O que um brasileiro que não conhece Brasília
acharia do Congresso Nacional se pudesse gastar horas e horas ali, vendo
(quase) tudo por dentro? Crusoé escalou um repórter que nunca antes havia
pisado na capital do país para acompanhar por alguns dias a rotina da Câmara
dos Deputados e do Senado. A missão do jornalista, com seu olhar apurado em
reportagens de comportamento, era esquadrinhar o universo que gira em torno das
excelências. O resultado: tudo é estranho, bem estranho, e explica um pouco as
razões do abismo em que estamos
Para entrar no Congresso Nacional do Brasil é preciso passar por um sistema de
segurança similar ao de um aeroporto. Fila para atravessar o detector de
metais. Esteira com raio-x em que é preciso depositar todas as suas posses
(chaves, carteira e celular) em uma bandeja. E, eventualmente, uma revista
policial.
Por mais que o visitante não entre em um avião depois de passar pelo ritual, é
como se tivesse desembarcado em um país diferente. Um principado que consome
1,1 milhão de reais por hora, tem cerca de 20.000 habitantes (os servidores,
entre eles 513 deputados e 81 senadores) e é muito mais rico que o Brasil. O
salário de um congressista é de 33.763 reais. Mais ajudas de custo, auxílios e
verba para contratação de funcionários que superam 150 mil mensais.
Esse território também é regido por uma lógica própria. Os dias úteis para
congressistas são terça, quarta e quinta-feira, quando são marcadas as votações
em plenário. Dezembro e janeiro são os meses de “focar nas bases eleitorais”.
Ou seja, não precisa pisar em Brasília.
Abaixo, um diário de uma semana de andança nas duas casas legislativas bem no
meio de junho. Spoiler: o andamento dos trabalhos pode ter sido prejudicado
pela iminência do início da Copa do Mundo. Ou pelas festas juninas. Ou pela
aproximação das férias de julho, quem sabe!? “A rotina do Congresso é muito
frágil”, diria um deputado em seu segundo mandato. Seja bem-vindo a bordo.
TERÇA, 12 de junho
São 13h15 e um repórter da Band espera de microfone em punho no Salão Verde da
Câmara dos Deputados. O nome do salão é emprestado da cor do carpete, que meio
século atrás deveria ser mais verde do que o tom de musgo amarronzado de 2018.
Mas a referência estética ainda vale.
O Senado e a Câmara são casas geminadas, coladas já no projeto de Oscar
Niemeyer. Há um detalhe de ordem estética que permite saber exatamente onde se
está, sem precisar consultar placas. A Câmara é sempre verde e o Senado, sempre
azul. Tudo, do carpete ao tom da corda das divisórias usadas para ligar as
hastes que delimitam a fila da entrada, é na cor local.
O deputado Pastor Eurico, do Patriotas pernambucano, sai pela porta de vidro
que leva ao plenário, onde acabou de passar uma lei que ele mesmo havia
relatado, para garantir a distribuição de ácido fólico para todas as grávidas —
a substância evita má-formação do feto.
O repórter o aborda, e ele ajeita seu patacão dourado enquanto se prepara para
falar com a equipe de TV. A entrevista começa com uma pergunta previsível: qual
é a importância do projeto, já que na prática o SUS recomenda há anos a
ingestão do ácido fólico?
Pastor Eurico responde com outra pergunta: “O que o ácido fólico representa
para a mulher, ou ainda mais para o embrião?”.
A entrevista segue, quando um grupo em visita à casa sai do plenário. Minha
credencial de imprensa ainda não está pronta, e não há visitas turísticas à
Câmara de terça a quinta, já que são os dias em que os congressistas estão por
lá. Mas o policial legislativo que guarda a entrada (sim, há forças policiais
exclusivas tanto na Câmara quanto no Senado) permite que eu entre. “Tem um
grupo de turistas, você pode andar com eles.” Pergunto para um dos 14 homens de
terno se aquele era o grupo. Ele diz que sim.
A turma entra num corredor atrás do Salão Verde. Passa pela segurança e entra
em uma das salas de reunião do gabinete do presidente da Câmara, Rodrigo Maia.
Sim, fui parar ali sem querer. Quando todos já estão se sentando, pergunto:
“Esse não é o tour?”. Não era. Eu estava no meio de uma reunião reservada.
