Francisco Câmpera comanda a Associação Roquette Pinto, que fazia a gestão
da Cinemateca Brasileira, desde o início de 2019; diretor afirma que buscou o
tempo todo uma solução pacífica
A Cinemateca Brasileira está agora no comando do governo federal, pelo
menos por um tempo. Um representante da Secretaria Especial de Cultura esteve
presente na manhã desta sexta-feira, 7, na instituição, em São Paulo, em um ato
simbólico de transferência de responsabilidades, e prometeu que o Ministério
do Turismo publicará nos próximos dias um chamamento para um novo
contrato de gestão.
Desde 2018, a Cinemateca Brasileira era gerida pela Associação de Comunicação
Educativa Roquette Pinto. A Acerp tinha um contrato assinado com
o Ministério da Educação, numa parceria com a TV Escola, válido até o
fim de 2019 e não renovado. O contrato de gestão da Cinemateca, assinado até
2021, estava incluído em um anexo a esse outro documento.
Desde o início do ano, a instituição de preservação e difusão do audiovisual
brasileiro - importante não apenas para o cinema, mas para a memória nacional
como um todo - se encontrava em um limbo jurídico, pois o governo federal não
buscou publicar um novo edital para gerenciamento da Cinemateca, e tampouco
reconheceu o contrato e repassou os recursos previstos para a Acerp. "A
Cinemateca só está viva até hoje porque gastamos cerca de R$ 14 milhões",
defende o presidente da Acerp, Francisco Câmpera, em entrevista exclusiva ao
Estadão.
"Em 2019, recebemos no último dia do ano R$ 7,2 milhões, sendo que o custo
é de cerca de R$ 1,2 milhão mensais. Este ano não recebemos nenhum centavo.
Para se ter uma comparação, o MIS de São Paulo, que representa cerca de 20% da
Cinemateca, recebe o dobro de recursos. Nós fizemos a nossa parte defendendo
este patrimônio precioso e inestimável da sociedade brasileira", afirma
Câmpera.
Em um documento enviado à Justiça, no âmbito da ação civil pública que o
Ministério Público Federal moveu contra a União sobre o assunto,
a Advocacia Geral da União se defende afirmando que a Acerp também é
responsável pelo desacerto, uma vez que sabia que o contrato principal,
assinado com o Ministério da Educação, venceria em 2019.
Sobre essas questões e problemas, Câmpera respondeu a perguntas da reportagem
por email. Abaixo alguns trechos editados da conversa.
Nesse exato momento, a Cinemateca Brasileira corre algum risco agudo em questão
de segurança?
Francisco Câmpera: O risco diminuiu consideravelmente depois dos nossos
esforços em salvar e modernizar a Cinemateca, porque assim que assumi a
Roquette Pinto, no início de 2019, demos início às obras necessárias contra
incêndio. A Cinemateca não tinha nem alvará, sendo que o último incêndio
aconteceu em 2016, lembrando que boa parte do arquivo está sujeito à autocombustão.
Uma irresponsabilidade imensa da Secretaria Especial de Cultura, que neste
tempo todo não tomou nenhuma providência nem assumiu os custos. Para evitar
mais uma tragédia, a Roquette Pinto tirou dinheiro do próprio caixa, iniciou um
processo de regularização e de modernização dos equipamentos de combate e
prevenção a incêndios e agora temos equipamentos disponíveis. Aliás, a
Cinemateca só está viva até hoje porque gastamos cerca de R$ 14 milhões. Em
2019, recebemos no último dia do ano R$ 7,2 milhões, sendo que o custo é de
cerca de R$ 1,2 milhão mensais. Este ano não recebemos nenhum centavo. Para se
ter uma comparação, o MIS de São Paulo, que representa cerca de 20% da
Cinemateca, recebe o dobro de recursos. Nós fizemos a nossa parte defendendo
este patrimônio precioso e inestimável da sociedade brasileira. Nós já perdemos
o Museu Nacional, não podíamos correr o risco de mais uma tragédia. Hoje a
Cinemateca encontra-se muito mais preparada e protegida contra essas tragédias,
graças aos investimentos significativos que realizamos exclusivamente com
recursos próprios. Nós demos uma grande contribuição, não permitindo o
fechamento da Cinemateca, inclusive assumindo o pagamento de salários dos
funcionários, o pagamento de contas atrasadas e a realização de investimentos
em novos equipamentos, sem receber nada em troca.
