Duas decisões do ministro Dias Toffoli mostram
quanto a Justiça pode ser dadivosa para com a liberdade de alguns e rigorosa
para com a de outros
Sem que ninguém lhe tenha solicitado, ao menos oficialmente, o ministro Antonio Dias Toffoli propôs em 26 de junho a seus colegas de turma no Supremo Tribunal Federal (STF) que concedessem um habeas-corpus a José Dirceu, condenado a trinta anos e nove meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. A preocupação do magistrado era garantir que o petista pudesse aguardar em liberdade o julgamento de um recurso de sua defesa no Superior Tribunal de Justiça (STJ) antes do início do recesso do Judiciário. Dirceu foi solto, e Toffoli provou-se um ministro zeloso e preocupado com o bem-estar dos réus — ao menos aqueles com quem tem alguma intimidade. Dirceu — que é reincidente, dado que já havia sido condenado em 2013 a sete anos e onze meses por sua participação no mensalão — foi chefe de Toffoli na Casa Civil, durante o governo Lula.
Já com o mineiro Evanildo José Fernandes de Souza, ao que se sabe, o magistrado não cultiva relações. Analfabeto, alcoólatra e morador de rua, Souza foi preso em flagrante em 2011 por furtar uma bermuda no valor de 10 reais. Sua história foi contada pelo site Conjur, especializado em notícias jurídicas. Pego por policiais com a peça de roupa escondida sob a blusa logo que saiu da loja, em Viçosa, no interior de Minas Gerais, Souza não escapou do xilindró. Solto pouco depois, passou a responder a processo em liberdade, até ser condenado a um ano e sete meses em regime fechado. A Defensoria Pública recorreu ao Tribunal de Justiça alegando o princípio de insignificância, mas a corte não aceitou a tese do defensor: negou o habeas-corpus e manteve a sentença sob o argumento de que o condenado era reincidente. O morador de rua já havia sido preso uma dezena de vezes por pequenos furtos. Quando o processo subiu ao STF, Toffoli chancelou a decisão do tribunal.
“Não questiono a reincidência do Evanildo. Questiono se a conduta dele, que não apresentou violência e cujo prejuízo seria insignificante para a vítima, justifica uma punição de encarceramento”, afirma Gustavo Ribeiro, defensor público da União, responsável pelo caso. A reincidência — característica comum entre o morador de rua Souza e o ex-ministro Dirceu — foi entrave para a liberdade de um, mas nem sequer foi considerada agravante no caso do outro.
Não há um princípio cartesiano que determine que um réu reincidente não pode ser enquadrado no princípio de insignificância. Em 2014, a Primeira Turma do STF extinguiu a pena de uma mulher reincidente que havia sido condenada a quatro meses de prisão por tentativa de furto de um pacote de fraldas. O ministro Luiz Fux sustentou que o crime se assemelhava ao furto famélico (quando se depende do crime para sobreviver). Vem-se consolidando no STF, portanto, a jurisprudência de que, quando se trata de contravenções leves, levíssimas, há margem para a aplicação do princípio da insignificância, mesmo no caso de reincidentes.
A aparente disfunção — rigidez com os desamparados, brandura com os poderosos — provoca dúvidas sobre a isonomia da Justiça. No começo de junho, o ministro Gilmar Mendes também foi rigoroso e brando a um só tempo. No caso de Valdemiro Firmino, acusado de roubar 140 reais em 2013, Gilmar achou que não devia dar-lhe o direito de sair do regime fechado para a prisão em albergue humanitário. Decidiu com base na Súmula 691, que veda ao STF julgar habeas-corpus por meio de liminar antes que as instâncias inferiores tenham decidido sobre o tema. A súmula admite exceções, como quando o preso está sendo submetido a “constrangimento ilegal”. Foi esse o entendimento da Defensoria Pública, mas Gilmar considerou que não era o caso de Firmino — que é cego, soropositivo e sofre de convulsões.
No mesmo dia, Gilmar examinou um pedido semelhante de conversão de prisão fechada para domiciliar formulado pela defesa de quatro acusados na Operação Câmbio, Desligo. Neste caso, o ministro entendeu que deveria ceder às exceções da Súmula 691. Achou que os presos estavam sendo submetidos a “constrangimento ilegal”. Gilmar sempre poderá dizer que Firmino, que roubou 140 reais, já estava condenado e cumprindo pena. Os quatro acusados estavam apenas em prisão provisória, embora tenham sido capturados no âmbito de uma operação que investiga desvios e lavagem de dinheiro da ordem de 1,6 bilhão de dólares. Ainda que o direito não seja uma ciência exata, e que cada caso seja sempre único em si mesmo, juízes de cortes supremas contribuem com a democracia quando usam de isonomia, e não de zelo seletivo.