Percebem a presença do intruso. Acabo escoltado por um agente de segurança ao
estilo Men in Black, com fio no ouvido.
Sobre o carpete envelhecido, a paciente espera nas cadeiras de grife: o tempo
de Brasília é outro (Adriano Machado/Crusoé)
Volto ao carpete verde. O Salão Verde é a sala da eterna espera. Há um quórum
constante de jornalistas e cinegrafistas aguardando a saída dos parlamentares.
É comum que eles se deitem nas poltronas Barcelona. Às 14h30, há duas pessoas
dormindo. E um analista do mercado financeiro que não vejo há anos. Ele
pergunta a que horas cheguei. O voo havia sido às 6 horas. “Ah, você não veio
no tomara-que-caia.” Tomara-que-caia? “É, o voo das 7h30, que vem só com
autoridade.” O apelido é corrente em Brasília há anos, mas ele ainda dá risada.
Pastor Eurico está em um canto do Salão Verde, conversando com um grupo de
engravatados mais jovens do que a média ali, de uns 50 anos. “Vocês são de
onde? Quem são vocês?”, pergunta o parlamentar. “Somos do terceiro ano do
ensino médio da Escola da Vila, em São Paulo”, responde um dos meninos. Os
estudantes foram a Brasília fazer um trabalho
de escola, sobre o envolvimento dos jovens com a política. O deputado segue a
conversa: “Vocês são religiosos?”. “Mais ou menos.” “Por que mais para menos do
que para mais?”, tenta brincar o parlamentar. Os alunos riem. O deputado
também, e topa dar a entrevista. Mas avisa, em tom jocoso: “Se eu não gostar do
que sair, vou processar e pedir indenização.”
Os estudantes pedem para gravar, o pastor faz que sim com a cabeça. A luz
vermelha da câmera acende. E lá vai ele repetir a cantilena. “Meu nome é
deputado Pastor Eurico. Bom, meus amigos, eu quero aproveitar a oportunidade e
parabenizar essa equipe tão especial de alunos que se importam com o futuro.”
Três minutos de elogios aos entrevistadores e ele retoma a exata mesma frase
que usara na entrevista à Band: “O que o ácido fólico representa para a mulher,
ou ainda mais para o embrião?”.
Há muita Câmara para além do Salão Verde e do plenário, o grande salão de
debates e votações que aparece na TV todos os dias. Os prédios onde ficam
gabinetes e comissões foram sendo construídos conforme o número de funcionários
ia inflando. Hoje, são quatro anexos. E toda a estrutura que liga um ao outro,
como num cupinzeiro.
Um túnel com esteiras rolantes no chão e carpete amarelo-mostarda no teto leva
do prédio principal ao Anexo 4. “Bem-vindo ao pesadelo de um asmático”, brinca
uma assessora. Em um dos corredores, há um mural com fotos de mulheres. As 176
mulheres que integraram a Câmara até 2011 encheriam pouco mais de um terço da
casa em seu tamanho atual.
O túnel amarelado com escadas rolantes: habitat de ácaros e outros seres
(Adriano Machado/Crusoé)
Às 16 horas, o deputado Pastor Eurico está no mesmo carpete puído, dando outra
entrevista, desta vez para a TV Câmara: “O que o ácido fólico representa para a
mulher, ou ainda mais para o embrião?”. A mesma conversa. Isto é Brasília.
A Câmara começa a encher a partir das 18 horas. Às 19h40, há uma pequena fila
para pegar o elevador privativo que leva congressistas da chapelaria, onde os
motoristas engravatados os deixam, diretamente para o plenário.
Entro no elevador exclusivo no vácuo criado pela passagem de Heráclito Fortes,
do PSB. Ninguém me barra, talvez por achar que estou com o deputado, que fala
ao telefone. “Amanhã é quarta. Marca para amanhã. Não quero na sexta, na sexta
não tenho agenda”. Pelo mesmo elevador é possível chegar mais facilmente ao
“cafezinho”, um salão azulejado fechado e com uma dúzia de mesas, onde só
parlamentares (e jornalistas) podem entrar, em teoria — na prática, qualquer um
que esteja andando com um deputado não é barrado, e estar por ali é um sinal de
status.
Entre o “cafezinho” e o plenário há um restaurante-escola administrado pelo
Senac, onde uma lasanha vegetariana custa 15,57 reais e uma mousse de chocolate
sai por 3,94. As mesas, tanto as do cafezinho quanto as do restaurante, estão
lotadas na noite de terça.
