segunda-feira, 25 de junho de 2018

Lei Seca completa 10 anos sob temor de relaxamento e pedidos por rigor


Balanço indica menos motoristas flagrados, mas 6,7% ainda admitem dirigir sob efeito de álcool

Na madrugada do dia 11, Luiz Carlos Mello Silva, 15, andava de bicicleta em uma avenida na zona sul de São Paulo. Sem que percebesse a aproximação de um carro em alta velocidade, o garoto foi atingido pelas costas e lançado a uma altura de cerca de cinco metros. Na queda, o magro adolescente bateu com o rosto na guia e morreu no local.

O motorista foi submetido a um exame de bafômetro, que acusou a embriaguez. Ele está preso à espera de julgamento.

Luiz Carlos morreu no mês de aniversário de dez anos da Lei Seca, completados no último dia 19. A legislação estabeleceu maior rigor contra quem bebe e dirige —regras endurecidas cinco anos depois.

Embora não disponham de série completa comparativa de dados com os critérios iguais desde antes da Lei Seca, autoridades de trânsito de São Paulo e do Rio indicam que, nos últimos anos, parte dos motoristas mudou de comportamento e ficou mais difícil flagrar embriagados.

Por outro lado, especialistas temem relaxamento nessa mudança de comportamento e alertam que apenas com mais
fiscalização será possível reverter o cenário de mortes como a de Luiz Carlos.

“De que adianta existir a Lei Seca e meu filho ter morrido por culpa de um motorista bêbado?”, questiona o comerciante Luiz Aparecido da Silva, 39, pai de Luiz Carlos.

Balanço do Detran de SP aponta que em 2013 houve 12.746 abordagens, das quais 1.226 resultaram em multas.

Ou seja, 9,6% dos motoristas foram autuados pelo departamento por terem se recusado a fazer o teste do bafômetro ou por estarem com- provadamente alcoolizados.

Em 2017, o Detran paulista bateu o seu próprio recorde de testes realizados: foram 78.009 abordagens e 5.179 autuações —6,6% do total.

A queda do percentual de motoristas autuados ocorre também no estado do Rio de janeiro. Entre 2013 e 2018, o índice de motoristas flagrados sob efeito de álcool ou que se recusaram a fazer o teste do bafômetro caiu de 6,7% para 4,4%. Em 2011, esse número chegou a ser de u,6%.

Logo no primeiro mês da lei, em 2008, o
Ministério da Saúde divulgou um levantamento que indicava que ela tinha ajudado a reduzir em 24% os atendimentos emergenciais a feridos em acidentes de trânsito feitos pelo Samu.

Porém, outros dados da pasta apontam que, ao longo desta década, o número de pessoas que admitem beber e dirigir teve pequenas variações —e continua preocupante.

Em 2011, pesquisa anual feita por telefone e com pacientes do SUS mostrava que 6% dos entrevistados admitiam dirigir após ingerir álcool. Em 2013, o índice foi o menor da série, 5,2%, mas em 2016 foi de 7,3%. Em 2017, ficou em 6,7%. Continua na pág. 82

Outros dois estudos da USP apontam que, nos casos em que há morte da vítima de trânsito, a presença de álcool subiu entre 2005 e 2015.

Em 2005, o estudo analisou amostras de sangue de 907 vítimas do trânsito paulistano (60% dos casos naquele ano). Em 39% das vezes, a vítima tinha algum vestígio de álcool. A maior preponderância de álcool era entre os motoristas e passageiros de carros.

Em 2015, o mesmo laboratório analisou 56 amostras de sangue de novas vítimas do trânsito paulistano, numa amostragem que estatisticamente representa as vítimas de toda a cidade. Em 43% dos casos, o álcool estava pre¬sente no sangue das vítimas.

Para Gabriel Andreuccetti, pesquisador do departamento de medicina legal da Faculdade de Medicina da USP, o dado mostra que, apesar da diminuição geral das mortes no trânsito nos últimos anos, o álcool continua bastante presente como causa de acidentes fatais.

Para Nikon Gurman, do movimento “Não foi acidente”, o que se percebeu ao longo da última década foi uma adesão inconstante dos motoristas à restrição do uso do álcool no trânsito, a depender do aperto da legislação e do comportamento da população.

Segundo ele, a criação da lei em 2008 foi só um degrau, mas que logo acabou prejudicado pelo que chama de distorção no Judiciário, que adotou a tese de que ninguém pode¬ria produzir provas contra si.

“isso prejudicou muito a eficácia da lei. Mas, desde então, a lei mudou e os prazos das penas aumentaram. A partir de 2012, por exemplo, a recusa ao bafômetro passou a ser multada. E cada um desses avanços foi um novo degrau”, disse.

Nilton Gurman é tio de Vitor Gurman, morto atropelado em julho de 2011 por uma nutricionista que estava alcoolizada e em alta velocidade.

Outro fator preocupante é o aumento do número de motoristas que se recusam a fazer um teste de bafômetro para escaparem de uma prisão, como mostrou a Folha em dezembro de 2017.

