terça-feira, 9 de junho de 2020

O cinema em crise



A aritmética da crise audiovisual

Nota divulgada pela Agência Nacional do Cinema revela problemas de ordem contábil que colocam mais uma pedra no caminho do setor

No mesmo dia em que o Ministério da Saúde tirou do ar os dados sobre a Covid-19, na última sexta-feira, a Agência Nacional do Cinema (Ancine) disponibilizou dados relativos à política audiovisual brasileira.

Neste momento em que o ocultamento de informações marca de forma trágica o país, a divulgação dos detalhes financeiros de uma política à qual tem faltado transparência deveria ser celebrada. No entanto, a nota pública da Ancine — colocada no ar na noite de sexta —deixou ainda mais aflitos empresários e trabalhadores do setor.

Primeiro, porque há números difíceis de serem destrinchados e falta clareza às informações. Segundo, porque o texto, originado nas respostas enviadas pela agência ao Tribunal de Contas da União (TCU), que exigiu explicações sobre a paralisia na política de fomento, revela que o Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), visto até aqui como uma tábua de salvação, não tem o dinheiro que supostamente tinha. Mais: tem um déficit.

FUNDO JÁ COMPROMETIDO

O FSA é constituído por tributos pagos por empresas de cinema, TV, publicidade e telefonia e foi responsável, nos últimos anos, por viabilizar boa parte dos filmes e séries produzidos no país. Em 2019, o valor empenhado no FSA foi de R$ 723 milhões. Era com essa cifra que o setor vinha contando.

O que se achava, até pouco tempo, é que o dinheiro não era liberado porque o Comitê Gestor, a quem cabe definir as linhas de investimento do fundo, não consegue se reunir. Não consegue porque o governo não o convoca.

Acreditava-se, porém, que, uma vez reunido, o comitê teria condições de dar forma aos novos investimentos e ajudar o setor, que vem sendo fortemente impactado pela pandemia — não apenas porque as salas de cinema fecharam, mas porque a volta aos sets ainda é uma incógnita.

Mas o que agora se revela é que os RS 723 milhões não são suficientes nem mesmo para honrar projetos do passado. A informação, que já tinha começado a correr à boca-pequena, materializou-se na nota que fez com que associações e profissionais passassem o fim de semana tentando decifrar os dados e pensando em formas de agir.

Segundo a nota, o FSA assumiu compromissos financeiros no valor de RS 944 milhões, mas só tem, em caixa, RS 738 milhões. Isso significa que a agência não tem dinheiro para contratar os projetos contemplados nos editais de 2018 —os últimos que foram lançados —e, muito menos, para lançar novas chamadas.

Uma das raízes do imbróglio, na versão da Ancine, seria um erro contábil no pacote de editais de 2018, chamado #AudiovisualGeraFuturo, que somava RS 1,2 bilhão. Há, nesse conjunto, projetos contratados, mas há também editais não lançados e outros que tiveram resultados divulgados, mas empacaram.

Um texto no site da Ancine, de julho de 2019, que anuncia os “80 projetos selecionados”, nos leva hoje a uma página do Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul (BRDE) - agente financeiro do FSA - onde a figura de um robô, com ar desolado, informa que a página não existe mais.

A divulgação dos resultados coincidira com o momento no qual Jair Bolsonaro passou a atacar o conteúdo da produção audiovisual brasileira e mirou, especialmente, séries de temática LGBT.

De lá para cá, a Ancine teve um diretor-presidente afastado pela Justiça e passou cinco meses com um só diretor, Alex Braga, na diretoria-colegiada; a Secretaria Nacional de Cultura e a Secretaria do Audiovisual viveram uma imparável dança das cadeiras; membros do governo Bolsonaro chegaram às agências; e, por fim, a pandemia chegou aqui.

De início, a lentidão na contratação dos projetos e na liberação dos recursos foi atribuída à burocracia e à dificuldade operacional da agência, que sofrerá duras cobranças do TCU. Depois, parte do setor começou a desconfiar que alguns projetos estavam sendo barrados por terem perfis que desagradariam ao governo. Agora, a Ancine diz que falta dinheiro.

Os recursos dos editais de 2018 incluíam rendimentos financeiros do FSA que, apesar de pertencerem ao Fundo, não podem, no entendimento da atual diretoria, ser utilizados da maneira como foram. Os rendimentos dever iam ter sido aprovados na Lei de Diretrizes Orçamentárias antes de serem incorporados ao orçamento do FSA.

UM SETOR ESTRANGULADO

Cabe lembrar que isso tudo foi feito com a anuência do Comitê Gestor e de técnicos da agência. O próprio Braga, em 2018, era diretor da Ancine. Antigos membros do Comitê Gestor afirmam que o uso dos rendimentos sempre esteve em pauta. Ou seja, o problema hoje levantado, um dia não foi visto como problema.

A nota indica que o comprometimento do caixa decorre também de compromissos anteriores a 2018 e da remuneração dos bancos que operam o fundo. Apesar da Ancine frisar que as irregularidades podem e devem ser resolvidas, o fato é que, com a devolução dos rendimentos ao Tesouro, o caixa do FSA minguou.

Mas, se a realidade contábil é complexa e promete gerar muito debate, a aritmética é simples e expõe a nova face da crise de um setor combalido. Essa crise inclui ações judiciais da parte de produtores que se sentem lesados e o risco de uma divisão dentro do setor.

Há quem defenda que o Comitê Gestor — quando, enfim, se reunir —cancele os editais antigos, garantindo assim dinheiro para projetos mais atuais e apoios específicos para a crise da Covid-19. Outros acham indiscutível que o FSA tem de honrar os compromissos anteriores.

Em 2019, apesar de ter andado aos trancos e barrancos, a Ancine liberou cerca de RS 500 milhões. De janeiro a abril de 2020, as contratações não chegaram a RS 60 milhões. Ou seja, o estrangulamento do setor, por parte do poder público, é real. E, em casa onde falta pão, todos brigam e ninguém tem razão.

Por Ana Paula Sousa, em O Globo








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