Há centenas de pessoas no plenário. Mas poucos olham para os colegas que
discursam. Quando um deputado fala da tribuna, fala para a câmera — eles
inclusive pedem ao presidente da sessão que ordene à TV Câmara que exiba um
trecho ou outro do discurso. Os pares nem fingem ouvir. A maioria das pessoas
está de costas e o ruído de conversas é constante. Conto dez pessoas jogando
Candy Crush, o joguinho mais baixado da história dos aplicativos, enquanto os
parlamentares falam. Isto é Brasília.
Deputados em plenário com seus inseparáveis aparelhos celulares (Adriano
Machado/Crusoé)
Uma servidora com doze anos de casa explica que a desatenção é só aparente. Ela
defende os chefes enquanto come uma salada caesar. “Não tem visão periférica?
Então, aqui os congressistas vão apurando a audição periférica com o tempo.”
Ela fala sério. “Eu já vi deputado que parecia em coma interromper o colega no
meio da frase. Se for do interesse dele, é claro.”
Uma fileira de cadeiras retráteis circunda o salão. Como os lugares são mal
iluminados, ali é o canto predileto para conchavos e para cochilos. Ou para
mandar mensagens de WhatsApp sem o risco de ser flagrado pelas câmeras dos
fotógrafos que estão sempre por ali. Os congressistas vêm de todos os cantos do
país, mas parecem vir de uma só loja de telefone: a Apple. Contam-se centenas
de iPhones 7, 8 e X nas mãos dos homens eleitos – muitos carregam mais de um
aparelho (a Polícia Federal sabe
bem a razão).
O deputado Carlos Henrique Gaguim, do Democratas do Tocantins, não tira seus
AirPods (aqueles fones de ouvido sem fio da marca americana, que mais parecem
cabeças de cotonete) nem mesmo para fazer seu pronunciamento. Assistir a uma
sessão da Câmara não é uma experiência linear. O plenário é como uma novela,
com vários núcleos que se desenvolvem simultaneamente, cada um em um canto do
salão.
São 21 horas. Benedita da Silva, do PT carioca, está às voltas com calhamaços
de papel. Eduardo Bolsonaro, do PSL de São Paulo, para e faz selfies com três
homens musculosos. Dá tapas nas costas de cada um deles quando se abraçam. E
depois faz um vídeo, com o celular em posição vertical, levantando o polegar e
apontando para a câmera o indicador, formando uma arma imaginária, que dispara
seguidamente. Um deputado octogenário parece lutar contra o sono, sua cabeça
pende para a frente antes de ser puxada para trás num tranco. De novo. E de
novo. E de novo.
De repente, um barulho faz com que a atenção volte à mesa. O deputado Alceu
Moreira, do MDB do Rio Grande do Sul, levanta a voz enquanto discursa: “Governo
bom pra vocês é de Cuba, é da Venezuela!”. O deputado Carlos Zarattini, do PT
paulista, começa a gritar “Fora Temer!”. Os dois parlamentares começam a falar
simultaneamente. Gritos de “Cala a boca! Cala a boca!” são cobertos por outros
de “Fora Temer! Fora Temer!”. Uma assessora dá uma risadinha, sentada na penúltima
fileira de cadeiras parlamentares. Ela acaba de passar de fase no Candy Crush.
“A reação é tirar o Teme…”. Os dois microfones são cortados. Ambos os deputados
pedem mais tempo de fala. Rodrigo Maia, da cadeira de presidente, responde:
“Quem decide sou eu!”. E ninguém ganha tempo de fala. Em seguida, registram o
falecimento do filho de um vereador de 32 anos, no dia anterior, no município
baiano de Santa Maria da Vitória. A paz volta a prevalecer.
Às dez para as oito, o presidente da sessão começa a apressar. “Se vossa
excelência não falar o seu minuto hoje, eu prometo que amanhã lhe dou o dobro.”
A prioridade do dia é votar o projeto de lei 441/2017, que dá a bancos e
empresas o direito de criarem um grande arquivo com informações dos empréstimos
quitados dos clientes, sem ter de pedir autorização para isso. É a ampliação do
chamado “Cadastro Positivo”.
