segunda-feira, 10 de agosto de 2020

CIDADE - A multiplicação das marmitas


Dos bairros nobres às periferias, milhares de voluntários se mobilizam para combater a fome

No dia 30 de março, o empresário Carlos Kaufmann, preocupado com a fome dos moradores de rua na quarentena, fez cinquenta marmitas para doação na cozinha de seu bufê, em Moema. “Minha pretensão inicial era chegar a 100 refeições diárias”, ele diz. Errou feio. Não contava que apareceriam tantos voluntários para a iniciativa — e, na outra ponta, tanta gente precisando de ajuda. Hoje, ele coordena um esquadrão de 200 pessoas que distribuem 3 000 marmitas todos os dias na capital. Ao todo, calcula ter entregue 340 000 refeições nos últimos meses — ajudado até por marcas como Louis Vuitton e Fasano e por jogadores de futebol como Lucas Moura (Tottenham) e Antony (Ajax), que colaboraram para um leilão no qual foram arrecadados 80 000 reais.

A iniciativa é apenas um ponto da imensa teia de conexões que surgiu em São Paulo ao redor de um único tema: a doação de marmitas na pandemia. Siga a conta. Kaufmann faz parte de um grupo de WhatsApp que reúne 45 representantes de equipes como a dele. Cada um desses subgrupos tem dezenas de cozinheiras e cozinheiros espalhados pela cidade. “Comecei preparando 150 quentinhas por semana em casa. Hoje, somos noventa casas e distribuímos 2 500 marmitas semanalmente”, diz Rute Corrêa de Souza, 49, que está à frente de um desses coletivos, batizado de O Amor Agradece, surgido na Zona Oeste. “É um movimento orgânico, sem CNPJ. Metade das pessoas que trabalha na nossa iniciativa eu nem sequer conheço”, ela conta — a marca registrada do grupo são as tampas pintadas por crianças.

Nas periferias, as marmitas também se tornaram uma solução eficaz — diferentemente das cestas básicas, não consomem o gás dos moradores. Só em Paraisópolis, 10 000 quentinhas foram entregues por dia no auge da quarentena, feitas principalmente por cozinheiras de lá mesmo — atualmente, devido a uma redução das doações, o número caiu à metade. “Muita gente acha que a pandemia passou e chegou o ‘novo normal’, mas Paraisópolis ainda vive o ‘anormal piorado’”, alerta Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores local.

No centro, o teatro Mungunzá, criado em um contêiner na Rua dos Gusmões, virou um polo de doação de comida na pandemia e atende 500 pessoas por dia. “Enquanto esperam, as pessoas recebem máscaras, cobertores e material de higiene”, diz Marcos de Oliveira, um dos idealizadores. Em pontos próximos dali, o Serviço Franciscano de Solidariedade entregou 500 000 refeições desde março — e recebeu ajuda de 500 voluntários.

A prefeitura afirma não saber quantas marmitas circulam pela cidade. A própria Secretaria de Direitos Humanos viabilizou a doação de 727 095 delas, por um edital que pagou a restaurantes 10 reais por refeição doada — ideia que ajudou 69 estabelecimentos a manter alguma atividade na quarentena. Em uma conta rápida, apenas as iniciativas destacadas na reportagem já ultrapassam (de longe) a marca de 1 milhão de quentinhas distribuídas durante a pandemia. “Por mais que façamos, é sempre pouco”, diz Carlos Kaufmann. “A fome ficou evidente como um problema enorme.”


Por Pedro Carvalho e Sérgio Quintella, na Revista Veja 



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