Como você recebeu a decisão judicial da segunda-feira, 3? Qual o posicionamento
da Acerp sobre ela?
Este processo foi movido pelo Ministério Público Federal contra a União. O procurador
defendeu uma liminar para nos manter à frente da gestão até que se faça uma
transição segura e profissional, mas não foi aceita pela Justiça Federal, que
encaminhou a matéria para a conciliação no MPF. Se não houver acordo, o MPF
poderá prosseguir com a ação cívil pública, que poderá até mesmo implicar na
improbidade administrativa por parte dos agentes públicos responsáveis por essa
omissão. O próprio MPF aponta nessa ação como o principal responsável o
ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, que foi alertado por dois
ministérios, Economia e Cidadania, que ele deveria manter o contrato de
supervisão por pelo menos mais seis meses para garantir uma transição segura e
profissional. Ele rompeu o contrato da TV Escola a apenas 13 dias do final, sem
nenhum aviso prévio, ou manifestação a respeito. Apesar do contrato com a
Cultura ser separado, com validade até 2021, ganho por meio
de licitação pública, o MEC tinha um papel de supervisor do contrato.
A ação pelo menos vai nos dar condições de cobrar os atrasados judicialmente,
porque o Ministério do Turismo, infelizmente, ainda se recusa a pagar
o que nos deve. A liminar não retirou o direito da Roquette Pinto de receber os
valores gastos em 2019 e 2020 e, havendo boa-fé da União, até mesmo para evitar
a caracterização de enriquecimento ilícito dos agentes públicos, confiamos que
haverá o ressarcimento legal.
O processo também nos deu a oportunidade defender publicamente perante à
sociedade e ao MPF o cumprimento do Termo de Doação da Cinemateca ao Governo
Federal, que garante a permanência em São Paulo, e autonomia financeira,
técnica e administrativa. Ou seja, a gestão da Cinemateca não pode ser estatal.
Apesar do pedido do secretário Mario Frias, para obter a posse, não houve até
agora um processo legal (administrativo) para romper o contrato de fato, que
obriga aviso prévio de seis meses de antecedência. Recebemos apenas um ofício
nos comunicando. Vamos acatar este pedido porque cumprimos a nossa missão de
manter a Cinemateca viva. Estamos com a consciência tranquila.
Desde o início de 2019, sete nomes passaram pela titularidade da Secretaria
Especial de Cultura. Como tem sido o diálogo com a Secretaria e com
o Ministério do Turismo nesse período, especialmente em 2020?
Pois é, não tinha como dar certo, a secretaria ficou à deriva com este entra e
sai o tempo todo! Sete secretários de Cultura e mais uns sete secretários de
Audiovisual, ao qual a Cinemateca está submetida, contando com os interinos.
Além disso, a Cultura deixou de ser ministério e ficou meses para mudar do
Ministério da Cidadania para o Turismo. Ainda houve uma disputa entre
outros ministérios para ficar com a Secretaria. Além do mais, a Regina Duarte
levou uns dois meses para assumir e cerca de um mês para sair de fato. Então o
nosso trabalho sempre foi um eterno recomeço.
O contrato de gestão da Cinemateca era vinculado a um contrato da Acerp com
o Ministério da Educação, que não foi renovado em 2019. Mas o
contrato de gestão da Acerp era vinculado até 2021, embora o governo federal
não o reconheça. A Acerp vai entrar na Justiça para reivindicar a validade do
contrato?
