domingo, 7 de junho de 2020

Os protestos contra o racismo


Não foi a primeira vez que um policial branco assassinou um negro de modo torpe, mas desta vez algo mudou, e os Estados Unidos enfrentam a maior convulsão em décadas


“Não consigo respirar.” As palavras foram ditas por George Floyd, um negro assassinado por policiais brancos em Minneapolis, durante os quase nove minutos em que ele ficou com o pescoço preso sob o joelho do agora ex-policial Derek Chauvin no último dia 25. Floyd, suspeito de passar uma nota falsa de US$ 20 para comprar um maço de cigarros, estava no chão, algemado e rendido. Morreu asfixiado, sob o olhar de outros três policiais.

Exatamente a mesma frase tinha sido ouvida em julho de 2014, em Nova York. Eric Garner, acusado de vender cigarros ilegalmente na rua, discutiu com policiais que queriam prendê-lo. Garner levou um mata-leão e foi derrubado. Pelo menos outros quatro policiais o mantiveram no chão, enquanto ele repetia “não consigo respirar” 11 vezes. Morreu no hospital, uma hora depois.

Os dois episódios foram filmados com celulares e circularam amplamente pelas redes sociais. Nos seis anos que os separam, dezenas de outros negros foram assassinados pela polícia americana. Breonna Taylor levou oito tiros enquanto dormia em casa. Philando Castile foi alvejado sete vezes dentro de seu carro (no qual estavam a mulher e a filha de 4 anos). Tamir Rice, um menino de 12 anos, foi morto porque segurava uma arma de brinquedo. A lista é longa. A visibilidade cada vez maior da morte pelas mãos da polícia parecia não ter efeito. O legado da morte de negros se resumia a hashtags (#icantbreathe, ou #nãoconsigorespirar).

Nos últimos dez dias, esse entorpecimento parece ter chegado ao fim. A morte de Floyd desencadeou a maior convulsão racial nos Estados Unidos das últimas décadas. Em mais de 80 cidades, manifestantes tomaram as ruas para pedir o fim da violência policial contra a população negra. “As pessoas estão fartas”, disse Samuel Roberts, professor de história e ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Estudos Afro-Americanos da Universidade Columbia, de Nova York. “A escalada dessas manifestações é resultado de algo que vem se acumulando há anos. O assassinato de George Floyd foi particularmente repugnante, doentio, hediondo. Mas houve vários outros. Sempre esperamos para ver o que acontece. Mas nada aconteceu.”

Em meio à pandemia do novo coronavírus, que segue se espalhando pelo interior dos Estados Unidos, e a uma crise econômica de consequências insondáveis, que já deixou 40 milhões de americanos sem emprego, a tensão racial dos últimos dias não dá sinais de abatimento. Houve enfrentamentos com a polícia (muitos deles iniciados pelos próprios policiais), episódios de vandalismo, de roubos e saques de lojas. Mas o tom da imensa maioria das manifestações é pacífico.

O presidente Donald Trump, entretanto, parece enxergar outra realidade. Na segunda-feira 1º, ele ordenou que o Exército afastasse com gás lacrimogêneo e balas de borracha centenas de manifestantes que estavam reunidos pacificamente na frente da Casa Branca. Enquanto se ouviam ao fundo as explosões de bombas de efeito moral, ele disse que enviaria as Forças Armadas para os estados e cidades que não “defendessem a vida e as propriedades de seus habitantes”. Momentos depois, Trump atravessou a rua, parou na porta de uma igreja e posou para fotos segurando uma Bíblia. A bispa da diocese episcopal de Washington se disse indignada com o uso da igreja para fins de propaganda e afirmou que Trump estava enviando uma mensagem “contrária aos ensinamentos de Jesus”.

Dois dias depois da ameaça de colocar o Exército contra os próprios americanos, o secretário de Defesa, Mark Esper, afirmou que o uso de forças militares só deveria ser considerado em situações mais graves e urgentes. “Não estamos nesta situação agora”, afirmou Esper, que é civil. Militares da ativa e da reserva condenaram publicamente a ideia de empregar a maior força militar do planeta dentro da própria casa. “Os Estados Unidos não são um campo de batalha”, escreveu no Twitter o general da reserva Martin Dempsey, ex-chefe do Estado-Maior das Forças Armadas. “Nossos cidadãos não são o inimigo.”

