos Estudos, depois de ter coordenado por alguns anos o suplemento semanal de cultura da Folha de S.Paulo, o Folhetim. Mal assumiu a função, chamou Mammì para escrever sobre música. O crítico recém-chegado da Itália produziu para a revista um artigo sobre Villa-Lobos, depois outro sobre Glenn Gould, e afinal o texto que ajuda a entender João Gilberto. Ao ser questionado sobre as razões que o levaram a encomendar o ensaio sobre a bossa nova a Mammì, o autor de A Forma Difícil, conhecido pelo jeito turrão e ao mesmo tempo amoroso, foi sucinto na resposta: “Porque ele conhece música. Em geral, quem escreve sobre música escreve sobre letra. Ele, não.”

Quase duas décadas depois daquele ensaio, Lorenzo Mammì voltou ao tema, num artigo para a Folha de S.Paulo (No Mesmo Lugar, Muito à Frente, de 2011) em que fazia um contraponto entre João Gilberto e Miles Davis. O “projeto utópico”, apresentado de maneira breve ao final do texto de 1992, agora era desenvolvido e relacionado com o tema do intervalo entre “a fábrica e o circo”, que marcou a década de 1950.

Essa utopia de uma “modernidade sem conflitos” que escapa ao mundo do trabalho, expressa na obra do cantor baiano, era de um lado bastante brasileira, dizia Mammì, mas também se relacionava com um espírito de época mais abrangente. “A nova modernidade parece fluir sem esforço e, por isso mesmo, se parece com uma situação pré-moderna, não sistêmica, comunitária”, ele escreveu. “É uma utopia recorrente na época: quando as máquinas assumirem todas as tarefas, as hierarquias de valores vão se inverter. Tudo aquilo que é irrelevante passará a ser fundamental, porque é a outra face da vida, que o trabalho não contempla. […] Por alguma razão, o ideal brasileiro de modernidade se identificou com essa utopia de maneira mais profunda e persistente do que em outros países. E João Gilberto é sua mais perfeita expressão, inclusive pela teimosia em ficar nesse lugar indefinido – fora da fábrica, mas não dentro do circo.”

Teimosamente fora do tempo, pairando sobre a história. A bossa nova tem algo disso. “Seu lugar de eleição é à beira-mar, dando as costas à cidade, mas sem entrar na água. Seu tempo é à tardinha, tarde demais para fazer alguma coisa, cedo demais para sair.” João Gilberto continuaria a se repetir pelas décadas seguintes, sem no entanto esgotar a sua força. A expressão formal dessa permanência e suspensão – dessa utopia – é o modo como as canções que ele interpreta parecem estar em permanente loop, num movimento circular sem início e sem fim. “As introduções das canções parecem colhidas no meio de uma conversa já em andamento, e os finais sugerem quase sempre que a melhor coisa a fazer seria recomeçar tudo de novo – e de fato João Gilberto costuma repetir três ou quatro vezes a canção inteira.”

Fora da canção e do palco, a história seguiu sua marcha, é claro. Não só na aceleração do tempo de consumo – na entrada, de vez, no mundo do circo, “com suas regras rígidas” e “assentos numerados” –, mas também nas mudanças urbanas radicais e conflituosas ocorridas no Brasil, da década de 1950 em diante. Embora, naquele momento de ouro para a cultura, a urbanização violenta que viria depois ainda não tivesse dado as caras plenamente, “estavam se alicerçando as bases para isso ocorrer”, observou Mammì. Com o inchaço das cidades, viria a violência, que não deixa de ser uma versão da cordialidade. Onde faltam regras impessoais e as relações são resolvidas caso a caso, a passagem do afeto à agressão se dá com assustadora facilidade.

Um pouco como contraponto – embora não tenha sido bem-sucedido –, o projeto de Brasília se relacionava com essa história, ao buscar pôr “entre parênteses o crescimento desordenado das cidades do litoral”, escreve o crítico italiano num ensaio que se chama Encalhes e Desmanches: Ruínas do Modernismo na Arte Contemporânea Brasileira, reunido a outros artigos sobre artes plásticas no livro O que Resta, de 2012.

“Construir uma nova capital em Brasília, nesse contexto, era por sua vez um gesto simbólico, que se pretendia tivesse consequências reais: deslocar o eixo demográfico e comercial para o centro geométrico do país (uma região semideserta), criar um modelo de urbanização racional em oposição à urbanização selvagem do litoral”, ele diz. “Hoje sabemos que o arcaico contaminou o moderno, mais do que o inverso.”

