terça-feira, 26 de junho de 2018

Lambança suprema


A descoberta de um suposto grampo no gabinete do ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, causou alvoroço há pouco mais de dois anos. Uma investigação da Polícia Federal, acionada com cinco meses de atraso e concluída recentemente, mostra a sucessão de trapalhadas durante o episódio

Em uma varredura, seguranças da Suprema Corte brasileira encontraram uma pequena engenhoca perto da mesa de trabalho do gabinete do ministro Luís Roberto Barroso. De pronto, acreditaram se tratar de um equipamento de escuta. Um grampo. O achado tinha tudo para representar o mais grave caso de arapongagem já descoberto no submundo de Brasília. Mas não era. Nem de longe. Uma investigação da Polícia Federal, iniciada do zero cinco meses depois, mostrou uma série de improvisos e a absoluta falta de protocolos de segurança desde o momento em que o aparelho foi encontrado até as providências adotadas para tentar descobrir quem – e com quais interesses – o teria deixado no gabinete. O episódio, motivo de grande alarde no passado recente, virou uma comédia pastelão no centro do tribunal mais poderoso do país, que julga causas bilionárias e os poderosos da Lava Jato. A conclusão da PF foi de que é impossível saber quem colocou o aparelho e se de fato houve grampo. Por uma razão simples: a apuração, tocada pela área de segurança do próprio Supremo, não foi feita da maneira apropriada.

Tudo começou em abril de 2016, quando foi localizado um fone de ouvido acoplado a um botão de liga/desliga e um microfone no gabinete de Barroso. Era uma segunda-feira. Por volta das 22 horas, por ordem do setor de inteligência do Supremo, um agente foi ao gabinete de Barroso. A vistoria era rotina nas salas dos ministros. Debaixo da mesa de Barroso, o carpete estava mal encaixado. O agente então foi tentar colocá-lo no lugar, quando deparou com o dispositivo, em estado precário. O agente fez o óbvio: acionou seu superior. E aí começam aquelas histórias que só acontecem na burocracia do serviço público — o chefe acionado acionou outro chefe, que por sua vez acionou um terceiro chefe. O último a ser comunicado foi Murilo Maia Herz, então secretário de segurança, escolhido pelo presidente da corte àquela altura, Ricardo Lewandowski. Hoje, ele continua trabalhando com Lewandowski. É comissionado no gabinete do ministro.

Herz estava no cargo havia quase dois anos e tinha alterado o protocolo de segurança para esse tipo de situação. Antes, a ordem era explícita: isolar o local, acionar a chefia e o gabinete do ministro e, então, chamar a perícia da Polícia Federal. Mas o secretário de Lewandowski simplificou o roteiro. Bastava comunicá-lo e, a partir dali, ele próprio decidiria o que fazer. Na noite da descoberta do grampo, ele foi informado do ocorrido, por telefone. Mas, apesar da gravidade do caso, não foi ao local, nem contatou a polícia. A ordem foi tirar o grampo do local, colocar em um envelope e entregar em mãos para ele. Detalhe: isso só aconteceu no dia seguinte. Assim mesmo, sem polícia, sem perícia.

Em documento reservado, a Seção de Inteligência do Supremo registrou o achado

O então secretário de segurança do STF tomou duas medidas depois que estava com o suposto dispositivo de grampo nas mãos. Ambas causam arrepios em investigadores que atuam nesse tipo de caso. A primeira foi tirar o aparelho do Supremo Tribunal Federal e levar a um amigo, que entendia do assunto. Acionar um amigo que entende do assunto é o tipo de providência amadora que até poderia acontecer numa empresa pouco acostumada com esses riscos, mas causou estranheza mesmo entre funcionários do gabinete de Barroso. Obviamente, a análise improvisada do amigo não conseguiu descobrir quem era o autor do grampo – se é que houve grampo.

Foi então que Murilo Maia Herz tomou a segunda medida. Sem conseguir chegar a um veredicto sobre o que era o aparelho, o secretário de segurança teve uma ideia. Era 12 de abril. Ou seja, em menos de 24 horas, o aparelho havia sido tirado do gabinete, guardado em um envelope e passado por pelo menos quatro pessoas diferentes. E nada de uma investigação oficial da polícia ser solicitada. A ideia foi recolocar o dispositivo no gabinete do ministro para, quem sabe, flagrar alguém o recolhendo. Assim foi feito. Por quase um mês, e por sugestão da equipe técnica do tribunal, o ministro do Supremo teve o aparelho acomodado de volta em seu gabinete. Nesse ponto específico, a Polícia Federal esbarrou em um conflito de versões. Herz, o secretário de segurança, disse que a decisão de manter o grampo no gabinete partiu do próprio Barroso, que teria descartado uma investigação externa. Já a chefe de gabinete do ministro, Renata Saraiva, informou à PF que as orientações partiram de Herz, não de Barroso.

Independentemente do dono da ideia, a estratégia de armar um flagrante de um suposto araponga fracassou.

O suposto aparelho de grampo, do tamanho de uma tampa de caneta, e o seu botão de liga/desliga

Depois de um mês com a ação secreta em pleno curso, o ministro Barroso revelou a existência do aparelho à imprensa. Encerrava-se ali o plano mirabolante. E começava uma crise institucional. Houve grampo de um ministro do Supremo? Quem grampeou? “Do ponto de vista institucional, é gravíssimo alguém ter a ousadia de colocar um grampo num gabinete do ministro do Supremo. É uma desfaçatez absoluta”, disse Barroso na ocasião. Colegas de corte também se mostraram chocados. O caso remeteu ao antigo temor de que ministros da corte possam estar sob vigilância ilegal – passam, por ali, os mais diversos interesses de grupos políticos e econômicos. Hoje desafeto de Barroso, o ministro Gilmar Mendes foi um dos que reverberaram essa preocupação quando o episódio foi revelado: “É uma situação completamente absurda. Houve no meu gabinete sinais disso, o ministro (Cesar) Peluso teve e, em dado momento, o ministro Marco Aurélio no Tribunal Superior Eleitoral também teve. Ou seja, não é eventual, não é de hoje e tem havido sinais”.

O fato é que tantas lambanças tornaram impossível saber o que era o tal aparelho. A conclusão da perícia da PF foi de que, nas condições analisadas, aquele objeto não tinha condições de gravar, armazenar ou transmitir áudio. Com isso, o caso foi arquivado, já que ficou inviável para os investigares tentar descobrir quem era o autor. A Polícia Federal sugeriu que o Supremo tomasse providências para apurar se Murilo Maia Herz incorreu em deslizes funcionais ao lidar com a questão. O STF abriu um processo interno para apurar os procedimentos de sua equipe de segurança. Crusoé pediu à corte informações sobre os desdobramentos internos do caso, mas o tribunal respondeu que não iria se manifestar. Murilo Herz não retornou os contatos da revista. O ministro Barroso, por sua vez, afirmou que não deu não pôde acompanhar o desenrolar do caso. “Não acompanhei a apuração nem cobrei resultados. Embora considere o episódio grave, não o coloquei no meu rol de prioridades. A gente tem tantas obrigações e responsabilidades que acaba tendo que escolher onde colocar energia”, disse.

Essa foi a segunda vez que o caminho de Herz e da Polícia Federal se cruzaram. A primeira foi quando o Supremo Tribunal Federal se viu sob a chacota de um boneco inflável gigante do ministro Ricardo Lewandowski durante protesto na avenida Paulista. Na ocasião, o secretário de segurança do Supremo acionou a PF. Queria proteger a honra do chefe, ameaçada por um boneco.

Por FILIPE COUTINHO, na Revista Crusoé


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