Rodrigo Maia, o presidente da Câmara: sempre em linha com o baixo clero
(Adriano Machado/Crusoé)
Mas a votação não vai para frente. O presidente da sessão encerra o expediente
às 20h12, sem a votação de nenhum dos projetos ditos urgentes. “Ele fez os
cálculos e viu que não tinha quórum para passar o projeto”, explica uma
assessora parlamentar da situação. “Você acha que isso é manobrar? É porque não
pegou a época do Eduardo Cunha”, diz.
Um deputado se levanta, checa o relógio esportivo e diz, orgulhoso: “Andei
quatro quilômetros hoje, só aqui dentro”. Servidoras se encostam na parede para
descer do salto: tiram os scarpins que estavam usando o dia todo e os trocam
por tênis de corrida, que levam na bolsa. É hora de ir embora.
Dois dos últimos deputados a deixar o plenário são veteranos ali. O deputado
Luiz Carlos Hauly, do PSDB do Paraná, comenta: “Tumultuamos um pouco, né não?”.
Valdir Rossoni, seu correligionário e conterrâneo, ri. Hauly comenta que
recebeu nas redes sociais uma reportagem sobre deputados que vão ao trabalho de bicicleta, mas na Suíça.
“Vou comprar uma bicicleta e vir de Londrina até Brasília toda semana, aí eles
vão ver.”
No cafezinho, ouço uma explicação para a baixa produtividade da sessão. “O
quórum hoje estava baixo e vários fatores podem explicar: começaram no Nordeste
as festas juninas, e os políticos podem ficar perto do povo. E a Copa está para
começar”, diz o também veterano José Carlos Aleluia, do Democratas da Bahia.
“Tem quem queira primeiro apagar as fogueiras de São João para depois apagar as
do Brasil.” Brasília em estado puro.
QUARTA, 13 de junho
O Salão Verde é um teatro sem coxia. Os parlamentares ensaiam seus textos em
público, antes de as câmeras serem ligadas. É meio-dia e o deputado Júlio
Lopes, do PP do Rio, por exemplo, grava na frente da tela de Di Cavalcanti uma
mensagem sobre uma proposta ligada ao turismo e que inclui a regulamentação do
jogo no país. Primeira tomada: “Eu estou comprometido com a lei geral do
turismo brasileiro”.
Ele para e pergunta a uma assessora loira: “É lei geral de turismo ou lei geral
do turismo?”. Ela responde que é a segunda opção. Ele pede opinião: “Tá bem?
Deu certo? Vou fazer um mais alegre agora”.
Segunda tomada, um pouco mais alegre: “Não fazê-lo de uma forma generalizada,
permitindo o jogo em qualquer lugar, mas fazendo que nós tenhamos o jogo em
grandes resorts. Nós queremos fazer do jogo no Brasil um grande empreendimento
turístico”. Uma semana depois, o vídeo teria seis visualizações no canal de
YouTube do parlamentar –sete com o deste repórter. Investigado na Lava Jato,
Lopes foi secretário de Transportes de Sérgio Cabral. Apareceu como
destinatário de propinas da Odebrecht durante as obras do Metrô do Rio de
Janeiro.
O deputado Júlio Lopes em seu vídeo no YouTube: investigado na Lava Jato e
defensor da legalização do jogo (Reprodução)
O deputado termina de gravar e parte para seu gabinete. A essa hora é nos
gabinetes que está o grosso dos parlamentares. Os plenários já estão vazios.
O Congresso é uma repartição como qualquer outra. São andares e andares de
escritórios de 20 e poucos metros quadrados (a maioria; há outros maiores,
destinados àqueles parlamentares mais bem posicionados na hierarquia das duas
casas). Os gabinetes são decorados com pôsteres das causas queridas do seu
dono. Ou com avisos insólitos. “FAVOR NÃO OFERECER DOCE”, diz um cartaz em
folha de sulfite afixado na porta de um deles.
O deputado Sandes Junior, do Progressistas de Goiás, explica o porquê de a
placa ter sido pendurada na entrada do seu gabinete. “Tem duas moças lá que
acho que são diabéticas. E é uma tentação, né?”, diz o homem pequeno e de
compleição quadrada, enquanto passa a mão na barriga. “Vou correndo lá que vai
votar meu projeto”, apressa-se.