Estamos tentando chegar num acordo com o ministério, não queremos conflito,
buscamos sempre uma solução pacífica. Não estamos lutando para nos manter na
gestão, mas para salvar a Cinemateca. É público e notório que ela está em pé
até hoje por nossa causa. O ministério do Turismo só se movimentou
depois de ser citado pelo MPF e depois que foi comunicado que vereadores e a
Prefeitura de SP, que é a dona do terreno da Cinemateca, resolveram ajudar,
inclusive com recursos financeiros. Aí em poucos dias as autoridades criaram
uma falsa narrativa que estava tentando pagar as contas. Nós trabalhamos com
fatos, não narrativas. Temos orgulho de ter salvado a Cinemateca, que é de
conhecimento da sociedade, vereadores, Prefeitura e entidades do setor
cultural. Um importante assessor do () Bolsonaro, acompanhou todo o processo de
perto e sabe da verdade.
Curioso que no processo do MPF a própria Secretaria de Cultura recomenda a gestão
da Roquette Pinto e destaca a importância da transição, pois tudo está no nosso
nome. Não apresentaram à Roquette Pinto nem à sociedade civil (entidades do
setor, Câmara, etc) um plano de trabalho concreto. Agora, eles vão assumir a
Cinemateca sem funcionários, sem nada, porque simplesmente não existe um
processo administrativo. Foi uma brutalidade eles virem tomar posse com
a Polícia Federal. Uma atitude lamentável e desnecessária.
Nós lutamos também para que os termos de doação sejam respeitados, que obriga
que a instituição se mantenha em São Paulo, onde está desde a fundação, há
quase 80 anos. Espero que o Ministério do Turismo tenha de fato
desistido esta ideia absurda de levar a Cinemateca para Brasília. Além do mais,
é em SP onde está boa parte do mercado do Audiovisual. A Cinemateca atende este
setor que está sofrendo por ela estar fechada, estão parados, deixando de
finalizar a produção há meses.
Na peça vinculada ao processo, a AGU diz o seguinte: "A ACERP,
ao subscrever o aditivo, aceitando seus termos, tinha plena ciência de que
estava modificando um contrato de gestão mais antigo, e com prazo determinado,
até 2019. A entidade poderia ter se recusado a esse modelo de contratação,
abrindo mão do resultado do chamamento público, ou então demandando em juízo a
adjudicação de um contrato autônomo, naturalmente assumindo os riscos da
improcedência da ação, diante da alteração superveniente do quadro
normativo". Qual a posição da Acerp sobre essa questão?
Se nós não cumpríssemos o contrato, poderíamos responder por prevaricação, sem
o desfazimento do contrato com o devido processo administrativo. A Secretaria
de Cultura não tomou providências e simplesmente abandonou a Cinemateca, fato!
Nós temos compromisso com o País, com a Cultura. Em fevereiro teve uma enchente
na segunda unidade, um local inadequado onde descobrimos que o solo é
contaminado por um antigo lixão. Avisamos a Secretaria por meio de ofício e
fotos, houve até uma visita do então secretário de audiovisual, e nada foi
feito. O Mario Frias assumiu há pouco tempo e não tem responsabilidade sobre
este passado. Prefiro responder por salvar a Cinemateca, do que por abandono e
negligência. De qualquer forma, se não houver acordo na conciliação junto ao
MPF, quem vai decidir a questão vai ser a Justiça.
A AGU afirma peremptoriamente que a União já tomou medidas para
preservação do acervo, pagamento da conta de luz, etc. Essas medidas, porém,
começaram a aparecer apenas nos últimos dias. Por que você acha que houve essa
demora, de aproximadamente sete meses?
Veja a contradição. A Prefeitura de SP sem contrato estava tomando providências
para assumir os custos, inclusive fornecendo segurança da Guarda Municipal, o
que é essencial também para alerta contra incêndio. Já o Ministério
do Turismo e a Secretaria se recusam a nos pagar, mesmo tendo
contrato conosco e o dinheiro de 2020 já está no orçamento. Não tem sentido!
