Um
estudo exclusivo mostra como o país pode sair da crise e crescer 15% mais do
que o previsto até 2030. A receita: reduzir as emissões de carbono
Um dos
maiores exemplos de como a preservação do meio ambiente deixou de ser um papo
de ongueiro e ganhou papel central no capitalismo brasileiro em tempos de
pandemia é a história da companhia de gestão ambiental Ambipar. Fundada em 1995
para lidar, entre outras coisas, com crises ambientais (na lista está a
recuperação de Brumadinho após o desastre na mina da Vale em janeiro de 2019),
a empresa abriu o capital na B3, a bolsa de valores de São Paulo, em junho
deste ano. Em meio à maior crise econômica em décadas, a empresa fez uma das
ofertas iniciais de ações mais concorridas do mercado acionário brasileiro: 1,08
bilhão de reais, uma demanda dez vezes superior à projetada. De lá para cá, as
ações da Ambipar valorizaram 11%. A novata vale 3 bilhões de reais, mais do que
varejistas como Marisa e Hering.
O que chama tanto a atenção dos investidores é o fato de a empresa ter virado
uma espécie de “Mercado Livre de lixo”. Funciona assim: quem está disposto a
fazer uns trocados com quinquilharias como celulares velhos, garrafas PET
usadas e pneus furados pode anunciar pelo site. Os compradores são certificados
pela Ambipar para garantir o retorno dos itens à cadeia produtiva — seja
reciclados, seja utilizados do jeito que estão. “Damos vida nova a itens que
iriam para o lixo”, diz Fernando Begliomini, diretor de logística reversa da
Ambipar. O processo colabora para diminuir a necessidade de fabricar do zero
plásticos, metais e por aí vai. De quebra, reduz a poluição envolvida nessa
produção. “Isso é a nova economia”, afirma.
O ímpeto da Ambipar na B3 é só mais uma pecinha num tabuleiro enorme, jogado
por capitalistas mundo afora, para reavivar a economia por meio de uma guinada
verde de empresas, investidores e governos. No centro dos objetivos está a
redução das emissões de carbono vindas de combustíveis fósseis, como o petróleo —
um dos vilões do aquecimento global. Trata-se de uma tendência global, com
iniciativas pipocando da China à Califórnia. Um exemplo é o “Green Deal
Europeu”, apresentado pela União Europeia em maio. O objetivo: destinar 40% de
um pacote de socorro de 750 bilhões de euros a negócios à base de energias
renováveis. A recuperação da crise do coronavírus deve estar calcada “na
transformação ambiental e digital”, disse Frans Timmermans, delegado da
Comissão Europeia, à frente do plano.
Para o Brasil, país com a maior biodiversidade do mundo, a guinada verde traz
oportunidades grandiosas. Em números, isso significa crescer 15% mais do que o
previsto até 2030, o que agregaria 2,8 trilhões de reais ao produto interno
bruto em dez anos. A riqueza adicional abriria 2 milhões de empregos na
economia — metade deles na indústria. É o que estima um estudo inédito do WRI,
uma das principais entidades ambientalistas dos Estados Unidos, junto a
pesquisadores brasileiros da PUC-Rio, da escola de negócios Coppe/UFRJ, do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, além da Febraban, a federação dos
bancos brasileiros, e dos think tanks Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável
(CEBDS) e Climate Policy Initiative. “Muitos países emergentes podem se
beneficiar dessa transição econômica”, afirma Helen Mountford, vice-presidente
do WRI. “Mas o Brasil tem algumas características que o colocam à frente dos
outros, como uma matriz energética limpa.” Trata-se de um manual para o país
superar a crise.
Para dimensionar os benefícios dessa retomada verde à economia brasileira, os
pesquisadores mapearam 10.000 tecnologias com emissão reduzida de carbono e as
políticas em curso para adotá-las no governo e na iniciativa privada. No radar
estavam propostas como a integração fazenda-lavoura-pecuária, uma técnica de
aumento da produtividade no campo criada pela estatal Empresa Brasileira de
Pesquisa Agropecuária (Embrapa) com base no melhor uso do solo de pastagens. Ou
os incentivos para a troca da fonte de energia na indústria brasileira, hoje
ainda muito dependente do petróleo e do carvão, para fontes limpas —
foco do programa RenovaBio, do governo federal. Os pesquisadores projetaram a
evolução do PIB até 2030 em cenários com a evolução desses programas. Em
paralelo, mediram a evolução do PIB caso nada seja feito. “Não são simples
previsões, são cenários possíveis com base em variáveis econômicas existentes”,
diz Roberto Schaeffer, professor da Coppe/UFRJ.
