terça-feira, 18 de agosto de 2020

A retomada verde

 

Um estudo exclusivo mostra como o país pode sair da crise e crescer 15% mais do que o previsto até 2030. A receita: reduzir as emissões de carbono

Um dos maiores exemplos de como a preservação do meio ambiente deixou de ser um papo de ongueiro e ganhou papel central no capitalismo brasileiro em tempos de pandemia é a história da companhia de gestão ambiental Ambipar. Fundada em 1995 para lidar, entre outras coisas, com crises ambientais (na lista está a recuperação de Brumadinho após o desastre na mina da Vale em janeiro de 2019), a empresa abriu o capital na B3, a bolsa de valores de São Paulo, em junho deste ano. Em meio à maior crise econômica em décadas, a empresa fez uma das ofertas iniciais de ações mais concorridas do mercado acionário brasileiro: 1,08 bilhão de reais, uma demanda dez vezes superior à projetada. De lá para cá, as ações da Ambipar valorizaram 11%. A novata vale 3 bilhões de reais, mais do que varejistas como Marisa e Hering.

O que chama tanto a atenção dos investidores é o fato de a empresa ter virado uma espécie de “Mercado Livre de lixo”. Funciona assim: quem está disposto a fazer uns trocados com quinquilharias como celulares velhos, garrafas PET usadas e pneus furados pode anunciar pelo site. Os compradores são certificados pela Ambipar para garantir o retorno dos itens à cadeia produtiva — seja reciclados, seja utilizados do jeito que estão. “Damos vida nova a itens que iriam para o lixo”, diz Fernando Begliomini, diretor de logística reversa da Ambipar. O processo colabora para diminuir a necessidade de fabricar do zero plásticos, metais e por aí vai. De quebra, reduz a poluição envolvida nessa produção. “Isso é a nova economia”, afirma.

O ímpeto da Ambipar na B3 é só mais uma pecinha num tabuleiro enorme, jogado por capitalistas mundo afora, para reavivar a economia por meio de uma guinada verde de empresas, investidores e governos. No centro dos objetivos está a redução das emissões de carbono vindas de combustíveis fósseis, como o petróleo — um dos vilões do aquecimento global. Trata-se de uma tendência global, com iniciativas pipocando da China à Califórnia. Um exemplo é o “Green Deal Europeu”, apresentado pela União Europeia em maio. O objetivo: destinar 40% de um pacote de socorro de 750 bilhões de euros a negócios à base de energias renováveis. A recuperação da crise do coronavírus deve estar calcada “na transformação ambiental e digital”, disse Frans Timmermans, delegado da Comissão Europeia, à frente do plano.

Para o Brasil, país com a maior biodiversidade do mundo, a guinada verde traz oportunidades grandiosas. Em números, isso significa crescer 15% mais do que o previsto até 2030, o que agregaria 2,8 trilhões de reais ao produto interno bruto em dez anos. A riqueza adicional abriria 2 milhões de empregos na economia — metade deles na indústria. É o que estima um estudo inédito do WRI, uma das principais entidades ambientalistas dos Estados Unidos, junto a pesquisadores brasileiros da PUC-Rio, da escola de negócios Coppe/UFRJ, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, além da Febraban, a federação dos bancos brasileiros, e dos think tanks Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) e Climate Policy Initiative. “Muitos paí­ses emergentes podem se beneficiar dessa transição econômica”, afirma Helen Mountford, vice-presidente do WRI. “Mas o Brasil tem algumas características que o colocam à frente dos outros, como uma matriz energética limpa.” Trata-se de um manual para o país superar a crise.

Para dimensionar os benefícios dessa retomada verde à economia brasileira, os pesquisadores mapearam 10.000 tecnologias com emissão reduzida de carbono e as políticas em curso para adotá-las no governo e na iniciativa privada. No radar estavam propostas como a integração fazenda-lavoura-pecuária, uma técnica de aumento da produtividade no campo criada pela estatal Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) com base no melhor uso do solo de pastagens. Ou os incentivos para a troca da fonte de energia na indústria brasileira, hoje ainda muito dependente do petróleo e do carvão, para fontes limpas — foco do programa RenovaBio, do governo federal. Os pesquisadores projetaram a evolução do PIB até 2030 em cenários com a evolução desses programas. Em paralelo, mediram a evolução do PIB caso nada seja feito. “Não são simples previsões, são cenários possíveis com base em variáveis econômicas existentes”, diz Roberto Schaeffer, professor da Coppe/UFRJ.

