quarta-feira, 3 de junho de 2020

Liberdade em perigo



Em um recentíssimo artigo, divulgado em 26 de maio último, Manuel Castells, um dos maiores sociólogos contemporâneos, estudioso da sociedade em redes e do capitalismo da informação, assentou: [1].

São muitas as horas diárias que as pessoas consomem . No Brasil, pesquisa recente indicou que a média de presença na internet é de quase quatro horas[2]. Por isso, dos âmbitos jurídicos, o digital emerge, atualmente, com uma importância assemelhada à do direito civil ou do trabalho: ele rege significativa proporção da existência humana.

Muitas coisas no âmbito do direito digital estão acontecendo concomitantemente. No exterior e aqui. Nos campos administrativo, legislativo e judicial. Quando isso ocorre, existe uma natural dificuldade de processar adequadamente as informações. O risco de interpretações equivocadas e ações errôneas se eleva. Daí a necessidade de foco e reflexão. E de calma. Sobretudo em momento de pandemia, ano de eleições, numa sociedade polarizada e com os nervos à flor da pele.

Em 26 de maio passado, o Presidente Donald Trump teve uma postagem sua rotulada no Twitter como desinformativa[3]. Não gostou. Dois dias depois, reagiu editando uma ordem executiva[4]. O alvo dele foi a Seção 230 do Communications Decency Act [5]. A ordem presidencial foi no sentido de dificultar esse tipo de advertência, por ele considerada como censória ao livre trânsito de ideias. Aqui, o Governo Federal rapidamente indicou que poderia replicar essa diretriz[6].

Em 27 de maio, o Ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União, diante da constatação de que a publicidade do Banco do Brasil alcançava de reputação duvidosa, financiando-os, resolveu suspender os anúncios nesses sítios, estendendo a vedação às redes sociais, sobre as quais não pairava qualquer objeção de credibilidade[7].

A Lei Geral de Proteção de Dados, cujo início da vigência estava programado para agosto deste ano, foi objeto da Medida Provisória 959, que postergou sua vigência para maio de 2021. O Senado Federal, no entanto, ao aprovar o PL 1179/20, manteve a entrada em vigor para agosto[8]. Ainda no âmbito parlamentar, foi chancelada a recriação a Agência Nacional de Proteção de Dados, com a aprovação da Medida Provisória 869 [9].

Pela Medida Provisória 954 foi estabelecida a obrigação de os provedores de conexão encaminharem informações de seus usuários ao Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O Supremo Tribunal Federal, no entanto, reconheceu a inconstitucionalidade desses dispositivos, ao julgar as Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6387, 6388,6389, 6390 e 6393, da relatoria da Ministra Rosa Weber. Considerou vulnerado o direito fundamental à proteção de dados, diante da proteção insuficiente oferecida pelo regramento[10].

Também no STF, iniciou-se o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 403, de relatoria do Ministro Edson Fachin e da ADI 5527, da relatoria da Ministra Rosa Weber. As ações discutem a possibilidade de suspensão dos serviços do WhatsApp e a legitimidade da criptografia por ele utilizada. Os relatores já votaram reconhecendo a impossibilidade de suspensão, exceto nos casos de violação de direitos dos usuários, nos termos da lei, e fixaram a licitude da criptografia[11]. O julgamento está suspenso, diante do pedido de vistas feito pelo Ministro Alexandre de Moraes.

Além disso, no Supremo Tribunal Federal corre o Inquérito 4781, no qual foram adotadas, recentemente, medidas de busca e apreensão que recaíram sobre acusados de financiamento e propagação de 'fake news'[12].

Sobre esse tema também há a Comissão Parlamentar de Inquérito das Fake News, cujas atividades estão suspensas em razão da pandemia de Covid-19.

Mais recentemente, foram apresentados dois projetos de lei, um na Câmara (PL 1429) e outro no Senado (PL 2630[13]), que pretendem regular a liberdade de expressão na internet, no Brasil. O PL 2630, segundo afirmado pelo Presidente Davi Alcolumbre, deve ser apreciado em Plenário em 2 de junho[14].

É aqui que algumas observações precisam ser feitas. À semelhança do que acontece com a legislação penal quando editada em momentos de comoção, essa proposição parece obedecer a um propósito de tentar conter o que aparentemente é caótico numa ordem segura. Mas, a rapidez da tramitação senatorial, ocorrida em menos de um mês, sem que tenha havido debate em comissões, prejudicados pelo momento de distanciamento social, sem que a sociedade civil pudesse se reunir para discutir com os congressistas, indicam açodamento no rito legislativo.

