Com a pandemia, artistas e escritores acham nas
regiões serranas muito mais do que um refúgio
Em carta escrita para sua editora
italiana em 24 de julho de 1959, a poeta americana Elizabeth Bishop
(1911-1979), vencedora do Pulitzer e autora homenageada na próxima edição da
Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), revelava: “Estou vivendo no
Brasil há quase oito anos, a maior parte do tempo nas montanhas, perto de
Petrópolis. Volto a Nova York quando posso, mas aqui é meu verdadeiro lar
agora”.
Bishop, de fato, viu Petrópolis, no Rio de Janeiro, mais precisamente a Vila
Samambaia, como seu verdadeiro lar por cerca de dez anos. A arquiteta Lota de
Macedo Soares, mulher da autora, fez questão de acrescentar ao projeto da
pomposa casa que lá construía um estúdio independente, onde Bishop podia
escrever olhando as cachoeiras e a montanha. “Tenho que te deixar porque uma nuvem
está entrando pela janela”, escreveu em outra carta. “A passagem de Bishop por
Petrópolis marca a primeira vez que ela teve um espaço só dela, para escrever.
Era o reconhecimento de que o que fazia era um trabalho, e isso teve um
impacto psicológico muito grande nela. E, do ponto de vista temático, ela
descreveu aquele lugar em diversos poemas”, disse seu tradutor, o poeta e
professor Paulo Henriques Britto, citando, por exemplo, o poema “Canção do
tempo das chuvas”, publicado em 1965.
Bishop não foi a única grande escritora a refletir em seus textos a vida na
região serrana. Outros grandes nomes, como Manuel Bandeira e Raul de Leoni,
também têm suas trajetórias marcadas por uma vida em Petrópolis — nos casos
deles, muito por conta do ar puro e constante, obrigatório para o tratamento de
tuberculose. Foi na mesma Petrópolis que, em 1942, o escritor austríaco Stefan
Zweig tirou a própria vida, abalado com a possibilidade de a Alemanha nazista
vencer a guerra. E até Carlos Drummond de Andrade teve como base a vida nas
montanhas: nasceu e passou a infância em Itabira, Minas Gerais, localizada na
Serra dos Alves.
Com a pandemia do novo coronavírus, porém, as regiões serranas Brasil afora —
mas a fluminense, em especial — deixaram de ser vistas como um escape para um
bucólico fim de semana prolongado ou uma opção para aqueles que preferem
relaxar nos feriados festivos. Elas se tornaram, mais do que nunca, um ponto de
fuga das metrópoles, os grandes epicentros da proliferação da Covid-19. A
corrida para as montanhas foi tamanha que várias cidades serranas impuseram
barreiras em suas entradas — com aferição da temperatura e uma regra explícita:
só pode entrar morador.
É curioso, porém, observar como a literatura e a arte em geral foram mudando a
maneira como descrevem e retratam regiões serranas. Na literatura fantástica,
por exemplo, a montanha e a floresta são costumeiramente vistas como lugares
selvagens. Nos escritos até o século XVIII, essas regiões eram retratadas
também como obstáculos para chegar a um lugar melhor, com uma certa aura de
obscuridade.
Diante do crescimento das cidades e do surgimento de comunidades habitáveis nas
montanhas, além do movimento naturalista na arte, essas regiões passaram a
ganhar o carimbo de refúgio. Agora, com a pandemia, o jogo virou de vez.
“Cidades são fundamentalmente, para usar o jargão da pandemia, aglomerações.
São uma decisão histórica moderna de vivermos aglomerados, em vez de
espalhados”, definiu o professor de filosofia na PUC-Rio Pedro Duarte, que
escreveu na quarentena o livro A pandemia e o exílio do mundo (Bazar do Tempo).
“O que a Covid-19 fez foi tornar qualquer outra pessoa uma potencial ameaça, já
que pode portar o vírus. Com isso, o campo e ambientes rurais, muitas vezes
deixados para trás por serem selvagens, parecem ter se tornado menos
‘selvagens’ do que a cidade. Mais seguros. O que é curioso, nesse processo, é
que ele explicita como a pandemia é, simultaneamente, algo natural e social,
não humano e humano. O vírus é natural, mas a pandemia, em si, não só. Tanto
que fugimos da vida social para fugir da pandemia.”
E são muitos os moradores ilustres que, durante essa prolongada e forçada
quarentena, encurtaram a alcunha “casa de campo” para apenas “casa” mesmo. Um
deles é a atriz e escritora Fernanda Torres, que redigiu um extenso e intenso
relato de sua rotina isolada com a família em Petrópolis, algo que sempre quis
experimentar, “mas a vida nunca permitiu”. “A serra nos salvou da depressão, da
praga e da ansiedade dessa hora funesta”, resumiu em uma das frases enviadas a
ÉPOCA.
Fernanda contou que passou a reparar em fenômenos naturais, como o caminho do
sol, a mudança do tempo, as chuva inesperadas. Bordou calendários, “atacou uma
horta”, assistiu a uma chuva de meteoros com o filho e a mãe, a atriz Fernanda
Montenegro, fez uma colher e um garfo de pau com canivete. “Também achei tempo
para aprender italiano e ler a Ilíada e a Odisseia, garantiu. “E, quando eu já
estava acostumada com esse ritmo, surgiu um capítulo da série Amor e sorte, do
Jorge Furtado, para fazer em família. Foi a passagem. Dedicamos os últimos 15
dias de julho ao trabalho frenético naquele lugar que nos acolheu.
