Uma joia da cinematografia e do esporte brasileiros
- as imagens do Canal 100 - corre o risco de se perder na barafunda sem fim da
Cinemateca Brasileira
Que Fellini, que nada. Pasolini, Truffaut, Godard? Não. E aquele novo filme do
diretor americano que pôs um tubarão para assustar as pessoas na praia? Também
não. Para uma geração de brasileiros, sobretudo do Rio e de São Paulo, que
frequentava cinemas como o Bruni Tijuca e o Bruni Copacabana, o Ipiranga ou o
Majestic, em um arco de tempo que vai de 1958 a 1986, a graça mesmo era saber o
que estava levando o Canal 100, chegar mais cedo e… pã, pã, pã, pã, pã, pã. Aos
acordes iniciais dos naipes de saxofones e trompetes de Na Cadência do Samba,
que bonito era ouvir a trilha de abertura do cinejornal com as bolinhas
coloridas, efeito visual obtido a partir da filmagem dos faróis de carros, e
então a delícia de ver de perto — bem de perto, na altura do gramado, olhos nos
olhos — os torcedores da geral com radinho na orelha, os lances espetaculares
de Pelé, Garrincha, Zico, Roberto Dinamite, Rivellino e um cipoal de craques
que pareciam artistas de Hollywood, conduzidos pelo vozeirão de Cid Moreira.
Escolhiam-se as salas, enfim, em virtude daqueles cinco minutos mágicos.
O Canal 100, mesmo para quem não é fã de futebol, faz parte da memória coletiva
de um país que, segundo a máxima do escritor Ivan Lessa, de “quinze em quinze
anos esquece o que se passou nos últimos quinze anos”. É risco permanente,
agora multiplicado. Um lote de 10?000 latas de filmes em película do
cinejornal, guardadas nos depósitos da Cinemateca Brasileira, em São Paulo,
corre risco de danificação — e, não menos grave, mal pode ser usado, com receio
de processo judiciário. Os rolos estão enrolados na crise sem fim da
instituição, que deve mais de 11 milhões de reais. Há duas semanas a empresa de
refrigeração, fundamental para a manutenção dos arquivos, jogou a toalha e
cortou o serviço por não receber o que lhe devem. E mais: numa queda de braço
que vem desde o início dos anos 2000, não se sabe quem deve zelar pelo acervo.
O Ministério da Cultura? O do Turismo? Em 2008, a família
Niemeyer, dos criadores do Canal 100, fechou uma parceria com a Cinemateca para
a guarda do tesouro, que poderia ser usado em documentários e programas de
televisão. Ia bem, havia futuro, até que o vaivém da política brasileira pôs
tudo a perder. Recentemente, o TCU começou a investigar a barafunda
da Cinemateca, e os donos do material acabaram ficando de mãos amarradas.
“Tenho receio em usar os filmes e depois não conseguir concluir os projetos”,
disse a VEJA Alexandre Niemeyer, filho do criador, Carlinhos Niemeyer
(1920-1999), fiel depositário da coleção. “No início, a ideia era digitalizar
tudo, o que já é praticamente impossível. A Cinemateca não tem dinheiro nem mais
a tecnologia adequada de preservação.” E, mal acondicionadas, as embalagens
caminham para o bolor.
Há um movimento da classe cinematográfica de transferência do controle da
Cinemateca para o governo do Estado de São Paulo (para a União, trata-se apenas
de uma sinecura para a ex-ministra e ex-namoradinha do Brasil, Regina Duarte).
“Seria uma solução razoável”, diz Niemeyer. É um modo de não deixar morrer uma
joia que, no início dos anos 2000, quase foi comprada pelo Instituto Moreira
Salles por 3 milhões de dólares, segundo VEJA apurou.
E, ressalve-se, não é só futebol. Houve, no Brasil, no início dos anos 1960, o
Cinema Novo de Glauber Rocha, Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade e cia.,
que, entre outros méritos, levou para as telas a chamada “estética da fome”.
Mas houve também o jeito de gravar do Canal 100, com câmeras alemãs Arri 2c,
cujas primeiras versões foram lançadas durante a II Guerra. Na linha dos pés
dos jogadores, em 60 quadros por segundo — e não na velocidade normal, de 24
quadros por segundo —, a sensação era indizível. “Era maior do que a vida”,
resume o diretor de fotografia Jacob Solitrenick, que fez parte da equipe que
trabalhou no filme oficial da Copa de 1994, Todos os Corações do Mundo, de
tomadas que bebiam do Canal 100. “Nunca tínhamos visto o futebol daquele
ângulo, tão eloquente.” Ou, como anotou Walter Carvalho, fotógrafo de Lavoura
Arcaica e Carandiru, ao se referir a um dos cinegrafistas da clássica série
esportiva, Francisco Torturra: “Ele posicionava sua câmera ao nível da grama e
dominava o percurso da bola com a destreza de seu olho e os reflexos de seus
músculos. Como Garrincha, levava a bola até o gol”. É seiva que não pode sumir
no irresponsável caos da Cinemateca.
Por Fábio Altman, na Revista Veja
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