quinta-feira, 8 de novembro de 2007

O rato que esnoba o colarinho branco.

Parece que se estabeleceu entre nós a sub-cultura perversa do ‘jeitinho brasileiro’, do ‘levar vantagem em tudo’, mega-passaporte que libera a entrada para um reino obscuro, passe livre capaz de pulverizar qualquer barreira, ainda que ética, moral ou legal.

E como um nódulo cancerígeno, uma doença incurável, os tentáculos do malefício vão aprisionando a alma nacional, a tal ponto que hoje é difícil identificar algum setor que tenha conseguido escapar ileso ao cataclisma que assola Pindorama.

Se é para embair, enganar, passar a perna e aplicar o golpe, então vale tudo. Quando é para o mal, criatividade e engenhosidade não cabem na cumbuca, jamais esgotam, sempre extravasam.

Já ouvimos dizer da pinga barata que se vende nos grotões da periferia, uma aguardente translúcida em que o álcool é batizado com soda cáustica e até água de bateria. É a pinga que nem santo aceita o tantinho.

Mas a gatunagem e a sovinice, despojada de caráter e moral, lança suas patas imundas sobre o alimento das crianças. Só faltava essa e agora não falta mais. O leite tornou-se poderoso imã para atrair ordinários que cultuam a ganância e o charlatanismo. A moda da vez é mascarar sua péssima qualidade, adicionando ao produto soda cáustica e água oxigenada. Para não dizer das bactérias e coliformes fecais. Este expediente levou a Polícia Federal a desbaratar uma quadrilha de 27 bandidos – meliantes que se passavam por pessoas de bem – cuja especialidade era assacar contra a saúde pública, destinar às crianças e à população, de forma geral, a lavagem que deveria ser lançada no chiqueiro para alimentar os porcos. O Procon promoveu operação idêntica em Goiás, e os resultados não foram muito diferentes.

Governo e máfias muito bem estabelecidas se sucedem no joguete de tornar o contribuinte um idiota, o otário a quem se vende lebre para entregar gato bichado.

No plano governamental, a trajetória da CPMF – Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira – seria cômica, não fosse trágica. Ela está aí, azucrinando a vida e a paciência dos brasileiros desde 1994. Neste primeiro instante foi Imposto, mas a partir de 1997, já como Contribuição, incorporou-se ao cotidiano nacional e hoje injeta R$ 40 bilhões por ano nos cofres do governo federal. Criada para ser provisória tornou-se permanente, concebida para canalizar recursos para a saúde pública, não passa de fonte inesgotável para os desperdícios costumeiros.

Qual a razão dessa sub-cultura deitar e rolar por aqui? Em Pindorama a síndrome da falta de caráter cresce, se desenvolve, apresenta uma robustez de não acreditar, avança como praga no pasto.

A descomunal burocracia brasileira talvez seja a principal fonte desses males. Gigantesca, insaciável, guarda em seus labirintos as inumeráveis oportunidades para que a sangria e o vampirismo se estabeleçam. A própria Polícia Federal e o Ministério Público já apontaram as razões dos traficantes internacionais de drogas escolherem o Brasil como porto seguro de suas operações: por aqui a corrupção está praticamente institucionalizada. Policiais, autoridades, juízes, é cada vez mais raro encontrar personalidade física ou jurídica que escape aos encantos e ao poder de cooptação dos narco-dólares.

E tanto se agigantou a perversidade que vergou o Estado nacional, entranhou sorrateiramente para travestir-se de legalidade. Sim, os limites entre o certo e o errado encontram-se tão tênues que simplesmente volatizaram. O ano de 2.007 está em pleno curso, não chegou ao seu final, mas já apresenta 36 leis consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal.

No ano passado, o Supremo jogou na lixeira 127 dessas leis, inclusive muitas federais.

As Assembléias dos Estados e o Congresso Nacional contam com um invejável staf de técnicos e profissionais especialistas nas funções legislativas. E, considerando os salários praticados país adentro, esses servidores contam com remunerações mais que privilegiadas. Não bastasse o quadro próprio de pessoal, o parlamento recorre a serviços de consultoria e escritórios de advocacia. Então como explicar que, das demandadas apresentadas no STF, 82,4% das leis dos Estados foram consideradas inconstitucionais?

E o pior de tudo é que, até que o Supremo se manifeste, a lei inconstitucional permanece em vigor, e os brasileiros são obrigados a se deixar guiar por um emaranhado de leis explicitamente ilegais.

Empresário que para auferir lucro vende a alma para o demônio e leite podre à população, governo federal que ao invés de ganhar em eficácia se deleita na arrecadação matreira (eivada de maracutaia!) da CPMF (qual viúva Porcina, aquela que foi provisória sem nunca ter sido), governos estaduais que administram escorados na magia de tornar a ilegalidade, legal... Temos que nos livrar desse lado nefasto do jeitinho brasileiro, resgatar a urbanidade, a ética, os valores e princípios que sustentam uma nação e que conduzem seu povo ao desenvolvimento e ao progresso. Lembram-se da peste negra que no século XIV arrastou 75 milhões de pessoas para a morte, um terço da população da época? Pois essa pandemia é fichinha considerando o que está ocorrendo no Brasil. A peste bubônica medieval foi transmitida para os humanos através das pulgas e de um tipo de rato originário da Índia. Já a enfermidade que assola o Brasil, deriva de um outro tipo de rato, o que se apresenta sempre impecavelmente bem vestido, perfumado, lábia de cantador de viúva rica, um rato genuinamente nacional, o que esnoba o colarinho branco.

Antônio Carlos dos Santos é engenheiro e escritor, criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br