quarta-feira, 24 de junho de 2020

Derrubando estátuas, fazendo história

Manifestantes derrubam estátua de traficante de escravos no Reino Unido


Recentemente, diversos protestos ao redor do globo direcionaram sua atenção para estátuas no espaço público. O primeiro episódio ocorreu na Inglaterra, com a derrubada da estátua do traficante de escravos Edward Colston. Na Bélgica, uma estátua do rei Leopoldo II, responsável por inúmeras atrocidades no Congo, foi incendiada e posteriormente movida para um museu. Nos Estados Unidos, monumentos em homenagem a generais escravocratas e a Cristóvão Colombo também foram alvo de manifestantes. Esse debate está acontecendo já há alguns anos e não só na Europa e nos EUA, como demonstra o movimento Rhodes Deve Cair, de 2015, dirigido contra a estátua do colonizador e racista Cecil Rhodes na Universidade da Cidade do Cabo (África do Sul).

O debate agora chegou ao Brasil, começando pelas redes sociais e ganhando as páginas dos jornais. Ainda que nenhum movimento semelhante esteja ocorrendo aqui, trata-se de uma possibilidade concreta: por um lado, a estátua de Borba Gato e o Monumento às Bandeiras foram pichados com tinta vermelha em 2016; por outro, o movimento negro tem produzido críticas fundamentais às dinâmicas racistas de nosso país, tanto no presente quanto no passado. Diante desse cenário, comentaristas têm se perguntado sobre a legitimidade da derrubada de monumentos homenageando bandeirantes e outros personagens, como Tiradentes. As respostas encontradas nos jornais frequentemente têm sido negativas, argumentando que a derrubada de estátuas significaria a vitória do revisionismo por meio da tentativa de apagar a história e reescrever o passado, projeto supostamente autoritário e anacrônico, pois fundado em uma visão que julga o passado com os olhos de hoje.

O que esses argumentos ignoram são os fundamentos da própria historiografia, aqui entendida como a escrita da história baseada em metodologias e evidências aceitas pelos profissionais da área. Assim, a prática historiográfica é essencialmente revisionista: nós estamos sempre revisando nossos conhecimentos e interpretações sobre o passado. Essa revisão é determinada pelas relações sociais do presente, pois a sucessiva reescrita da história a partir do desenvolvimento de novas questões e interpretações está no cerne do trabalho dos historiadores. É fundamental distinguir, porém, revisionismo de negacionismo: enquanto o primeiro é inerente ao desenvolvimento da historiografia e tem como base evidências e metodologias múltiplas, o segundo é uma tática política destinada a falsificar processos históricos (e frequentemente se apresenta como revisionismo, o que explica a confusão entre os dois termos). Por exemplo, enquanto os historiadores têm revisado desde os anos 1980 suas interpretações sobre o Golpe de 1964 como um processo marcado pela aliança dos militares com setores da sociedade civil, determinados grupos políticos ainda hoje negam o caráter autoritário da ditadura estabelecida nesse momento. Como toda prática que se pretende científica, a historiografia é feita de consensos parciais e provisórios, em constante desenvolvimento e transformação.

A decisão de erigir uma estátua não é neutra ou um registro objetivo sobre determinado personagem. Ao contrário, trata-se de uma tentativa de eternizar em pedra e bronze uma visão específica sobre a história, eliminando assim debates e discordâncias. E isso por meio de uma decisão política tomada em sociedades marcadas por extremas desigualdades, geralmente muito depois dos eventos em questão. Colston morreu em 1721, mas sua estátua foi colocada em Bristol apenas em 1895. Já Borba Gato morreu em 1718, sua efígie no bairro paulistano de Santo Amaro sendo inaugurada apenas em 1963. Os monumentos dedicados aos bandeirantes dizem muito sobre os projetos hegemônicos das elites paulistas do século XX e nada sobre a sociedade colonial que pretendem representar. Assim, a remoção dos monumentos também expressa uma transformação das relações e dos valores sociais. Erigir uma estátua é fazer história, derrubá-la também. Esses momentos são exatamente o contrário do apagamento, pois suscitam debates que geralmente permanecem adormecidos quando se discute o que a sociedade quer valorizar e comemorar.

Já a ideia de que seria anacrônico condenar personagens históricos erra em outra frente, pois ignora que havia outras moralidades possíveis na própria época em que essas figuras viviam. Colombo foi repreendido, preso e levado de volta acorrentado para a Península Ibérica, entre outros motivos por escravizar os povos originários do Caribe contra a vontade da rainha Isabel de Castela; as expedições escravistas dos bandeirantes foram condenadas por religiosos, papas e reis, e mesmo alguns paulistas expressaram remorso em seus testamentos ao admitirem a ilegalidade do cativeiro a que haviam submetido os povos originários. O espantalho do anacronismo frequentemente não passa de uma adoção irrefletida da perspectiva dominante que perpetua a negação da alteridade. Por que o espaço público deve continuar a ser dominado por figuras da elite branca numa sociedade majoritariamente negra e pobre?

A constante reavaliação do passado nacional e a progressiva crítica de seus mitos é uma das marcas de uma democracia madura. O reconhecimento da inadequação de homenagens públicas realizadas no passado não significa apagamento, mas reparação de alguns dos muitos equívocos cometidos por nossos antepassados. A ressignificação do espaço público pode, assim, contribuir para novos projetos, e mais inclusivos, de futuro. O verdadeiro projeto de apagar a história é aquele que a vê como estática e pretende nos manter presos às visões superadas de uma historiografia laudatória dos heróis e mitos nacionais, que excluem e violentam a memória de diversos grupos sociais — em especial negros, indígenas e mulheres — reproduzindo no presente as desigualdades herdadas do passado.


Por Paulo Pachá e Thiago Krause, na Revista Época





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