Dez, 12 horas por dia carregando carrinho, montando trilho, fazendo figurino,
luz, maquiagem, cenário, atuando.” A produção envolveu mãe, marido, filhos,
enteado e marcou a transição para a volta ao Rio, já que o marido, Andrucha
Waddington, vai dirigir a série Sob pressão.
“Não sei o que teria sido sem a serra. Sinto culpa por ter tido o privilégio de
passar esse período tão difícil num lugar especial, na natureza, na calma.
Culpa de essa tragédia ter proporcionado uma convivência familiar que jamais
teríamos se o mundo não tivesse parado. Hoje, mais do que nunca, penso no quão
absurdo é o tempo exigido pelo trabalho, menos o meu e mais o de milhares
de pessoas que passam mais tempo no escritório, no trânsito e na fábrica, do
que nas suas casas”, desabafou, fazendo questão de que o relato não saísse
“como uma quarentena feliz, diante de tanta desgraça”.
O agridoce relato de Fernanda joga luz também sobre uma mudança clara que esse
estreitamento quase forçado das relações entre seres da cidade com suas casas
no campo deixou claro: a vida por lá pode ser produtiva em termos
profissionais, para além do trabalho de autodescobrimento, reflexão e
tudo mais. É o que o músico George Israel chamou de “sincronicidade da pandemia
com a chegada da internet de banda larga em lugares que não tinha antes”.
Afinal, uma coisa é fazer como Elizabeth Bishop e escrever poesias enquanto as
nuvens invadem sua casa. Outra é enviar grandes arquivos de música gravada para
um produtor. “Minha internet aqui em Teresópolis, por exemplo, é melhor do que
a do Rio. Por isso eu vejo um pessoal cogitando ficar mais por aqui, dividir
melhor o tempo, pelas possibilidades de home office. Está sendo uma vida muito
mais viável, em termos de produção de música. Gravei vários solos de sax que me
pediram, estou tocando com meus filhos, criando projetos com eles. Fora todas
as vantagens e descobertas pessoais”, disse Israel.
Como fica bem claro em seu Instagram (@anaduraes), a artista plástica Ana
Durães também tem usado seu isolamento no Vale das Videiras, em Petrópolis,
para produzir. Afinal, estar em refúgio consigo mesma, para quem vive em
ateliê, não é exatamente uma novidade — o confinamento, sim. “Estou trabalhando
muito e está surgindo uma série nova. Do ponto de vista individual, sinto até
um pouquinho de vergonha de dizer que está maravilhoso, mas é difícil dizer
isto vendo a tragédia que se abateu sobre o mundo e principalmente sobre o
Brasil. Não dá para ser feliz vendo tantas mortes, tantas vidas sendo ceifadas.
Uma das melhores reflexões é constatar que preciso muito do contato com a
natureza. Preciso também de uma espécie de descompromisso, para surgirem ideias
novas. Um pequeno ócio”, contou a artista plástica. Ela lista o pilates por
WhatsApp, o desenvolvimento de uma horta e a meditação como hábitos
que pretende manter dessa experiência perto do verde. “Acho que estou bem mais
focada. Isso a natureza me trouxe, ou melhor, me fez ver a minha real
natureza.”
A Petrópolis de Manuel Bandeira era diferente da de Elizabeth Bishop, que
certamente é muito diferente da de Eric Nepomuceno, que lá passa sua
quarentena. O escritor carioca de 72 anos pode até estar observando cachoeiras,
se inspirando com as nuvens, as fases da Lua e demais fenômenos naturais. Mas
também está, com a ajuda do filho, o produtor e cineasta Felipe Nepomuceno, um
criador de conteúdo digital, realizando a série de vídeos Leituras da quarentena.
A isso, soma as receitas de truta, camarão, frango, já que nunca cozinhou tanto
na vida. Mas, mais do que novos hábitos serranos, contou, ele deixou de lado
alguns deles, como o de dormir tarde e pouco e o de se alimentar mal.
Uma coisa, porém, ele acha que não vai mudar: sua relação com a cidade grande:
“Não sei como será esse reencontro, trato de não pensar muito no assunto.
Aliás, nas cidades onde morei e frequentei nunca fui de perambular muito. Fico
nos meus cantos, percorrendo de novo os caminhos guardados na memória. Quando
eu voltar ao Rio, voltarei para os mesmos lugares de sempre. Quer dizer, para
os que tiverem sobrevivido a estes tempos de horror, claro”.
E há quem opte por não pensar tanto em como vai passar a encarar a cidade numa
futura volta, e sim em uma nova visão do campo. “Acho que a cidade te
transforma da mesma maneira que a serra. O Rio já não parece um lugar fantasma
que eu deixei, e, mesmo com um número elevado de mortes, a vida produtiva, o
isolamento demorado impelem as pessoas a saírem, a retomarem a velha rotina. O
que acho que mudou foi a minha relação com a serra, que hoje é também minha
casa e sempre será, espero. O homem se adapta rápido, o retorno será abrupto,
tão abrupto quanto foi o início disto tudo, e logo nos adaptaremos à nova
normalidade. Fora o home office, pouca coisa restará desse hiato”, afirmou
Fernanda.
Outros, como Pedro Duarte, o professor de filosofia, fazem previsões
diferentes. “Sabe a expressão ‘pare o mundo que eu quero descer’? Acho
interessante pensar o ‘pare’, uma vez que não dá para descer do mundo, mas,
quem sabe, seja possível desacelerá-lo, ao contrário do que o progresso moderno
gostaria, ele que sempre procurou mais velocidade.”
Por Luccas Oliveira, na Revista Época
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