quarta-feira, 10 de junho de 2020

Entrevista - Michael Sandel: o dilema do bonde




O filósofo americano da Universidade Harvard diz que flexibilizar a quarentena é adotar um pensamento de que só o mais apto sobreviverá

Em um de seus vídeos, com mais de 11 milhões de visualizações, o professor e filósofo americano Michael Sandel perguntou a um auditório lotado de estudantes: se um bonde desgovernado está prestes a atingir e matar cinco trabalhadores desatentos numa pista, seria correto empurrar alguém na frente para sacrificar apenas uma vida e salvar as demais? Adaptado para tempos de pandemia, esse tem sido o dilema enfrentado por vários governantes no momento de definir o alcance e a duração da quarentena. Para Sandel, a resposta é evidente: a defesa da retomada das atividades econômicas neste momento reflete um pensamento social darwinista em que só os mais aptos sobreviveriam. “Deveríamos resistir à ideia utilitária de sacrificar a vida de alguns pelo bem de tentar reabrir a economia”, afirma ele, que critica a forma como os presidentes Jair Bolsonaro e Donald Trump têm conduzido o combate à Covid-19, especialmente a posição de ambos em subestimar o perigo da doença e as tentativas de desafiar a autoridade dos governadores em relação ao distanciamento social. Nesta entrevista a VEJA, o professor da Universidade Harvard chama a atenção para o perigo do populismo em momentos de crise como a que o mundo atravessa e para a importância de um Poder Judiciário forte e independente, capaz de se contrapor a arroubos autoritários.

Manter o isolamento social ou retomar as atividades econômicas?

Temos esse debate nos Estados Unidos. Alguns estão perguntando se devemos enviar as pessoas de volta ao trabalho e à escola, mesmo que isso signifique que algumas delas vão morrer. Há uma discussão sobre se devemos sacrificar pessoas vulneráveis para que possamos retomar a atividade econômica e permitir o retorno ao trabalho. Eu não aceito essa escolha. Se concordarmos que a vida humana é preciosa, não podemos sacrificá-la. O ganho econômico não deve ser comprado com a perda de vidas.

Esse debate é um típico exemplo do “dilema do bonde”?

Sim. Esse é um teste clássico do pensamento moral utilitário: é correto sacrificar algumas vidas em prol da maior felicidade para outras? Creio que não devemos usar esse modo utilitário de pensar para decidir como lidar com a crise atual. Deveríamos resistir à ideia de sacrificar a vida de alguns pelo bem de tentar reabrir a economia. Isso leva a um tipo de pensamento social darwinista — a sobrevivência do mais apto. Devemos respeitar a liberdade individual, mas não a ponto de permitir comportamentos irresponsáveis que colocam em risco a saúde pública.

O senhor acha mesmo que o Estado deve regular o direito fundamental dos cidadãos de ir e vir?

A liberdade individual é importante. Mas ir à praia e espalhar um vírus contagioso causa danos a outras pessoas e à saúde pública. Essa é uma falha grave da preocupação com o bem comum. As cidades e os estados têm a responsabilidade de educar os cidadãos, especialmente os jovens, sobre a importância do distanciamento social durante uma pandemia. Exercer alguma restrição ao cumprimento de nossos desejos imediatos — como o de ir à praia, por exemplo — é uma parte importante do respeito aos concidadãos e da promoção do bem comum.

Nesse caso, a liberdade de escolha não seria uma ideia ilusória?

Os requisitos legais para permanecer em nossas casas durante a pandemia podem ser coercitivos, mas a questão é se essa coerção é justificada. Eu diria que, sim, é justificada. Não devemos insistir na escolha individual, independentemente das consequências. E durante a crise deveríamos estar dispostos a sacrificar festas com amigos, a fim de proteger a saúde dos mais vulneráveis e da sociedade como um todo.

O que é um bem comum em meio à crise provocada pelo coronavírus?

No contexto da pandemia, o bem comum significa compartilhar os riscos, proteger os mais vulneráveis e tentar encontrar uma maneira de ajudar um ao outro no momento em que nossas condições econômicas e de saúde enfrentam sérios desafios. No meu novo livro (A Tirania do Mérito, editora Civilização Brasileira), discuto o significado do bem comum e tento mostrar que, quando os bem-sucedidos acreditam que são os únicos responsáveis por seu sucesso, torna-se muito difícil argumentar juntos como cidadãos sobre o que devemos uns aos outros. Nas últimas décadas, os vencedores da globalização passaram a acreditar que suas realizações são de sua própria responsabilidade e que, por seu sucesso, não são devedores da comunidade. Essa atitude é prejudicial para o bem comum, que é uma questão sobre como vivemos juntos em sociedade, compartilhando os benefícios e encargos.

O senhor defende a solidariedade como uma virtude cívica. O que seria exatamente isso?

Em tempos difíceis como estes, a solidariedade requer sacrifício compartilhado. Isso significa que os cidadãos mais privilegiados devem compartilhar o sacrifício que os trabalhadores comuns estão fazendo quando perdem seus empregos ou perdem salários ou correm risco à saúde. Eu acredito que os membros ricos e poderosos da sociedade não devem ficar isentos de sacrifício.