A história continuou também nas artes. Nesse mesmo ensaio em que fala de Brasília, Mammì desenvolve uma ideia de Rodrigo Naves, que diz respeito a alguns de nossos maiores artistas, como Hélio Oiticica e Lygia Clark. Naves mostra como os dois, Oiticica e Clark, fizeram um movimento essencialmente moderno ao criar instalações e obras táteis, ou seja, ao trazer os seus trabalhos para o espaço, “colocando-os numa situação de maior liberdade em relação aos limites impostos pelo plano pictórico”. No caso de Oiticica, isso vai dar nos Penetráveis, instalações em que o espectador pode e deve entrar, percorrendo uma espécie de labirinto.

O interessante é que essas obras “descrevem um movimento quase paradoxal”, continua Naves: “A trajetória que conduz do plano ao volume gera formas cujo sentido é de uma interioridade crescente. A conquista do espaço, em última análise, não corresponde a uma exteriorização das formas, e sim a um ensimesmamento problemático.” Em vez de remeter a um espaço público, compartilhado, elas levam quem as experimenta para dentro.

Mammì retoma a ideia desse ponto, a fim de analisar obras posteriores. Mostra como a instalação Através, de Cildo Meireles, faz referência aos Penetráveis de Oiticica, mas colocando problemas para a “vivência do espaço, a divisão entre interior e exterior, a fusão de corpo e arquitetura que fora a aspiração da geração anterior”. Em vez de convidar a ser percorrida, penetrada, a obra é um “labirinto de obstáculos”: cercas, redes, cordões de proteção. O chão da instalação, de resto, está coberto de cacos de vidro.

De maneira mais geral, o crítico avalia que “a busca por um compromisso entre orgânico e geométrico, entre afetivo e racional – em poucas palavras, entre sujeito e objeto – caracteriza toda a arte brasileira posterior a essa experiência”, posterior a Brasília e à década de 1950. “Mas com um grau sempre menor de otimismo e sempre crescente de inquietação.”

No início de março, Nuno Ramos, que tem feições de menino, fez 60 anos. Fazia tempo que não celebrava o próprio aniversário, mas dessa vez resolveu chamar os amigos. “Não era uma festa gigante, mas tinha umas 150 pessoas. Foi até de manhã.”

Mammì e Bender foram juntos, dividindo o táxi. É comum que se organizem assim. “Normalmente eu pego um táxi aqui em casa e passo lá, ou o contrário”, ela explicou. “Estava lotada a festa. Todo mundo se abraçando. Copo passando. Você dá um gole aqui, outro lá. Alguém fuma o cigarro de alguém. E o Lorenzo, resfriado.”

José Miguel Wisnik também foi. “Um dos assuntos da festa era a epidemia, que ia chegar ao Brasil. Ainda parecia distante, mas já não era. Era iminente. Poucos dias depois começou o isolamento.”

Entre a confraternização e o confinamento geral, Mammì sentiu febre, fez o teste e iniciou sua quarentena antecipada. “Se desse positivo, ele ia ter que ligar para Deus e o mundo”, imaginou Bender. “Você já pensou se essa flor que é o Lorenzo, esse santo homem, traz a Covid para a festa?”, especulou Ramos.

Mais de um mês depois da festa e já com algum tempo de quarentena, o artista plástico contou que tinha acabado de receber as fotos daquela noite, com imagens de aglomeração de pessoas que pareciam pertencer a uma outra época. “Acho que foi a última festa. Pouco tempo depois, fechou. Começou a quarentena. Foi o baile da Ilha Fiscal não sei bem do quê.”

Em casa, distante dos amigos, com o governo Bolsonaro esticando cada vez mais a corda do que era possível e aceitável nas relações institucionais e humanas, Ramos se disse irritado. “Se eu não tomar cuidado, eu entro em desespero. Estou tentando não ver as notícias faz uns dias. Senão eu começo a fabricar uma história na minha cabeça, eu fico louco. Tenho a impressão de que estamos vivendo um extermínio generalizado de tudo e de todos. De que não há nada além disso no ar, e que a nossa sociedade civil é incapaz, não consegue fazer algo para tirar esses malucos daí.”

Durante a quarentena, ele continuou a falar com Mammì pelo telefone. A conversa ajudava. “Eu nunca vi o Lorenzo desesperado. Há poucos dias, nos falamos. É engraçado, ele sempre vê um outro lado. Ele tem um sentimento de que a vida é mais sólida, que eu não tenho. Eu não sei onde esse negócio vai parar, se esse cara ficar mais tempo no poder. Não sei o que é que sobra. Certamente vejo esse momento agora com mais desespero do que ele.”

