Dos bairros nobres às periferias, milhares de
voluntários se mobilizam para combater a fome
No dia 30 de março, o empresário
Carlos Kaufmann, preocupado com a fome dos moradores de rua na quarentena, fez
cinquenta marmitas para doação na cozinha de seu bufê, em Moema. “Minha
pretensão inicial era chegar a 100 refeições diárias”, ele diz. Errou feio. Não
contava que apareceriam tantos voluntários para a iniciativa — e, na outra
ponta, tanta gente precisando de ajuda. Hoje, ele coordena um esquadrão de 200
pessoas que distribuem 3 000 marmitas todos os dias na capital. Ao todo,
calcula ter entregue 340 000 refeições nos últimos meses — ajudado até por
marcas como Louis Vuitton e Fasano e por jogadores de futebol como Lucas Moura
(Tottenham) e Antony (Ajax), que colaboraram para um leilão no qual
foram arrecadados 80 000 reais.
A iniciativa é apenas um ponto da imensa teia de conexões que surgiu em São
Paulo ao redor de um único tema: a doação de marmitas na pandemia. Siga a
conta. Kaufmann faz parte de um grupo de WhatsApp que reúne 45 representantes
de equipes como a dele. Cada um desses subgrupos tem dezenas de cozinheiras e
cozinheiros espalhados pela cidade. “Comecei preparando 150 quentinhas por
semana em casa. Hoje, somos noventa casas e distribuímos 2 500 marmitas
semanalmente”, diz Rute Corrêa de Souza, 49, que está à frente de um desses
coletivos, batizado de O Amor Agradece, surgido na Zona Oeste. “É um movimento
orgânico, sem CNPJ. Metade das pessoas que trabalha na nossa iniciativa eu nem
sequer conheço”, ela conta — a marca registrada do grupo são as tampas pintadas
por crianças.
Nas periferias, as marmitas também se tornaram uma solução eficaz —
diferentemente das cestas básicas, não consomem o gás dos moradores. Só em
Paraisópolis, 10 000 quentinhas foram entregues por dia no auge da quarentena,
feitas principalmente por cozinheiras de lá mesmo — atualmente, devido a uma
redução das doações, o número caiu à metade. “Muita gente acha que a pandemia
passou e chegou o ‘novo normal’, mas Paraisópolis ainda vive o ‘anormal
piorado’”, alerta Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores local.
No centro, o teatro Mungunzá, criado em um contêiner na Rua dos Gusmões, virou
um polo de doação de comida na pandemia e atende 500 pessoas por dia. “Enquanto
esperam, as pessoas recebem máscaras, cobertores e material de higiene”, diz
Marcos de Oliveira, um dos idealizadores. Em pontos próximos dali, o Serviço
Franciscano de Solidariedade entregou 500 000 refeições desde março — e recebeu
ajuda de 500 voluntários.
A prefeitura afirma não saber quantas marmitas circulam pela cidade. A própria
Secretaria de Direitos Humanos viabilizou a doação de 727 095 delas, por um
edital que pagou a restaurantes 10 reais por refeição doada — ideia que ajudou
69 estabelecimentos a manter alguma atividade na quarentena. Em uma conta
rápida, apenas as iniciativas destacadas na reportagem já ultrapassam (de
longe) a marca de 1 milhão de quentinhas distribuídas durante a pandemia. “Por
mais que façamos, é sempre pouco”, diz Carlos Kaufmann. “A fome ficou evidente
como um problema enorme.”
Por Pedro Carvalho e Sérgio Quintella, na Revista
Veja
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