Parte relevante do setor produtivo brasileiro já compreendeu o potencial de tecnologias verdes para sair da crise. Na sucroalcooleira ­Raízen, a produção da safra anual de um tipo de etanol chamado E2G, com emissão de carbono 35% inferior ao padrão, foi praticamente 100% vendida nos três primeiros meses do ano — já com a economia global afundando nas incertezas da pandemia. Em produção desde 2019, o E2G foi desenvolvido ao longo de sete anos e está entre as apostas da ­Raízen para os próximos anos. “Em alguns momentos, questionei a viabilidade da tecnologia”, diz Ricardo Mussa, diretor-presidente da Raízen. “Neste ano, ela provou seu potencial.” Na lista de mercados do produto estão regiões com leis duras para a emissão de carbono, como a Califórnia.

Na fabricante de cosméticos Natura, a pandemia serviu de estopim para estabelecer metas ambiciosas. No mês passado, a empresa aderiu ao Transform to Net Zero, uma coalizão de empresas liderada pelo gigante da tecnologia Microsoft para eliminar a poluição de seus negócios em 30 anos. No caso da Natura, isso significa alternativas a processos industriais poluidores por natureza, como a fabricação de embalagens plásticas. É uma estratégia vital numa empresa como a Natura, presente em 100 países e com 70% da receita vinda do exterior — em especial de países desenvolvidos com consumidores exigentes. “Há uma oportunidade única, nesse pós-pandemia, de pensar em um desenvolvimento mais sustentável”, diz Roberto Marques, presidente da Natura & Co, braço internacional da fabricante de cosméticos brasileira. “Nós nos alinhamos com esse pensamento.”

Na visão dos pesquisadores do consórcio liderado pelo WRI, a retomada verde da economia brasileira pode transformar setores inteiros da economia após a crise. Na infraestrutura, o aumento dos incentivos para uso de combustíveis limpos em ônibus, caminhões e aviões pode elevar a frota “limpa” para perto de 30% em dez anos — atualmente, a fatia é inferior a 1%. Na agricultura, hoje à mercê de críticas internacionais por causa do descontrole no desmatamento de florestas na Amazônia e no Pantanal, a massificação de técnicas como a integração lavoura-pecuária-floresta pode aumentar a produtividade em 30%.

Para o frigorífico Marfrig, o investimento em tecnologia para a redução do impacto ambiental está no centro da estratégia do negócio para os próximos anos. Já faz algum tempo a Marfrig incentiva as fazendas de onde vem a carne usada no abate em seus frigoríficos a integrar a pecuária às áreas de lavoura e de floresta, de modo que toda a emissão proveniente da criação, do abate e do corte dos animais seja compensada ou evitada. Neste mês, a empresa vai levar às gôndolas dos supermercados uma carne com carbono neutro. A novidade, que tem selo da Embrapa, é consequência de uma trajetória de mais de dez anos. Em 2009, a Marfrig comprometeu-se a não desmatar áreas da Amazônia e, graças ao uso de tecnologia e gestão, não derruba árvores da floresta nem produz em áreas que pertençam a comunidades indígenas. “Nenhum país tem o potencial para produzir uma pecuária sustentável e de baixo carbono como o Brasil”, afirma Paulo Pianez, diretor de sustentabilidade da Marfrig. O próximo passo será reproduzir esse projeto nos 26 milhões de hectares de outro bioma, o Cerrado. “Nossa meta é que a pecuá­ria seja classificada como sustentável. Para isso, fazemos articulação com diversos atores para que eles nos ajudem a preencher lacunas”, diz. O executivo se refere ao combate à ilegalidade e aos desmatamentos — uma tarefa árdua, levando em conta as dimensões continentais do país.