O comércio de comida se espalha pelos corredores. José Lima vende marmitas por
ali há seis anos. Quarta é dia de baião de dois com bife. Tem ainda arroz com
peito de frango grelhado, para quem está de dieta. Outro mercado que perseverou
nos últimos anos é o de baterias externas para celular. Santos Silva vende os
aparelhos já carregados por 85 reais. “Quarta e quinta são os dias. Tirando
quarta e quinta, pra mim é fim de semana.” Faz sentido.
Às 13h31, Otávio Leite, deputado tucano do Rio, está na tribuna. “Senhor
presidente, senhores deputados…”, ele começa o discurso. Há quatro deputados no
salão. Todos vidrados no celular. Leite fala sobre o crescimento do mercado de
cervejarias artesanais no país. “Tem até associação nacional. Nós conseguimos
depois de muita luta colocar o cervejeiro artesanal no Simples nacional.”
Nenhum dos presentes olha para a tribuna. “Queria cumprimentar todos os
cervejeiros, inclusive os caseiros e ciganos.” Hein!?
Às 15h30, o quórum começa a aumentar. Mas desinfla em um instante. “Tá tendo
festa no Fabinho!”, diz um lobista paulistano, puxando colegas para fora do
plenário. Fabinho é Fábio Ramalho, deputado emedebista de Minas que ocupa a 1ª
vice-presidência da Câmara. O gabinete da vice-presidência fica a 12 passos do
plenário. O cheiro da galinhada entra no salão nobre conforme o lobista e seus
amigos saem. Quem se aproxima do gabinete ouve “Asa Branca”, interpretada por
um grupo de 30 músicos da associação de forrozeiros do Distrito Federal,
convidados para animar o arraial suprapartidário.
O arraial de Fábio Ramalho, vice-presidente da Câmara (ao centro, dançando):
forró na hora do expediente (Reprodução)
Um deputado parece frustrado enquanto enche a boca de bolo de fubá. “Achei que
fosse ser na casa do Lago Sul”, comenta. É que a fama de festeiro de Fabinho o
precede: as festas no seu apartamento funcional (ou em casas do lago Sul, como
deixou escapar seu colega) reúnem dezenas de parlamentares.
Há fartura no convescote que ele oferece no Congresso bem na hora do
expediente. Bandejas de galinhada e copinhos de isopor cheios até a boca com
canjica. O forrobodó junino é contido e, na medida do possível, solene. O
anfitrião avisa que todos estão comendo em homenagem ao deputado Rômulo
Gouveia, que foi enterrado em 14 de maio. Servidoras do gabinete de Fabinho
estão de chapéu de caipira e trancinha. “Tá vendo aquela ali?”, pergunta o
lobista para um amigo. “Já foi capa da ‘Sexy’?”. Mando uma foto da morena de
cabelos alisados e roupa que acentua o corpo sinuoso para um ex-editor da
publicação. Ele diz que nunca a viu.
Os deputados que vão voltando da festa para o plenário encostam o dedão no
sensor de impressão digital anexo a cada cadeira. Em seguida, digitam uma senha
para registrar presença. São 401 deputados registrados às 20 horas. Número
suficiente para se considerar “casa cheia”. “Só 11 baianos não estão aqui”, diz
um parlamentar. Ele olha para o telão e vai denunciando em voz alta cada um dos
colegas ausentes. Outro deputado pergunta: “Senhor presidente, tem condição de
colocar o 137 ainda hoje?”. Ele se refere ao PLP 137/15, que regulamenta a
criação de municípios no Brasil (PLP, não estranhe, é projeto de lei
complementar). Rodrigo Maia responde: “Tem, vamos trabalhar até mais tarde”.
Outro reforça: “Quero dizer que eu deixei de viajar hoje por causa do 137”.
Em vez do PLP 137 entra em pauta o projeto de lei 795/03, do deputado Leonardo
Picciani (MDB-RJ), que regulamenta a profissão de psicomotricista. A proposta
causa comoção. “O que é psicomotricidade? Eu não sei o que é
psicomotricidade!”, exaspera-se um deputado ao microfone, em meio a um bololô
de gente. Uma associação do setor, mais uma das tantas que diariamente lançam
seus lobbies no Congresso, explica em um documento anexado ao projeto: “A
psicomotricidade tem como função motivar e estimular a capacidade sensitiva e
perceptiva para ajudar as pessoas a descobrirem e expressar suas capacidades,
criar segurança e consciência sobre seu espaço e o espaço dos outros. Para
isso, podem ser usadas várias técnicas, como brincadeiras e jogos.”
