A maior crise nos 70 anos da instituição coloca em
risco um precioso acervo de 250 mil rolos de filmes que contam a história do
cinema, da TV e do Brasil
Em 28 de janeiro de 1957, a Cinemateca Brasileira enfrentou um incêndio de
grandes proporções, que consumiu em chamas sua sede, na Rua Sete de Abril, no
centro de São Paulo, e boa parte do acervo. A tragédia causou comoção, e
instituições e empresários passaram a dar apoio à entidade. O drama se
repetiria outras três vezes, em 1969, 1982 e 2016, sempre com perdas
irreparáveis e promessas de uma valorização que nunca chega. Agora, como num
filme ruim em que a trama se repete, mais uma vez o maior arquivo
cinematográfico da América do Sul e um dos mais instigantes do mundo está
novamente em risco.
Os 250 mil rolos de filmes que contam a história do audiovisual brasileiro
desde 1897 — somente um ano depois do primeiro registro em filme feito no país
— estão guardados num local que está na iminência de ver a luz ser cortada, por
falta de pagamento da conta de energia elétrica há meses, e com séria
ameaça de sua refrigeração ser interrompida, já que a manutenção é realizada de
forma precária também há um bom tempo.
Essas condições, que já seriam temerárias para qualquer acervo, tornam-se
literalmente explosivas quando se trata de um material que não pode sofrer a
mínima variação climática, sob o risco de os rolos em nitrato de celulose, que
correspondem aos filmes produzidos até os anos 1950, entrarem em combustão,
causando um incêndio, de novo. E, desta vez, talvez o último.
“Embora a base do material em nitrato de celulose não seja explosiva, ele tem a
propriedade de entrar em combustão espontânea, ou seja, a capacidade de
incendiar-se apenas com calor, sem a necessidade de uma chama para deflagrar o
fogo. Sendo um material de composição química instável, a temperatura de
ignição tem relação direta com sua idade: quanto mais antigo o filme, mais
baixa é a temperatura necessária para o material entrar em combustão”, afirmou
Débora Butruce, vice-presidente da Associação Brasileira de Preservação
Audiovisual (ABPA). “Quando um incêndio em um depósito de materiais de nitrato
se inicia, não é possível extingui-lo, porque o processo de combustão gera seu
próprio oxigênio. Ou seja, ele cessa somente quando o material está
completamente destruído.”
Em decorrência da crise profunda na Cinemateca, a manutenção da refrigeração
tem sido feita por um técnico não especializado — que tem trabalhado sem
receber. A dívida com a empresa de energia está em torno de R$ 500 mil, segundo
uma fonte da instituição. O custo mensal da eletricidade é de aproximadamente
R$ 120 mil. Na última semana, parte do efetivo da segurança também deixou de
trabalhar em decorrência da falta de pagamento, aumentando o risco sobre o
acervo. Os funcionários da Cinemateca entraram em greve de um dia na
sexta-feira 12 de junho. Sem receber os salários desde abril, eles previam
novas paralisações. Para apoiar os trabalhadores da instituição, foi criado um
crowdfunding, com meta de arrecadação de R$ 200 mil até 4 de julho. Até o fim
de tarde da terça-feira 16 de junho, haviam sido arrecadados pouco mais de R$
73 mil.
O momento é tido como o mais grave na história da instituição que teve suas
origens na década de 1940, pelas mãos de intelectuais paulistas — como o
crítico de cinema Paulo Emílio Sales Gomes — e guarda paralelos com outra
tragédia recente do Brasil, o incêndio do Museu Nacional, em setembro de 2018.
Em meio a toda essa crise, a entidade foi oferecida como prêmio de consolação a
Regina Duarte, depois da apagada passagem de menos de três meses pela
Secretaria Especial da Cultura de Jair Bolsonaro. O último ato da atriz à
frente da pasta foi o vídeo gravado em frente ao Palácio da Alvorada, em que o
presidente afirmava que a Cinemateca era um “presente” a Regina Duarte, para
que ela pudesse “ficar mais perto de casa”.