Para além dos ganhos setoriais, a retomada verde já está trazendo oportunidades de negócios a startups, empresas de tecnologia fundamentais para o país sair da crise, porque abrem postos de trabalho qualificados — e com potencial de turbinar ainda mais a saída da crise. Em boa medida, as novas tecnologias melhoram o uso de matérias-primas, seja reaproveitando o que vai para o lixo, seja mudando processos para fazer mais com menos recursos — e, assim, poluir menos. Um exemplo vem da startup paulista Solinftec, dona de um software para traçar o trajeto mais curto para máquinas colheitadeiras e trabalhadores darem conta da produção em lavouras como as de cana-de-açúcar e soja. Com isso, economizam gasolina. “Em nossas contas, o sistema evitou a emissão de 680.000 toneladas de carbono no ano passado. É o equivalente à emissão anual dos aviões da ponte aérea Rio-São Paulo”, diz Rodrigo Iafelice dos Santos, diretor da Solinftec. Entre os clientes estão grandes representantes do agronegócio, como Raízen, Cofco e BP. Em 2020, a receita da Solinftec deverá crescer 50%, um resultado acima do projetado no início do ano, segundo Santos (a empresa não revela valores de faturamento). Em parte, a pandemia acelerou a busca por eficiência — afinal, ninguém quer perder dinheiro em tempos bicudos. A crise de imagem do agronegócio brasileiro com as queimadas na Amazônia também ajudou. “Por causa dela, antecipamos para agora a entrada na cadeia de florestas, um projeto que estava previsto só para o fim do ano”, diz Santos. O potencial da Solinftec já foi percebido pelos investidores. Em dezembro do ano passado, a empresa recebeu 40 milhões de dólares num aporte liderado pela Unbox, fundo que tem a família Trajano, do Magazine Luiza, entre os sócios.

A busca por tecnologias verdes está em alta também nos setores mais sensíveis aos solavancos da economia, como é o caso da construção civil. É o que motiva a expansão da Âmbar, uma startup de São Carlos, no interior paulista, dona de um sistema de construção de casas em blocos, semelhantes a peças de Lego, com fios e canos embutidos. A ideia é reduzir o quebra-quebra e o desperdício de materiais no canteiro. “Com essa economia toda, é possível evitar até 30% das emissões de carbono numa obra”, diz Denis Peres, diretor de operações da Âmbar. Em meio ao pessimismo nos canteiros — o setor deverá afundar mais do que o PIB neste ano —, a startup deverá faturar estimados 100 milhões de reais, 30% mais do que em 2019. Na lista de clientes estão construtoras como MRV e Cyrela.

A questão é que, por mais forte que seja, o setor privado não é capaz de impor a retomada verde sem a ajuda do governo. No estudo capitaneado pelo WRI, os pesquisadores mapeiam uma série de projetos, planos e programas governamentais que servem de ponto de partida para a adoção da agenda. Nas próximas semanas, o estudo deve ser apresentado ao Ministério da Economia na tentativa de sensibilizar a máquina pública sobre os benefícios da guinada. Para impulsionar a nova economia, há sugestões de ajustes em diversas políticas públicas, como o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), do Ministério da Economia, criado para fortalecer a relação entre a iniciativa privada e o governo; a Política Nacional de Inovação, do Ministério da Ciência; e o Programa ABC, do Ministério da Agricultura, de incentivo à agricultura de baixo carbono. “O Brasil precisa parar de brigar com o passado e começar a olhar para o futuro”, diz Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente nos governos Lula e Dilma. “Não se trata mais do que foi feito ou do que não foi feito. O importante é o que vai se fazer daqui para a frente. E nenhum país tem mais o que apresentar do que o nosso.” O que o estudo traz são alternativas disponíveis ao país no contexto global de transição para a nova economia. Ao mesmo tempo, deve-se evitar pensar que qualquer decisão resulte em catástrofe econômica ou ambiental. Mesmo se optar por não fazer nada, o Brasil continuará existindo e se desenvolvendo. “O ponto é que há opções melhores e piores. Ganha-se mais, ou menos”, afirma José Feres, coordenador do Ipea e coautor do estudo. “O pior que pode acontecer é ter de fazer uma mudança de rota no futuro. Nesse caso, vai ficar mais caro ser verde.” Para a retomada verde, as experiências pioneiras já existem e o caminho a seguir está mapeado — basta fazer.

Por Rodrigo Caetano, Natália Flach, Denyse Godoy, Leo Branco, na Revista Exame   


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