Qual o papel da Justiça em momentos de crise como esta provocada pela pandemia?

É importante não desistir do Estado de direito, mesmo durante uma emergência. Nos períodos de crise, há uma tendência de o poder Executivo crescer, às vezes em uma extensão perigosa. Por isso, é importante que o Judiciário permaneça forte e independente, mesmo durante uma crise de saúde pública. Nos Estados Unidos, por exemplo, o presidente Donald Trump afirmou que, como presidente, tem autoridade “absoluta” para enviar as pessoas de volta ao trabalho e à escola em todos os estados. Mas isso é contrário a nossa Constituição, que dá aos governadores dos estados, e não ao presidente, a autoridade para decidir se as escolas e os negócios permanecerão fechados. Espero que o presidente Trump recue dessa reivindicação excessiva de autoridade. Mas, se não o fizer, é importante que a Suprema Corte faça cumprir a Constituição e os limites que impõe ao poder presidencial.

O Brasil enfrenta um debate muito parecido.

Existem muitas semelhanças nas respostas de Donald Trump e Jair Bolsonaro à crise do coronavírus. Ambos procuraram subestimar ou minimizar o perigo do vírus. Eles também desafiaram a autoridade dos governadores e estados ao exigir distanciamento social. Ambos ficaram frustrados com especialistas em saúde e médicos cujas opiniões contradizem as deles. Uma liderança forte em uma pandemia como esta requer qualidades de empatia e caráter que muitas vezes parecem ausentes nas respostas de Trump e Bolsonaro à crise.

Apesar de tudo, ambos continuam com bons índices de aceitação, o que tem catalisado a polarização política.

Este é um momento de profunda desigualdade e intensa polarização. Os cidadãos estão frustrados e irritados com o establishment político. Essa raiva e frustração levaram à eleição de Trump e Bolsonaro. E assim a pandemia chegou em um momento em que há muito pouca confiança no governo. Nossa maior esperança é que essa crise nos lembre de nossa dependência mútua, de nossa vulnerabilidade compartilhada, e nos aponte para uma solidariedade renovada, uma sensação de que estamos todos juntos nisso.

Alguns estudiosos defendem a ideia de que o mundo será diferente depois da Covid-19, especialmente na economia. O senhor concorda?

Estamos vendo o Estado desempenhando um papel maior na economia. Ainda não se sabe se isso continuará após a passagem da pandemia. Mas é possível que, depois de quatro décadas de conduta pouco intervencionista do governo, esta crise marque um ponto de virada, lembrando aos cidadãos que os governos têm um papel importante a desempenhar e que não podemos deixar tudo para os mercados. Em vários países, incluindo o Reino Unido, a Dinamarca e a Holanda, o governo está pagando de 75% a 90% do salário dos trabalhadores, para que as empresas possam reter seus funcionários e não demiti-­los. Nos Estados Unidos, o seguro-­desemprego foi ampliado durante a crise para ajudar os trabalhadores desempregados. Até o governo Trump concordou em pagar pelo tratamento médico das vítimas de coronavírus que não possuem plano de saúde.

Os níveis de pobreza nos países em desenvolvimento, como o Brasil, podem retroagir a até trinta anos. É possível evitar isso?

Uma maneira de evitar esse cenário é incentivar a cooperação global e apoiar organizações que ajudam os países em desenvolvimento a combater o coronavírus. É muito lamentável que o presidente Trump tenha cortado o financiamento dos EUA para a Organização Mundial da Saúde (OMS) no meio da pandemia. No momento em que os países em desenvolvimento precisam de ajuda para combater a pandemia de Covid-19, os países ricos devem aumentar, e não diminuir, o apoio às iniciativas globais de saúde pública.

Como as fake news se inserem neste processo que estamos atravessando?

Durante uma crise de saúde pública, é essencial fornecer informações precisas, principalmente quando elas partem de seus governantes. É muito importante que os cidadãos possam confiar no que seus líderes e seu governo estão dizendo. Em uma crise, a confiança pode ser uma questão de vida ou morte. Espalhar notícias falsas ou falsas esperanças pode prejudicar a confiança e a credibilidade, que são essenciais durante um período de crise.

As suas palestras na Harvard viralizaram na internet e foram vistas em todo o mundo. Qual o impacto do coronavírus na educação de crianças e jovens?

A pandemia obrigou os educadores a confiar cada vez mais nas aulas on-line e no ensino a distância. Quando disponibilizamos gratuitamente o meu curso on-line, o nosso objetivo foi mostrar que o ensino superior deveria ser um bem público, não apenas um privilégio privado. Eu nunca imaginei que milhões de pessoas assistiriam a palestras sobre filosofia. Durante a crise, não temos alternativa a não ser confiar no ensino a distância e na educação on-line. Mas não podemos esquecer a importância da conexão entre as pessoas, especialmente entre professores e alunos.

Por Thiago Bronzatto, na Revista Veja






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