Parte relevante do setor produtivo brasileiro já compreendeu o potencial de
tecnologias verdes para sair da crise. Na sucroalcooleira Raízen, a produção
da safra anual de um tipo de etanol chamado E2G, com emissão de carbono 35%
inferior ao padrão, foi praticamente 100% vendida nos três primeiros meses do
ano — já com a economia global afundando nas incertezas da pandemia. Em
produção desde 2019, o E2G foi desenvolvido ao longo de sete anos e está entre
as apostas da Raízen para os próximos anos. “Em alguns momentos, questionei a
viabilidade da tecnologia”, diz Ricardo Mussa, diretor-presidente da Raízen.
“Neste ano, ela provou seu potencial.” Na lista de mercados do produto estão
regiões com leis duras para a emissão de carbono, como a Califórnia.
Na fabricante de cosméticos Natura, a pandemia serviu de estopim para
estabelecer metas ambiciosas. No mês passado, a empresa aderiu ao Transform to
Net Zero, uma coalizão de empresas liderada pelo gigante da tecnologia
Microsoft para eliminar a poluição de seus negócios em 30 anos. No caso da
Natura, isso significa alternativas a processos industriais poluidores por natureza,
como a fabricação de embalagens plásticas. É uma estratégia vital numa empresa
como a Natura, presente em 100 países e com 70% da receita vinda do exterior —
em especial de países desenvolvidos com consumidores exigentes. “Há uma
oportunidade única, nesse pós-pandemia, de pensar em um desenvolvimento mais
sustentável”, diz Roberto Marques, presidente da Natura & Co, braço
internacional da fabricante de cosméticos brasileira. “Nós nos alinhamos com
esse pensamento.”
Na visão dos pesquisadores do consórcio liderado pelo WRI, a retomada
verde da economia brasileira pode transformar setores inteiros da economia após
a crise. Na infraestrutura, o aumento dos incentivos para uso de combustíveis
limpos em ônibus, caminhões e aviões pode elevar a frota “limpa” para perto de
30% em dez anos — atualmente, a fatia é inferior a 1%. Na agricultura, hoje à
mercê de críticas internacionais por causa do descontrole no desmatamento de
florestas na Amazônia e no Pantanal, a massificação de técnicas como a integração
lavoura-pecuária-floresta pode aumentar a produtividade em 30%.
Para o frigorífico Marfrig, o investimento em tecnologia para a redução do
impacto ambiental está no centro da estratégia do negócio para os próximos
anos. Já faz algum tempo a Marfrig incentiva as fazendas de onde vem a carne
usada no abate em seus frigoríficos a integrar a pecuária às áreas de lavoura e
de floresta, de modo que toda a emissão proveniente da criação, do abate e do
corte dos animais seja compensada ou evitada. Neste mês, a empresa vai levar às
gôndolas dos supermercados uma carne com carbono neutro. A novidade, que tem
selo da Embrapa, é consequência de uma trajetória de mais de dez anos. Em 2009,
a Marfrig comprometeu-se a não desmatar áreas da Amazônia e, graças ao uso de tecnologia
e gestão, não derruba árvores da floresta nem produz em áreas que pertençam a
comunidades indígenas. “Nenhum país tem o potencial para produzir uma pecuária
sustentável e de baixo carbono como o Brasil”, afirma Paulo Pianez, diretor de
sustentabilidade da Marfrig. O próximo passo será reproduzir esse projeto nos
26 milhões de hectares de outro bioma, o Cerrado. “Nossa meta é que a pecuária
seja classificada como sustentável. Para isso, fazemos articulação com diversos
atores para que eles nos ajudem a preencher lacunas”, diz. O executivo se
refere ao combate à ilegalidade e aos desmatamentos — uma tarefa árdua, levando
em conta as dimensões continentais do país.