Em um canto do “cafezinho”: durante o expediente, as excelências veem futebol
(Adriano Machado/Crusoé)
Uma leva de deputados sai em direção ao cafezinho. Uma voz conhecida da TV
ressoa no restaurante: “Boa noite, meninos! Boa noite, meninas! Boa noite,
indecisos!”. É o deputado e palhaço Tiririca. Pergunto o que Tiririca, que não
era um ser político até eleger-se deputado, aprendeu de melhor em Brasília. “A
não dar entrevista”, diz. E escapa para o salão reservado a parlamentares.
Às 22h12, há gritos no cafezinho. Não é por causa da aprovação da lei que
regulamenta a profissão de psicomotricista. A TV do restaurante dos
parlamentares mostra o jogo do Palmeiras contra o Flamengo, que acaba de marcar
o gol que empataria a partida em um a um. A sessão não passa das 22h30. Nenhum
dos projetos urgentes é aprovado. Não é sempre que a pressa acompanha as
excelências. Brasília tem tempo próprio.
QUINTA, 14 de junho
É quinta-feira, mas o Congresso já sextou. Ao meio-dia e meia, o prédio está às
moscas. O plenário da Câmara está vazio. O do Senado, quase isso. Gleisi
Hoffmann de coque e camisa branca, tecla no celular enquanto preside a mesa
diretora. O gaúcho Paulo Paim, seu colega do PT, discursa sobre a prisão de
Lula. “Senhora presidenta, está acontecendo uma farsa no país.” Gleisi continua
olhando para a tela do telefone. “O que está acontecendo aqui é uma
perseguição.” Faltando 11 minutos para o término do seu tempo, o senador parece
já se encaminhar para o encerramento de seu trololó, mas dispara a falar sobre
os feitos de Lula no governo. “Nunca se abriram tantas faculdades no Brasil.”
Hoffmann, fiel defensora de Lula, finalmente acorda. Vira-se para Paim,
demonstra concordar com o que ele diz e logo volta para o celular. Fim do
discurso, faltando ainda 7 minutos e 30 segundos do tempo disponível. “O
discurso do senador Paim me representa”, diz a atenta Gleisi.
O tom da fala do lado azul do carpete representa a diferença das duas casas. Se
o Senado fosse um canal de TV, seria a Globo, com atores bem treinados. Cada
senador tem um laptop no seu assento no plenário. Há um cercadinho para a
imprensa. Já a Câmara seria o SBT, com um elenco caricato atuando em tom
rocambolesco, quase sempre aos berros. Não há comissões acontecendo em nenhuma
das casas no momento. Mesmo assim há um deputado que, até por obrigação, tem
que estar presente. É a Justiça que determina que ele esteja. João Rodrigues,
do PSD de Santa Catarina, foi condenado a cinco anos e três meses por fraude e dispensa irregular de licitação enquanto era prefeito
interino de Pinhalzinho. Este é seu terceiro dia de Congresso depois de passar
quatro meses preso por ordem do Supremo Tribunal Federal. Uma semana antes, em
7 de junho, Rodrigues foi autorizado pelo ministro Luís Roberto Barroso a
cumprir regime semi-aberto, e a voltar ao batente. Desde então, Rodrigues sai
da Papuda às 7 horas e volta às 20. Ele está pedindo ao STF que, em dias de
sessão na Câmara, possa ficar até mais tarde.
Condenado, o catarinense João Rodrigues é deputado durante o dia e presidiário
da Papuda à noite (Adriano Machado/Crusoé)
Chego a seu gabinete. “Ele está com o advogado lá dentro, já fala com o
senhor”, avisa a secretária. Quarenta minutos depois, aparecem três empresários
do setor agrícola catarinense. “Trouxemos maçãs pra vocês, pena que esquecemos
no carro”, dizem, tentando se mostrar simpáticos. Uma das secretárias responde:
“Ah, mas o deputado que ia adorar. Agora que ele está mais magro (depois da
cadeia), comendo direito.” João Rodrigues aparece. Veste uma camisa polo azul.
