domingo, 2 de agosto de 2020

O vírus da desigualdade na educação

A defasagem entre os estudantes de baixa renda e os de instituições particulares requer atitudes que revertam a condenação dos menos favorecidos

A pandemia do novo coronavírus tem se revelado nada democrática no Brasil. Se a Covid-19 atinge a todos, indiscriminadamente, ela faz muito mais vítimas, causando milhares de mortes, entre as pessoas de menor renda. Como a doença desconhece classe social, a estatística revela apenas a nossa trágica e histórica desigualdade. Não que ela fosse anteriormente ignorada, mas a realidade sinistra das cerca de 80?000 mortes em poucos meses sublinha o drama nacional como poucas vezes ocorreu na história do país.

Nada e ninguém estão imunes ao poder destrutivo do inimigo comum. Invisível e descomunal como é, no entanto, tal poder tem sido amplificado pelo fator humano, que insere na triste equação a variável social. A diferença está entre ter ou não acesso a água encanada e esgoto tratado; entre ter ou não residência com cômodos suficientes para evitar aglomeração; entre ter ou não alternativa ao transporte público lotado. A crise sanitária espalha suas ventosas terríveis em todos os ambientes, da família à empresa, do espaço privado ao público, da fábrica à loja.

O setor educacional não é exceção. Com a pandemia, a desigualdade social no Brasil se tornou ainda mais escancarada em nossas escolas, justamente aquele que seria o meio mais adequado para se atingir o fim de maior justiça nessa seara, mediante o acesso democratizado à formação intelectual de uma nova geração. Em vez de cumprir sua melhor vocação, porém, o universo escolar acrescenta um item lamentável à lista de diferenças: aquela que separa os que têm dos que não têm oportunidade de frequentar escolas privadas.

Os colégios particulares conseguiram contornar bem os obstáculos colocados pela crise sem precedentes. Diante da impossibilidade de continuarem a oferecer aulas presenciais, foram ágeis ao desenvolver soluções de aprendizado remoto. Desde março, quando as atividades nas escolas foram suspensas, ferramentas digitais estão dando conta de transmitir conteúdo de qualidade a crianças e jovens matriculados em instituições privadas. É um público receptivo que, além da vontade de continuar aprendendo, tem à disposição internet com capacidade suficiente de transmitir o material didático.

O problema são os estudantes de baixa renda, sem condições de adquirir smartphones de maior potência, tablets e laptops — a parafernália eletrônica que hoje é sinônimo de aprendizado e oportunidade de ascensão social. São, em geral, jovens que também trabalham precocemente — muitos ajudando no sustento da família — e moram em casas sem a privacidade que se requer para a necessária concentração.

A defasagem acentuada entre uns e outros — entre os que têm e os que não têm — requer de políticos e empresários atitudes que revertam a condenação de tantos a um futuro incerto. A sociedade não pode assistir, inerte e anestesiada, ao desenrolar da crônica de uma calamidade anunciada.

Seria injusto, no entanto, afirmar que nada tem sido feito. Em São Paulo, a Secretaria de Educação vem realizando um trabalho exemplar para superar essa defasagem. O governo se mobilizou para criar um aplicativo que permite a interação de alunos e professores. Treinou o corpo docente e estabeleceu parcerias para mitigar os efeitos da falta de acesso à tecnologia. Uma delas foi firmada com o Grupo SEB, do qual sou fundador, para oferecer um curso preparatório, veiculado pela TV Cultura, para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) a mais de 400?000 alunos da rede pública do estado. Ainda na esfera privada, o Instituto SEB oferece gratuitamente preparação para o vestibular a jovens de famílias com renda de até quatro salários mínimos, além de cursos de extensão e capacitação a seus pais. Embora sejam iniciativas pontuais, estão, acredito, na direção correta.

A pandemia gerou um forte movimento de solidariedade. Um dos sentimentos mais nobres da humanidade rompeu a retórica do politicamente correto e ganhou concretude robusta. Desde o início do isolamento social, empresas e pessoas doaram o equivalente a mais de 6 bilhões de reais em dinheiro, produtos e serviços, de acordo com a Associação Brasileira de Captadores de Recursos (ABCR). O brasileiro mostrou que, quando necessário e urgente, reage com generosidade e à altura do desafio.

Pois a educação, como a saúde, também se encontra abatida, de joelhos, e não é de hoje. Não podemos esperar uma crise de proporções pandêmicas para agir, sob pena de atingirmos o ponto de não retorno. A sociedade como um todo — e não apenas os estratos de menor renda — é vítima das carências do ensino público. Afinal, a desigualdade no aprendizado inviabiliza, na prática, a aplicação da meritocracia, um princípio que pressupõe condições semelhantes de competição. Com isso, o país abre mão do seu melhor potencial, para prejuízo de todos. Se nada for feito, a conta será cobrada na forma de escassez de recursos humanos que garantam um crescimento sustentável do país.

Cuidar do jovem de hoje é zelar pela sociedade de amanhã. Não é tarefa só do governo. Não é obrigação só do empresário. A responsabilidade é de todos. Cada um tem de fazer a sua parte, sob pena ser condenado, moralmente, por crime de omissão.

Da perspectiva médica, a pandemia do coronavírus é imparcial, exceção feita a fatores naturais, como idade e comorbidades. Não há razão para agravarmos a situação, introduzindo um componente social. Ao contrário. A crise pode ser a catarse que faltava para nos alertar em relação a algo que estava errado desde sempre. É hora de estreitar diferenças, não de ampliá-las. É hora de diminuir abismos, não de cavar mais fundo o chão da desigualdade.

Por Chaim Zaher, na Revista Veja  



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