Quem quer que leia a proposição perceberá que ela é bem intencionada. Apesar disso, é possível notar dificuldades legislativas evidentes. Há um certo intento encapsulador do universo da internet, o que não parece pragmaticamente viável. Note-se, com especial atenção, o comando que diz que os serviços de mensagens privadas devem ter até 256 participantes (art. 13). Não é um dado decorrente do cálculo do melhor ou do pior, mas a opção operacional atual do WhatsApp. No Telegram, por exemplo, tal limite inexiste. A proposta supõe o engessamento de um modelo, que, mesmo para esse serviço, será tornado imodificável. A tecnologia, por definição, é disruptiva e não há meio de dizer qual é o padrão de serviço que deve ser praticado, sem, com isso, incorrer em riscos autoritários evidentes.

Também no caput do art. 13 está a determinação de que uma mesma mensagem não pode ser remetida para mais de cinco pessoas ou grupos. Uma clara restrição à circulação de ideias em tempos normais, que não se justifica no regime democrático, onde o trânsito informacional deve ser delimitado por seu conteúdo (caso seja ilícito), não por sua quantidade de destinatários. Por essa norma, até mesmo a crítica de um filme, de um livro, de uma obra de arte qualquer, poderia ser bloqueada, sob a presunção de que se tornaria desinformativa a partir de uma determinada quantidade de destinatários. Uma coisa é uma plataforma resolver estabelecer um limite ao seu serviço, por opção de seus termos. Outra é o Estado fixar o desenho da comunicação e proibir a sua circulação, por lei. A afronta a diversos preceitos constitucionais, especialmente ao dos arts. 5.º, IV e IX, e 220, que garantem a liberdade de manifestação do pensamento e de comunicação social.

O risco autoritário se revela, ainda mais forte, no § 1.º do mencionado artigo 13. Ele assinala que em período de propaganda eleitoral, estabelecido pelo art. 36 da Lei 9504/97, e durante situações de emergência ou calamidade pública, o número de encaminhamentos de uma mesma mensagem fica limitado a um usuário ou grupo. É, claramente, uma tentativa de evitar que redes de disseminação de desinformação se forme. Porém, isso se daria ao custo de impedir fatos normais da vida, sem qualquer intento político. Por exemplo, pais comunicarem o nascimento de uma criança aos amigos, caso ocorra nesses períodos. O alvo é uma coisa, mas o tiro não é preciso e alcança muito mais do que se pretendia.

Mas o que parece mais relevante é a tentativa de responsabilização dos provedores de aplicação pelos conteúdos postados por terceiros (art. 10). Eles serão convertidos em verificadores de veracidade de conteúdo. Isso, para além das dificuldades de distinguir o que é opinião do que é fato, inclui, igualmente uma inviabilidade prática de conferência, postagem a postagem, do que é verdadeiro e o que é falso. Um consumidor que se queixa de um estabelecimento, fala a verdade ou mente? Como saberia a plataforma? Um cidadão que reclama da promessa descumprida de um senador ou de um deputado, de atuar desse ou daquele modo, mente ou fala a verdade? Agências de checagem de fatos têm um limite de atuação e, milhões de postagens diárias, claramente, estão fora de sua capacidade de pesquisa e validação (fora, evidentemente, a possibilidade de erro de avaliação delas mesmas).

Hoje, segundo o Marco Civil da Internet, essa responsabilidade começa, se e quando descumprida uma ordem judicial. É a regra do art. 19 do Marco Civil da Internet. Dito comando decorre de debates legislativos ocorridos com a participação da sociedade civil, em cinco anos de discussão congressual. Está sob aplicação e verificação constante do Judiciário.

Já o art. 11, cuja redação contém erro material, frase incompleta, incorpora novo risco às liberdades. Ele, além dessa falha, parece querer que os provedores prestem esclarecimentos aos usuários sobre o conteúdo postado, e advirta igualmente aos outros utentes do seu serviço. Tal proposta, para além de materialmente inalcançável, faria de cada plataforma uma espécie de tribunal da verdade oficial, estimulada a censurar postagens a fim de evitar riscos indenizatórios.

Arnaldo Antunes compôs um poema concretista em duas frases: Só isso. São ideias antagônicas que parecem circular a realidade atual das relações regulatórias na internet e diagnosticar um caminho de solução. A apreciação cautelosa de cada ideia. Uma proposta legislativa com tão bons propósitos merece maturação e aperfeiçoamento para que enganos, como os citados, possam ser depurados.

Por José Rollemberg Leite Neto, no Estadão online






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