Mammì e Ramos, de toda forma, têm visões semelhantes sobre o valor da vida, ou a aparente falta de valor de muitas vidas, no país. Também a Ramos, Mammì tinha mencionado as conversas com a irmã, quando ambos se indagavam sobre os significados distintos do acúmulo de vítimas da Covid-19 no Brasil e na Itália.

“Eu me pergunto a mesma coisa”, disse o artista plástico. “O que quer dizer morrer, aqui? Sessenta mil homicídios é um Vietnã por ano. Você junta a isso os acidentes de carro, dá dois. O que quer dizer tolerar isso? Achar que a vida não vale nada? Essa me parece ser a sentença brasileira. Vem da escravidão, mas não consigo fazer esse vínculo com clareza. Eu não sei. O que sei é que esse enlouquecimento completo que estamos vivendo, incluindo a pandemia, continua um pouco nesse lugar, da vida não valer. Parece que a vida não tem importância. Não sei descrever, não sei quem descreve.”

O acúmulo de mortos por homicídio a cada ano, muito antes da pandemia do novo coronavírus, representavam “números bolsonaristas”, disse Ramos. “Isso é o Bolsonaro dentro dos governos democráticos, que tentaram melhorar o país.” Esse esforço político, que gerou conquistas desde a redemocratização e em particular sob Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva, parece ter ficado incompleto, avalia o artista plástico (de quem a piauí publica, nas quatro páginas seguintes, um trabalho sobre a dificuldade de expressar em palavras a tragédia que vivemos).

Em sua festa de aniversário, havia uma roda de samba. No lugar onde os músicos se reuniam, colocaram um aviso, com uma frase que Ramos havia visto impressa num bar do Rio de Janeiro: “Só puxe um samba se souber a segunda parte.” De fato, não deixa de ser frustrante quando quem propõe uma canção não consegue levá-la até o fim. “Essa frase tem a ver com o que a gente está vivendo”, explicou o artista plástico. “Você tem que ir até o fim. Alguma coisa parou no meio. Parou no meio porque ninguém brigou. Ninguém distribuiu renda mesmo, por exemplo. De verdade, quando dava.” Ninguém se ocupou satisfatoriamente do problema da violência. “A gente precisava ter ido até o fim.”

O quanto esse “Bolsonaro dentro dos governos democráticos”, de que fala Nuno Ramos, revela sobre a sociedade que o elegeu? Ao ser indagado se havia alguma relação entre o atual presidente e a descrição que ele faz da cultura brasileira, Lorenzo Mammì foi enfático: “Com a utopia brasileira, com a modernidade sem conflito, não tem nada a ver”, disse. Mas completou: “O Bolsonaro é o lado B, o lado obscuro, da ideia comunitária: representa ‘os meus amigos’, um grupo que assume o poder, sem nenhum compromisso com a verdade ou com o resto da população, e cuida de saber como é que faz para se manter lá. Isso é o que ele faz desde que era deputado. Tem a ver com esse lado comunitário do país. Tem a ver com o homem cordial do Sérgio Buarque, mas não com a utopia da bossa nova.”

No ensaio sobre Brasília e a arte contemporânea brasileira, Lorenzo Mammì apresenta a capital projetada por Lucio Costa e Oscar Niemeyer como uma espécie de monumento problemático: “Um grande corpo branco, encalhado no meio do Planalto Central, cujas funções vitais estão enfraquecidas, e cujas articulações internas vão perdendo progressivamente sentido.”

Parece pessimismo ou fatalismo, mas na verdade não é. Brasília é um monumento à nossa utopia de modernização sem conflitos, disse Mammì, e a utopia, é claro, não se realizou. “Mas as utopias não são para funcionar. São para dizer para onde queremos ir. Brasília já nasce como obra simbólica. Não é funcional. Os prédios de Brasília são uma espécie de alegoria do modernismo, mais do que modernismo. Você tem que ter uma utopia não para ser alcançada, mas para te nortear. Isso é que te caracteriza culturalmente: quais são suas utopias? Brasília e a bossa nova são a nossa utopia.”

Na conclusão do ensaio, escrito em 2005, o crítico diz algo que parece fazer sentido redobrado depois de 2013, do 7 a 1, de Bolsonaro. “Talvez toda história comece por um grande fracasso, um fracasso que valha a pena”, ele escreve. “Nesse sentido, Brasília deu ao Brasil uma história, porque deu ao Brasil uma ruína.”

Por Rafael Cariello, na Revista Piauí  


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