Naquele ano (entre janeiro e setembro), as recusas a bafômetro foram de 10%. N mesmo período de 2015, esse índice era de somente 1,4%.

Ainda que o motorista recuse o teste de bafômetro para evitar uma prisão, as penalidades são de multa d R$ 2.934,70 e suspensão d direito de dirigir por um ano.

Para o especialista em segurança viária Horácio Figueira, é preciso criar ainda mai restrições ao motorista que decida recusar o teste, par que essa não seja uma alternativa viável.

“Por que uma pessoa se recusou a usar o bafômetro? porque ela bebeu. Acho que a lei deveria mudar para que no momento de obtenção da CNH (Carteira Nacional d Habilitação), o novo motorista soubesse que, se um de ele recusar o teste de bafômetro, ele terá a habilitação suspensa por cinco anos”, sugere.

Figueira defende que a estratégia de blitz também deve ser aperfeiçoada.Além das grandes blitz e, Polícia Militar deveria investir em pequenas abordagem; com curto tempo de duração na mesma rua, para driblar aplicativos e redes sociais que avisam sobre a presença de policiais. “A blitz não pode ser previsível”, comenta.

Maurício Januzzi, presidente da comissão de direito viário rio da OAB- SP, diz que a fiscal zação no país ainda não é efetiva. “Ela é por amostragem O motorista não sabe se vai ser abordado ou não. Por isso, o comportamento continua o mesmo, que é o de beber e dirigir. Isso só mudar quando o motorista tiver certeza absoluta de que el será abordado. Não basta órgão da punição [com penas multas altas], é preciso a certeza da punição”, diz Januzzi.

HISTÓRIAS DA LEI SECA

Contestado por alertas de blitz, aplicativo diz ser útil

“Já pensou se um amigo diz que você pode beber o quanto quiser e que sua preocupação deve ser apenas evitar a blitz na rua de baixo? Esse cara não é seu amigo, ele quer o seu mal”, defende o especia¬lista em segurança viária Horácio Figueira ao se referir a apps e redes sociais que publicam endereços de blitze policiais pelas cidades.

A crítica é comum entre estudiosos de segurança no trânsito, que dizem que sistemas de GPS como o Waze e algumas páginas em redes sociais como o Twitter dificultam o
trabalho de fiscalização da lei seca.

O Waze diz que o alerta para a presença da polícia torna o trânsito mais seguro, já que induz à redução de velocidade. A empresa disse ter “recebido feedback de departamentos de polícia em todo o mundo de que o recurso é útil”, mas não especificou quais.

Em São Paulo, o Waze já foi cobrado publicamente a reconsiderar o alerta pelo ex-secretário municipal de transportes, Sérgio Avel leda. “Nada contribui para a segurança das cidades”, disse Avelleda em 2017. Já o Twitter diz que não comenta contas específicas de seus usuários.

Detran de São Paulo lista desculpas mais inusitadas

O Detran paulista listou recursos inusitados de motoristas que tentavam cancelar multas recebidas por embriaguez.

Entre as desculpas estão a de um motorista de Ribeirão Preto que disse ter passado o dia num rancho bebendo cerveja sem álcool. Segundo ele, um amigo colocou cerveja com álcool em sua lata sem que soubesse.

Em outro caso de 2016, um motorista alega que pensava estar infectado com o vírus H1N1. Com medo de passar a doença adiante, ele se recusou a soprar o bafômetro, o que gerou multa. O Detran avisa que o bocal do bafômetro é descartável e trocado a cada teste.

Até 6 de julho, o Detran promove em sua página no Facebook a eleição do recurso mais inusitado, no que chamou de “A Copa dos Recursos Mais Incríveis da Lei Seca”.

Ação judicial tenta há dez anos derrubar lei

Há dez anos, um processo iniciado pela Abrasel (associação brasileira de bares e restaurantes) tenta barrar na Justiça a vigência da Lei Seca.

A associação acionou o STF (Supremo Tribunal Federal) ainda em 2008. Um dos argumentos era o de que não havia critérios para estabelecer quando alguém alcoolizado perdia a aptidão para dirigir. Outra tese era a de que nenhuma pessoa poderia gerar provas contra si. Então, o motorista pode¬ria se recusar a soprar o bafômetro e não deveria ser punido por isso.

A mudança da lei em 2012 estabeleceu que outros meios, além do bafômetro, podem servir de provas de embriaguez, como vídeos e testes clínicos. A novidade enfraqueceu a argumentação da Abrasel, que já não acredita no pleito.

“Não somos contra a lei.

Só achamos que pode haver um parâmetro mais amplo [mais permissivo]. Não acho que alguém que toma um cálice de licor tenha que ser considerado um delinquente”, disse à Folha Percival Marica to, presidente da associação em São Paulo e advogado que toca o processo na Justiça. O caso está aguardando decisão do ministro Luiz Fux.
Por Fabrício Lobel, na Folha de S. Paulo


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