A justificativa já não seria das melhores em cenários mais róseos, mas torna-se
ainda mais arriscada agora. A crise atual, na verdade mais uma sequência de uma
novela que se arrasta há quase uma década, aconteceu por causa de uma questão
contratual. A Cinemateca era administrada pela Associação de Comunicação
Educativa Roquette Pinto, por meio de um adendo a um contrato que essa mesma
entidade já tinha com o governo para cuidar também da TV Escola. Só que em
dezembro do ano passado, o ministro da Educação, Abraham Weintraub suspendeu o
contrato principal, relativo à TV Escola, o que criou uma dúvida jurídica: com
isso, o acordo para administrar a Cinemateca pela Roquette Pinto também ficava
automaticamente suspenso ou continuava valendo?
Enquanto isso, a fonte de dinheiro secou, e a Roquette Pinto colocou cerca de
R$ 4 milhões de seus próprios cofres entre janeiro e abril para bancar parte
dos custos da Cinemateca, de acordo com uma fonte. A expectativa era
regularizar a situação e vir a receber a verba do governo federal. Mas nesse
meio-tempo a situação só piorou na Esplanada dos Ministérios — basta lembrar
que o antecessor de Regina Duarte, Roberto Alvim, caiu no final de janeiro,
depois de gravar um vídeo em que aludia ao nazismo.
Um dos cotados para tentar resolver o impasse foi o cineasta e empresário André
Sturm, que chegou a ser anunciado como futuro secretário de Audiovisual do
governo Bolsonaro, seção a que a Cinemateca está formalmente ligada desde 2003.
Sturm elaborou um plano de emergência, com previsão de um novo edital para
colocar as coisas em ordem a partir do segundo semestre, mas a ideia nunca foi
adiante — e muito menos ele assumiu o cargo. Em 16 de abril, quem foi confirmado
no cargo foi o servidor Heber Trigueiro.
Em uma reunião no final do mês passado, Trigueiro anunciou que a ideia agora é
reestatizar a Cinemateca até o final do ano. Ou seja, a gestão sairia da
Roquette Pinto e passaria diretamente para o governo (isso, de quebra, ajudaria
a solucionar outra questão: Regina Duarte teria de ser contratada pela Roquette
Pinto no modelo atual, mas poderia ser indicada sem intermediários se a gestão
passasse ao governo). Depois da reunião, a Roquette Pinto enviou um ofício ao
governo cobrando o pagamento de R$ 11 milhões de repasses atrasados
de despesas de 2019 e 2020, além da definição sobre contratos de energia,
segurança, manutenção e equipe técnica.
Já houve novas reuniões, mas a indefinição persiste. A cineasta Laís Bodanzky,
diretora-presidente da Spcine, empresa de fomento audiovisual da prefeitura de
São Paulo, disse que já se colocou à disposição para tentar ajudar. “A
informação que eu tenho é que, sim, o governo federal está coordenando de forma
a não deixar a situação da Cinemateca entrar numa crise absoluta.”
Quem acompanha há décadas o inestimável serviço da Cinemateca a gerações de
cinéfilos e pesquisadores lamenta a situação. “Isso que está acontecendo com a
Cinemateca não é um acidente nem é uma coisa imprevista. É um processo de
abandono”, afirmou o ex-secretário de Cultura da cidade de São Paulo Carlos
Augusto Calil, ex-diretor da Cinemateca.
O acervo da Cinemateca tem desde filmes caseiros, cinejornais, registros
históricos documentais, produções seriadas até quase toda a produção
cinematográfica do país, que vem desde a época do cinema mudo. Entre os
destaques do arquivo estão negativos originais dos filmes de cineastas como
Mazzaropi, Glauber Rocha e Anselmo Duarte, único diretor brasileiro premiado com
a Palma de Ouro em Cannes, pelo Pagador de promessas (1962), e cujo centenário
se comemora neste ano. Também estão lá obras raras, como os filmes Revezes, de
1927, do diretor Chagas Ribeiro, e Limite, de 1931, de Mário Peixoto, que levou
décadas para ser restaurado. Há muito mais, tudo parte de um passado que não
poderá ser recuperado. “O Museu Nacional é isso. Não estão refazendo as
paredes? E daí? São as paredes que importam?”, questionou Calil. Basta uma
fagulha para colocar tudo a perder, mais uma vez.
Por Danilo Thomaz, na Revista
Época
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