Entendo que eles se sentem inseguros quanto à segurança jurídica, apesar de
pareceres favoráveis do próprio governo. Porém, existiam outras opções para
resolver. Eles insistem em não pagar principalmente a diferença de 2019. A
Justiça, MPF, TCU, e os orgãos de controle vão querer saber o que
aconteceu. Nós somos a vítima! Temos auditoria da Price, conselho, comissão
de fiscalização... e um giga de documentos que entregamos para o MPF e ao
próprio ministério. Tudo é documentado por nós, trabalhamos profissionalmente,
tecnicamente. Se houvesse um pouco de bom senso e compromisso com o País e até
mesmo destes agentes públicos com o governo, nada disso estaria acontecendo.
A Acerp está disponível para o diálogo com o governo federal no sentido de
resolver a situação atual? Como?
Claro, sempre estivemos disponíveis ao diálogo. O ministro do Turismo,
Marcelo Henrique Teixeira Dias (Marcelo Álvaro Antonio) e o Secretário Mario
Frias estiveram na Cinemateca e a conversa foi ótima e tudo foi acertado. Mas
depois nada aconteceu de concreto. Houve apenas uma reunião
no Turismo com o secretário-executivo, Daniel Nepomuceno, sem ninguém
da Cultura, onde foi apresentada uma proposta completamente diferente do que
foi previamente acertada. O Daniel e a equipe dele não estavam na reunião com o
ministro e o Frias. Como eu não consegui falar depois com o ministro, até hoje
eu não sei se ele tem conhecimento da proposta indecorosa que nos fizeram.
Depois recebemos um ofício sem valor jurídico assinado pelo Frias, que tinha
acabado de assumir o cargo. Ficou claro que ele não foi bem orientado. Bem, o
importante agora é resolver de uma vez, não adianta apontar culpados, contra
fatos não há discussão. Só espero que cheguemos num consenso na conciliação
para que não acabe numa guerra judicial sem fim que prejudique ainda mais a
Cinemateca.
Quais são os próximos passos da Acerp?
Esperar a conciliação do MPF para avaliar melhor os próximos passos. Vamos
entregar a posse, mesmo sem receber nenhum tostão nem um muito obrigado, para
evitar prolongar a agonia da Cinemateca, dos funcionários e do setor de
audiovisual, que não consegue terminar os filmes. Queremos, claro, receber os
atrasados, abrir procedimento administrativo para finalizar legalmente o
contrato, e garantir o cumprimento dos termos de doação. Somos flexíveis,
estamos dispostos a abrir mão de certos direitos, como aviso prévio de seis
meses, mas precisamos preservar os funcionários ultra-especializados, alguns
com décadas de casa, para o bem da Cinemateca. Leva-se anos para formar certas
especialidades. Até agora eles se recusam a pagar os salários atrasados e
assumir os funcionários. Difícil entender!
É público e notório o serviço de gestão prestado pela Roquette Pinto em 2019 e
2020, conforme vasta prova documental. Demos nossa contribuição e não
permitimos o fechamento da Cinemateca assumindo salários de funcionários e
pagamentos de contas diversas, sem receber nada, nada em troca. Nosso objetivo
sempre foi de transição pacífica sem politização e visando apenas a gestão
profissional. Espero, sinceramente, que agora eles preservem a nossa memória
nacional em vídeo, com filmes de mais de um século, com a história particular
dos brasileiros, das Forças Armadas, expedições do Marechal Rondon, do cinema
desde quando era mudo, o glorioso Canal 100, mais de 30 anos de arquivos da TV
Tupi, a primeira emissora do Brasil (1950), cinejornais de JK, Getúlio Vargas,
entre tantas outras preciosidades. Pagamos literalmente caro para preservar
este patrimônio único, a nossa missão está encerrada.
Por Guilherme Sobota, em O Estado de S. Paulo
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