Para além dos ganhos setoriais, a retomada verde já está trazendo oportunidades
de negócios a startups, empresas de tecnologia fundamentais para o país sair da
crise, porque abrem postos de trabalho qualificados — e com potencial
de turbinar ainda mais a saída da crise. Em boa medida, as novas tecnologias
melhoram o uso de matérias-primas, seja reaproveitando o que vai para o lixo,
seja mudando processos para fazer mais com menos recursos — e, assim, poluir
menos. Um exemplo vem da startup paulista Solinftec, dona de um software para
traçar o trajeto mais curto para máquinas colheitadeiras e trabalhadores darem
conta da produção em lavouras como as de cana-de-açúcar e soja. Com isso,
economizam gasolina. “Em nossas contas, o sistema evitou a emissão de 680.000
toneladas de carbono no ano passado. É o equivalente à emissão anual dos aviões
da ponte aérea Rio-São Paulo”, diz Rodrigo Iafelice dos Santos, diretor da
Solinftec. Entre os clientes estão grandes representantes do agronegócio, como
Raízen, Cofco e BP. Em 2020, a receita da Solinftec deverá crescer 50%, um
resultado acima do projetado no início do ano, segundo Santos (a empresa não
revela valores de faturamento). Em parte, a pandemia acelerou a busca por
eficiência — afinal, ninguém quer perder dinheiro em tempos bicudos. A crise de
imagem do agronegócio brasileiro com as queimadas na Amazônia também ajudou.
“Por causa dela, antecipamos para agora a entrada na cadeia de florestas, um
projeto que estava previsto só para o fim do ano”, diz Santos. O potencial da
Solinftec já foi percebido pelos investidores. Em dezembro do ano passado, a empresa
recebeu 40 milhões de dólares num aporte liderado pela Unbox, fundo que tem a
família Trajano, do Magazine Luiza, entre os sócios.
A busca por tecnologias verdes está em alta também nos setores mais sensíveis
aos solavancos da economia, como é o caso da construção civil. É o que motiva a
expansão da Âmbar, uma startup de São Carlos, no interior paulista, dona de um
sistema de construção de casas em blocos, semelhantes a peças de Lego, com fios
e canos embutidos. A ideia é reduzir o quebra-quebra e o desperdício de
materiais no canteiro. “Com essa economia toda, é possível evitar até 30% das
emissões de carbono numa obra”, diz Denis Peres, diretor de operações da Âmbar.
Em meio ao pessimismo nos canteiros — o setor deverá afundar mais do que o PIB
neste ano —, a startup deverá faturar estimados 100 milhões de reais, 30% mais
do que em 2019. Na lista de clientes estão construtoras como MRV e Cyrela.
A questão é que, por mais forte que seja, o setor privado não é capaz de impor
a retomada verde sem a ajuda do governo. No estudo capitaneado pelo WRI, os
pesquisadores mapeiam uma série de projetos, planos e programas
governamentais que servem de ponto de partida para a adoção da agenda. Nas
próximas semanas, o estudo deve ser apresentado ao Ministério da Economia na
tentativa de sensibilizar a máquina pública sobre os benefícios da guinada.
Para impulsionar a nova economia, há sugestões de ajustes em diversas políticas
públicas, como o Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), do Ministério da
Economia, criado para fortalecer a relação entre a iniciativa privada e o
governo; a Política Nacional de Inovação, do Ministério da Ciência; e o
Programa ABC, do Ministério da Agricultura, de incentivo à agricultura de baixo
carbono. “O Brasil precisa parar de brigar com o passado e começar a olhar para
o futuro”, diz Izabella Teixeira, ex-ministra do Meio Ambiente nos governos
Lula e Dilma. “Não se trata mais do que foi feito ou do que não foi feito. O
importante é o que vai se fazer daqui para a frente. E nenhum país tem mais o
que apresentar do que o nosso.” O que o estudo traz são alternativas
disponíveis ao país no contexto global de transição para a nova economia. Ao
mesmo tempo, deve-se evitar pensar que qualquer decisão resulte em catástrofe
econômica ou ambiental. Mesmo se optar por não fazer nada, o Brasil continuará
existindo e se desenvolvendo. “O ponto é que há opções melhores e piores.
Ganha-se mais, ou menos”, afirma José Feres, coordenador do Ipea e coautor do
estudo. “O pior que pode acontecer é ter de fazer uma mudança de rota no
futuro. Nesse caso, vai ficar mais caro ser verde.” Para a retomada verde, as
experiências pioneiras já existem e o caminho a seguir está mapeado — basta
fazer.
Por Rodrigo
Caetano, Natália Flach, Denyse Godoy, Leo Branco, na Revista Exame
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