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Manifestantes derrubam estátua de traficante de escravos no Reino Unido |
Recentemente, diversos protestos ao redor do globo
direcionaram sua atenção para estátuas no espaço público. O primeiro episódio
ocorreu na Inglaterra, com a derrubada da estátua do traficante de escravos
Edward Colston. Na Bélgica, uma estátua do rei Leopoldo II, responsável por
inúmeras atrocidades no Congo, foi incendiada e posteriormente movida para um
museu. Nos Estados Unidos, monumentos em homenagem a generais escravocratas e a
Cristóvão Colombo também foram alvo de manifestantes. Esse debate está
acontecendo já há alguns anos e não só na Europa e nos EUA, como demonstra o
movimento Rhodes Deve Cair, de 2015, dirigido contra a estátua do colonizador e
racista Cecil Rhodes na Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul).
O debate agora chegou ao Brasil, começando pelas redes sociais e ganhando as
páginas dos jornais. Ainda que nenhum movimento semelhante esteja ocorrendo
aqui, trata-se de uma possibilidade concreta: por um lado, a estátua de Borba
Gato e o Monumento às Bandeiras foram pichados com tinta vermelha em 2016; por
outro, o movimento negro tem produzido críticas fundamentais às dinâmicas
racistas de nosso país, tanto no presente quanto no passado. Diante desse
cenário, comentaristas têm se perguntado sobre a legitimidade da derrubada de
monumentos homenageando bandeirantes e outros personagens, como Tiradentes. As
respostas encontradas nos jornais frequentemente têm sido negativas,
argumentando que a derrubada de estátuas significaria a vitória do revisionismo
por meio da tentativa de apagar a história e reescrever o passado, projeto
supostamente autoritário e anacrônico, pois fundado em uma visão que julga o
passado com os olhos de hoje.
O que esses argumentos ignoram são os fundamentos da própria historiografia,
aqui entendida como a escrita da história baseada em metodologias e evidências
aceitas pelos profissionais da área. Assim, a prática historiográfica é
essencialmente revisionista: nós estamos sempre revisando nossos conhecimentos
e interpretações sobre o passado. Essa revisão é determinada pelas relações
sociais do presente, pois a sucessiva reescrita da história a partir do desenvolvimento de
novas questões e interpretações está no cerne do trabalho dos
historiadores. É fundamental distinguir, porém, revisionismo de negacionismo:
enquanto o primeiro é inerente ao desenvolvimento da historiografia e
tem como base evidências e metodologias múltiplas, o segundo é uma tática
política destinada a falsificar processos históricos (e frequentemente se
apresenta como revisionismo, o que explica a confusão entre os dois termos).
Por exemplo, enquanto os historiadores têm revisado desde os anos 1980 suas
interpretações sobre o Golpe de 1964 como um processo marcado pela aliança dos
militares com setores da sociedade civil, determinados grupos políticos ainda
hoje negam o caráter autoritário da ditadura estabelecida nesse momento. Como
toda prática que se pretende científica, a historiografia é feita de consensos
parciais e provisórios, em constante desenvolvimento e transformação.
A decisão de erigir uma estátua não é neutra ou um registro objetivo sobre
determinado personagem. Ao contrário, trata-se de uma tentativa de eternizar em
pedra e bronze uma visão específica sobre a história, eliminando assim debates
e discordâncias. E isso por meio de uma decisão política tomada em sociedades
marcadas por extremas desigualdades, geralmente muito depois dos eventos em
questão. Colston morreu em 1721, mas sua estátua foi colocada em Bristol apenas
em 1895. Já Borba Gato morreu em 1718, sua efígie no bairro paulistano de Santo
Amaro sendo inaugurada apenas em 1963. Os monumentos dedicados aos bandeirantes
dizem muito sobre os projetos hegemônicos das elites paulistas do século XX e
nada sobre a sociedade colonial que pretendem representar. Assim, a remoção dos
monumentos também expressa uma transformação das relações e dos valores
sociais. Erigir uma estátua é fazer história, derrubá-la também. Esses momentos
são exatamente o contrário do apagamento, pois suscitam debates que geralmente
permanecem adormecidos quando se discute o que a sociedade quer valorizar e
comemorar.
Já a ideia de que seria anacrônico condenar personagens históricos erra em
outra frente, pois ignora que havia outras moralidades possíveis na própria
época em que essas figuras viviam. Colombo foi repreendido, preso e levado de
volta acorrentado para a Península Ibérica, entre outros motivos por escravizar
os povos originários do Caribe contra a vontade da rainha Isabel de Castela; as
expedições escravistas dos bandeirantes foram condenadas por religiosos, papas
e reis, e mesmo alguns paulistas expressaram remorso em seus testamentos ao
admitirem a ilegalidade do cativeiro a que haviam submetido os povos
originários. O espantalho do anacronismo frequentemente não passa de uma adoção
irrefletida da perspectiva dominante que perpetua a negação da alteridade. Por
que o espaço público deve continuar a ser dominado por figuras da elite branca
numa sociedade majoritariamente negra e pobre?
A constante reavaliação do passado nacional e a progressiva crítica de seus
mitos é uma das marcas de uma democracia madura. O reconhecimento da
inadequação de homenagens públicas realizadas no passado não significa
apagamento, mas reparação de alguns dos muitos equívocos cometidos por nossos
antepassados. A ressignificação do espaço público pode, assim, contribuir para
novos projetos, e mais inclusivos, de futuro. O verdadeiro projeto de apagar a
história é aquele que a vê como estática e pretende nos manter presos às visões
superadas de uma historiografia laudatória dos heróis e mitos nacionais, que
excluem e violentam a memória de diversos grupos sociais — em especial negros,
indígenas e mulheres — reproduzindo no presente as desigualdades herdadas do
passado.
Por Paulo Pachá e Thiago Krause, na Revista Época
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