Está com os cabelos brancos jogados para trás, com gel, e a silhueta mais
afinada do que quando foi preso, em 8 de fevereiro, voltando de uma viagem à
Disney. Cumprimenta os agricultores com abraços e se volta para mim: “Você
volta depois? Estou com a agenda bem cheia hoje”. O deputado pediu afastamento
de todas as comissões que integrava até regularizar sua situação criminal.
Pelos corredores do Congresso há gente com lógica diferente daquela da maioria
dos parlamentares: gente que trabalha muito e não faz questão de aparecer.
Clodoaldo Silva, contratado da limpeza, é quem faz os desenhos que ornamentam a
mesa diretora do plenário do Senado. Dezenove anos atrás, feliz com a chegada
do seu filho, ele rascunhou com aspirador e escovinha o desenho da bandeira do
Brasil no carpete azul que reveste o plenário. As excelências gostaram, e
pediram que Clodoaldo repetisse o feito. Hoje, ele desenha a Catedral
Metropolitana e o prédio do Congresso. Não ganha nada a mais por isso, dizem
seus colegas. É um brasileiro anônimo em meio a tantas figuras notórias que por
ali circulam.
SEXTA, 15 de junho
Uma placa na porta do Congresso garante: “Essa casa também é sua”. Nesta sexta
o Congresso volta a ser a casa do povo. Pelo menos do povo que quer visitar o
lugar. No primeiro e no último dia útil da semana, quando as excelências estão
em suas bases eleitorais, há visitas guiadas que não precisam ser marcadas com
antecedência. O guia, um estudante de História na UnB, conduz um grupo pelo
plenário da Câmara. Explica que há 399 cadeiras para 513 parlamentares. “Eles
gostam de ficar em pé mesmo, ali no meio.” As galerias, onde há 400 assentos,
são destinadas ao cidadão comum. Há um tour especial sobre a história da
escravidão (e das leis que a permitiam), e os guias bolam outras visitas
temáticas.
Uma repórter que está na eterna espera do Salão Verde aproveita o tempo moroso
para gravar o que parecem ser áudios promocionais. “Na loja Vestido de Chita
você vai se sentir uma verdadeira princesa!”, diz para o gravador do celular,
com a voz empostada. E emenda: “É claro que não poderíamos deixar de contar com
a nossa consultora de imagem e estilo”. Estranho. Na barbearia que fica no
subsolo do Senado, não há um segundo de fila. O cabeleireiro Rabelo, que também
dá expediente como ascensorista do Congresso, diz que está feliz porque
finalmente conseguiu tirar uma foto com Tiririca no dia anterior. “Eu também
conto piada, né? Sabe o que o Lula disse quando perguntaram quanto era 51
dividido por dois? ‘É claro que é meio litro, companheiro.’”
O Grindr, aplicativo de encontros sexuais para gays, mostra que há ao menos
seis pessoas online num raio de 10 metros do Salão Verde. Ou seja, dentro do
Congresso. Um usuário chamado Brother aborda o repórter. “Tô no anexo IV. Tenho
local, não tem ninguém no gabinete rsrsrs”. Enquanto isso, perto dali, a
funcionária de um gabinete passa exatos 40 minutos correndo o mouse sobre a
homepage do UOL sem clicar em nenhuma notícia. Zero interesse por qualquer que
fosse a manchete. Quando o relógio bate 13 horas, ela levanta e diz, segura de
si: “Vou almoçar. Alguém quer ir junto?”.
***
PS — Na estranha rotina da Câmara dos Deputados, sempre há espaço para a
malandragem explícita: a CPI da
Lava Jato, uma iniciativa muito patriótica do deputado gaúcho Paulo Pimenta, do
PT. No papel, a ideia da comissão parlamentar de inquérito era apurar denúncias
de que advogados estariam vendendo proteção junto ao MP. Na prática, porém, o
objetivo era bem outro: colocar em xeque os procedimentos da Lava Jato para
tentar desqualificá-la e, assim, proteger os parlamentares envolvidos nos
crimes descobertos pela maior investigação anticorrupção da história do país.
Pimenta já havia coletado 190 apoios de deputados, número suficiente para a
instalação da comissão, quando muitos se deram conta de que ele havia incluído
a Lava Jato na história depois da coleta das assinaturas — e resolveram voltar
atrás. Até a noite da quinta-feira, porém, a malandragem seguia adiante. A
Brasília dos políticos (e ácaros) dança um forró para o Brasil real.
Revista Crusoé
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