A defasagem entre os
estudantes de baixa renda e os de instituições particulares requer atitudes que
revertam a condenação dos menos favorecidos
A pandemia do novo coronavírus tem se revelado nada
democrática no Brasil. Se a Covid-19 atinge a todos, indiscriminadamente, ela
faz muito mais vítimas, causando milhares de mortes, entre as pessoas de menor
renda. Como a doença desconhece classe social, a estatística revela apenas a
nossa trágica e histórica desigualdade. Não que ela fosse anteriormente
ignorada, mas a realidade sinistra das cerca de 80?000 mortes em poucos meses
sublinha o drama nacional como poucas vezes ocorreu na história do país.
Nada e ninguém estão imunes ao poder destrutivo do inimigo comum. Invisível e
descomunal como é, no entanto, tal poder tem sido amplificado pelo fator
humano, que insere na triste equação a variável social. A diferença está entre
ter ou não acesso a água encanada e esgoto tratado; entre ter ou não residência
com cômodos suficientes para evitar aglomeração; entre ter ou não alternativa
ao transporte público lotado. A crise sanitária espalha suas ventosas terríveis
em todos os ambientes, da família à empresa, do espaço privado ao público, da
fábrica à loja.
O setor educacional não é exceção. Com a pandemia, a desigualdade social no
Brasil se tornou ainda mais escancarada em nossas escolas, justamente aquele
que seria o meio mais adequado para se atingir o fim de maior justiça nessa
seara, mediante o acesso democratizado à formação intelectual de uma nova
geração. Em vez de cumprir sua melhor vocação, porém, o universo escolar
acrescenta um item lamentável à lista de diferenças: aquela que separa os que
têm dos que não têm oportunidade de frequentar escolas privadas.
Os colégios particulares conseguiram contornar bem os obstáculos colocados pela
crise sem precedentes. Diante da impossibilidade de continuarem a oferecer
aulas presenciais, foram ágeis ao desenvolver soluções de aprendizado remoto.
Desde março, quando as atividades nas escolas foram suspensas, ferramentas
digitais estão dando conta de transmitir conteúdo de qualidade a crianças e
jovens matriculados em instituições privadas. É um público receptivo que, além
da vontade de continuar aprendendo, tem à disposição internet com capacidade
suficiente de transmitir o material didático.
O problema são os estudantes de baixa renda, sem condições de adquirir
smartphones de maior potência, tablets e laptops — a parafernália eletrônica
que hoje é sinônimo de aprendizado e oportunidade de ascensão social. São, em
geral, jovens que também trabalham precocemente — muitos ajudando no sustento
da família — e moram em casas sem a privacidade que se requer para a necessária
concentração.
A defasagem acentuada entre uns e outros — entre os que têm e os que não têm —
requer de políticos e empresários atitudes que revertam a condenação de tantos
a um futuro incerto. A sociedade não pode assistir, inerte e anestesiada, ao desenrolar
da crônica de uma calamidade anunciada.
Seria injusto, no entanto, afirmar que nada tem sido feito. Em São Paulo, a
Secretaria de Educação vem realizando um trabalho exemplar para
superar essa defasagem. O governo se mobilizou para criar um aplicativo que
permite a interação de alunos e professores. Treinou o corpo docente e
estabeleceu parcerias para mitigar os efeitos da falta de acesso à tecnologia.
Uma delas foi firmada com o Grupo SEB, do qual sou fundador, para oferecer um
curso preparatório, veiculado pela TV Cultura, para o Exame Nacional do Ensino
Médio (Enem) a mais de 400?000 alunos da rede pública do estado. Ainda na
esfera privada, o Instituto SEB oferece gratuitamente preparação para o
vestibular a jovens de famílias com renda de até quatro salários mínimos, além
de cursos de extensão e capacitação a seus pais. Embora sejam iniciativas
pontuais, estão, acredito, na direção correta.
A pandemia gerou um forte movimento de solidariedade. Um dos sentimentos mais
nobres da humanidade rompeu a retórica do politicamente correto e ganhou
concretude robusta. Desde o início do isolamento social, empresas e pessoas
doaram o equivalente a mais de 6 bilhões de reais em dinheiro, produtos e
serviços, de acordo com a Associação Brasileira de Captadores de Recursos
(ABCR). O brasileiro mostrou que, quando necessário e urgente, reage com
generosidade e à altura do desafio.
Pois a educação, como a saúde, também se encontra abatida, de joelhos, e não é
de hoje. Não podemos esperar uma crise de proporções pandêmicas para agir, sob
pena de atingirmos o ponto de não retorno. A sociedade como um todo — e não
apenas os estratos de menor renda — é vítima das carências do ensino público.
Afinal, a desigualdade no aprendizado inviabiliza, na prática, a aplicação da
meritocracia, um princípio que pressupõe condições semelhantes de competição.
Com isso, o país abre mão do seu melhor potencial, para prejuízo de todos. Se
nada for feito, a conta será cobrada na forma de escassez de recursos humanos
que garantam um crescimento sustentável do país.
Cuidar do jovem de hoje é zelar pela sociedade de amanhã. Não é tarefa só do
governo. Não é obrigação só do empresário. A responsabilidade é de todos. Cada
um tem de fazer a sua parte, sob pena ser condenado, moralmente, por crime de
omissão.
Da perspectiva médica, a pandemia do coronavírus é imparcial, exceção feita a
fatores naturais, como idade e comorbidades. Não há razão para agravarmos a
situação, introduzindo um componente social. Ao contrário. A crise pode ser a
catarse que faltava para nos alertar em relação a algo que estava errado desde
sempre. É hora de estreitar diferenças, não de ampliá-las. É hora de diminuir
abismos, não de cavar mais fundo o chão da desigualdade.
Por Chaim Zaher, na Revista
Veja
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