Em uma crise sem precedentes em décadas, em nenhum momento Trump pediu a união do país. Preocupado em se reeleger em novembro, e com sua principal bandeira de campanha em ruínas — a economia —, Trump decidiu apostar tudo no discurso da lei e da ordem.

É difícil imaginar militares e tanques nas ruas de Nova York. Houve casos de vandalismo e saques na cidade. A Macy’s e lojas famosas da Quinta Avenida foram invadidas por bandos de arruaceiros. Mas se resumiram a episódios isolados.

Na tarde de terça-feira 2, duas passeatas percorreram o lado leste de Manhattan. Os participantes, em sua maioria jovens vestindo camisetas negras, carregavam cartazes do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam). Na esquina da Terceira Avenida com a Rua 42, um dos cruzamentos mais movimentados da cidade e ao lado da estação de trem Grand Central, uma adolescente esguichava álcool em gel nas mãos dos manifestantes. Os pedestres que estavam caminhando pararam para aplaudir. Cerca de 30 policiais seguiam a manifestação.

A mesma cena se repetiu em diversos outros distritos de Nova York, sob toque de recolher entre 20 horas e 5 horas — a primeira vez que essa medida foi implementada na cidade em mais de 75 anos. Houve momentos de tensão quando a polícia encurralou uma manifestação que ocupou as pistas dos carros da Manhattan Bridge. Os manifestantes foram impedidos de entrar em Manhattan, mas o protesto acabou se dispersando pacificamente do outro lado da ponte, no Brooklyn.

No Twitter, Trump afirmou que seu governo “fez mais pela população negra que Joe Biden em 43 anos”. Sharon Fairley, professora de Direito da Universidade de Chicago e autora de um estudo sobre mecanismos de fiscalização das polícias americanas, discorda. “O presidente voltou no tempo”, disse. “Trump basicamente desmontou um programa robusto que investigava departamentos de polícia que violassem as leis.”

Fairley mencionou o caso de Laquan McDonald, um jovem de 17 anos assassinado por um policial de Chicago em 2015. O ministério da Justiça concluiu uma investigação do caso em janeiro de 2017, apontando uma cultura de violência excessiva contra minorias, além de falta de treinamento e supervisão dos policiais. Em fevereiro, um mês depois do discurso de posse em que Trump prometeu o fim da “carnificina americana”, seu governo anunciou um recuo nas investigações de possíveis abusos das polícias.

Em Minneapolis, onde Floyd foi assassinado, a população negra corresponde a 20% dos 430 mil habitantes, mas está envolvida em 60% dos casos em que a polícia usa a força (socos, chutes etc.) ou equipamentos como gás de pimenta e armas de choque.

No país, os negros são 13,4% da população, mas aparecem de maneira desproporcional nas estatísticas de desigualdade, violência policial e encarceramento. Eis três exemplos:

• para cada 100 mil americanos acima de 18 anos, há 268 brancos na cadeia, em comparação com 1.501 negros, segundo dados do Pew Research Center;

• um estudo realizado pela Universidade Stanford analisou 93 milhões de verificações de rotina de motoristas entre 2001 e 2017. Os negros têm 20% mais chances de serem parados para checagem de documentos que os brancos;

• os índices de mortalidade de Covid-19 entre os negros americanos é quase três vezes maior que a contabilizada entre os brancos, de acordo com um levantamento do instituto de pesquisas APM Research Lab.

“Não há como resolver o problema da violência policial sem atacar esse racismo estrutural da sociedade americana”, afirmou Roberts, da Universidade Columbia. “Não podemos olhar para o assassinato de Floyd ou de tantos outros negros como algo separado da desigualdade e da opressão. Se tivéssemos uma sociedade mais igualitária, esse tipo de coisa não aconteceria tão frequentemente.”

O historiador disse que estamos assistindo à maturação de um novo movimento pelos direitos civis, como aquele liderado por Martin Luther King nos anos 1950 e 1960, que acabou com a segregação racial especialmente no sul do país. “Se você observar as redes sociais, os movimentos mais ativos nos últimos anos foram fundados há menos de uma década.” Um dos exemplos disso é o Black Lives Matter, que nasceu como uma hashtag nas redes sociais depois do assassinato de Trayvon Martin, em 2012, e hoje é uma coalizão descentralizada e internacional. Para Roberts, o que estamos vendo hoje não é “fogo de palha”.

Por Sérgio Teixeira Jr., na Revista Época





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