Dois alvos do infame dossiê contra policiais e
acadêmicos antifascistas debatem por que estão na lista e as perigosas
consequências dessa investigação do governo
Luiz Eduardo Soares, de 66 anos, e
Alex Agra Ramos, de 21, tinham pouco em comum em suas trajetórias além da
formação em ciência política e da atuação firme em debates e manifestações
antifascistas nos últimos anos. O fluminense Soares está na vida pública há
mais de 20 anos, desde quando era subsecretário da Segurança Pública do
Rio de Janeiro e lutava uma luta inglória contra a “banda podre” da polícia.
Foi secretário nacional de Segurança no primeiro ano do governo Lula, em 2003,
e escreveu o livro Elite da tropa, que serviu de base para o megassucesso Tropa
de elite, uma narrativa algo glorificada de um incorruptível (e violento e
torturador) capitão do Bope. O baiano Agra mal era nascido quando essa história
começou e acaba de se formar na Universidade Federal da Bahia. Ainda
adolescente, conversas com um amigo policial federal o levaram a interessar-se
pelo debate sobre as reformas das polícias, e em 2017 entrou no recém-criado
Movimento dos Policiais Antifascismo, uma organização formada, claro, por
policiais, mas também por acadêmicos interessados no tema, como ele.
Em meados de julho, a vida dos dois se cruzou quando veio a público, em
reportagem do jornalista Rubens Valente, que eles estavam entre os 579 nomes de
um dossiê elaborado por um órgão de inteligência do governo de Jair Bolsonaro
para “monitorar” servidores e intelectuais de destaque no movimento
antifascista. A revelação gerou uma onde de repúdio de juristas, políticos,
analistas e entidades e levou à demissão do coronel reformado que estava à
frente do órgão responsável pela apuração. Mas ainda há muitas perguntas a ser
respondidas, entre elas quem foi o mandante da iniciativa, quais seus objetivos
e a abrangência da fiscalização.
Na quarta-feira 5 de agosto, ÉPOCA reuniu Soares e Agra em uma conversa para
entender por que eles foram alvo do governo, saber qual sua avaliação sobre o
episódio e discutir aonde isso poderia chegar. Os dois haviam participado
juntos do 1º Congresso de Policiais Antifascismo, em maio de 2019, mas não
tiveram mais contato de lá para cá — Soares, talvez pela experiência e pela
idade, nem se recordava do contato com o jovem, que fez questão de lembrar que
não eram desconhecidos um do outro. Desde que o caso veio à tona, eles têm se
falado bastante, a ponto de se cumprimentarem com um irônico “há quanto tempo”
— tinham se reunido virtualmente no dia anterior.
Os dois estavam agrupados no dossiê sob o subtítulo “Formadores de opinião”, e
a conversa de meia hora, cada um em sua casa, mostrou que, pelo visto, o que o
governo mais teme são suas palavras e ideias. “Não são apenas nossos direitos
individuais que estão envolvidos. A própria democracia está em risco”, disse
Soares, com o argumento de que as idas e vindas de iniciativas autoritárias,
como essa, têm consequências graves. “O governo tem avançado na direção do
autoritarismo e até do totalitarismo, buscando corroer as instituições e acuar
a cidadania, com ameaças sucessivas e testando as resistências democráticas da
sociedade. Precisamos nos manter em alerta. Ontem fomos nós, amanhã podem ser
outros.”
Agra apontou que só deve ter entrado na lista por sua participação no grupo
antifascista, formado por cerca de 500 agentes da área de segurança. “É preciso
um nível de desespero e despreparo muito grande para um governo monitorar um
garoto de 21 anos que acabou de se formar. É preciso não ter absolutamente
nenhuma noção de como funciona o coletivo de policiais antifascismo para
classificar os acadêmicos que integram esse grupo como formadores de opinião,
como se os policiais não teorizassem eles mesmos seus próprios problemas”,
afirmou.
Na parte do documento dedicada aos “Formadores de opinião”, aparecem também,
entre outros, Paulo Sérgio Pinheiro, acadêmico com décadas de atuação na defesa
dos direitos humanos e ministro da área no governo Fernando Henrique, e Ricardo
Balestreri, que assim como Soares também foi secretário nacional de Segurança
Pública (2008-2010). De acordo com a reportagem de Valente, o documento
foi produzido em junho pela Secretaria de Operações Integradas (Seopi), uma
unidade pouco conhecida do Ministério da Justiça. Havia inclusive fotografias e
endereços de redes sociais dos 579 agentes da segurança pública estaduais
e federais e acadêmicos; todos haviam assinado manifestos antifascistas. No dia
3 de agosto, o ministro da Justiça, André Mendonça, anunciou a substituição do
chefe da Diretoria de Inteligência da pasta, Gilson Libório, mas continuou sem
dar detalhes sobre o episódio.
“O governo se viu constrangido a recuar, mas sabemos que isso não deve nos
tranquilizar a ponto de nos conduzir à ilusão de que a democracia teria vencido
a batalha contra as ameaças do fascismo”, afirmou Soares, destacando que foi
encontrado apenas um bode expiatório. “A peça mais frágil descartada. Isso
significa que, de alguma maneira, o ministro pretende se manter competitivo
numa possível candidatura ao Supremo Tribunal Federal, uma vez que ele precisa
evitar que esse acontecimento macule sua imagem no meio jurídico ou junto aos
senadores que fazem a sabatina”, disse, sobre Mendonça, apontado como um dos
“terrivelmente evangélicos” cotados por Bolsonaro para uma das duas vagas que
devem se abrir até o final do ano que vem.
A Seopi foi criada pelo ex-ministro Sergio Moro no ano passado, com o objetivo
de integrar operações policiais contra o crime organizado — nada a ver,
portanto, com fazer dossiês sobre integrantes de grupos “antifascistas”.
A semelhança do dossiê com as investigações de órgãos da ditadura não poderia
passar batido numa conversa entre dois cientistas políticos, que lembraram a
criação do Serviço Nacional de Informações em 1964, responsável por vigiar
milhares de brasileiros por décadas. “Um dossiê passa a mensagem de que é
legítimo o monitoramento e de que o governo dá apoio a esse tipo de atitude,
que isso pode ser feito sem qualquer problema”, disse Agra.
Enquanto o “motivo” da entrada do baiano no dossiê está clara, no caso de
Soares a explicação é mais difusa. Por que foi incluído? Ele responde: “Boa
pergunta para os que acusam. Publico tudo que penso, tenho sido um crítico
permanente de nosso modelo policial e das políticas de segurança. Há uma
trajetória de luta pela articulação entre direitos humanos e segurança
pública. Luto contra as milícias no Rio, desde que eram embrionárias. Você
escolhe o motivo”.
Por Juliana Castro, na Revista Época
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