Rigor de ocasião
Dirceu, condenado a mais de trinta anos de prisão, foi solto graças a Dias Toffoli. Souza, que roubou uma bermuda de 10 reais, não teve a mesma sorte
Sem que ninguém lhe tenha solicitado, ao menos oficialmente, o ministro Antonio Dias Toffoli propôs em 26 de junho a seus colegas de turma no Supremo Tribunal Federal (STF) que concedessem um habeas-corpus a José Dirceu, condenado a trinta anos e nove meses de prisão pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e formação de quadrilha. A preocupação do magistrado era garantir que o petista pudesse aguardar em liberdade o julgamento de um recurso de sua defesa no Superior Tribunal de Justiça (STJ) antes do início do recesso do Judiciário. Dirceu foi solto, e Toffoli provou-se um ministro zeloso e preocupado com o bem-estar dos réus — ao menos aqueles com quem tem alguma intimidade. Dirceu — que é reincidente, dado que já havia sido condenado em 2013 a sete anos e onze meses por sua participação no mensalão — foi chefe de Toffoli na Casa Civil, durante o governo Lula.
Já com o mineiro Evanildo José Fernandes de Souza, ao que se sabe, o magistrado não cultiva relações. Analfabeto, alcoólatra e morador de rua, Souza foi preso em flagrante em 2011 por furtar uma bermuda no valor de 10 reais. Sua história foi contada pelo site Conjur, especializado em notícias jurídicas. Pego por policiais com a peça de roupa escondida sob a blusa logo que saiu da loja, em Viçosa, no interior de Minas Gerais, Souza não escapou do xilindró. Solto pouco depois, passou a responder a processo em liberdade, até ser condenado a um ano e sete meses em regime fechado. A Defensoria Pública recorreu ao Tribunal de Justiça alegando o princípio de insignificância, mas a corte não aceitou a tese do defensor: negou o habeas-corpus e manteve a sentença sob o argumento de que o condenado era reincidente. O morador de rua já havia sido preso uma dezena de vezes por pequenos furtos. Quando o processo subiu ao STF, Toffoli chancelou a decisão do tribunal.
“Não questiono a reincidência do Evanildo. Questiono se a conduta dele, que não apresentou violência e cujo prejuízo seria insignificante para a vítima, justifica uma punição de encarceramento”, afirma Gustavo Ribeiro, defensor público da União, responsável pelo caso. A reincidência — característica comum entre o morador de rua Souza e o ex-ministro Dirceu — foi entrave para a liberdade de um, mas nem sequer foi considerada agravante no caso do outro.
Não há um princípio cartesiano que determine que um réu reincidente não pode ser enquadrado no princípio de insignificância. Em 2014, a Primeira Turma do STF extinguiu a pena de uma mulher reincidente que havia sido condenada a quatro meses de prisão por tentativa de furto de um pacote de fraldas. O ministro Luiz Fux sustentou que o crime se assemelhava ao furto famélico (quando se depende do crime para sobreviver). Vem-se consolidando no STF, portanto, a jurisprudência de que, quando se trata de contravenções leves, levíssimas, há margem para a aplicação do princípio da insignificância, mesmo no caso de reincidentes.
A aparente disfunção — rigidez com os desamparados, brandura com os poderosos — provoca dúvidas sobre a isonomia da Justiça. No começo de junho, o ministro Gilmar Mendes também foi rigoroso e brando a um só tempo. No caso de Valdemiro Firmino, acusado de roubar 140 reais em 2013, Gilmar achou que não devia dar-lhe o direito de sair do regime fechado para a prisão em albergue humanitário. Decidiu com base na Súmula 691, que veda ao STF julgar habeas-corpus por meio de liminar antes que as instâncias inferiores tenham decidido sobre o tema. A súmula admite exceções, como quando o preso está sendo submetido a “constrangimento ilegal”. Foi esse o entendimento da Defensoria Pública, mas Gilmar considerou que não era o caso de Firmino — que é cego, soropositivo e sofre de convulsões.
No mesmo dia, Gilmar examinou um pedido semelhante de conversão de prisão fechada para domiciliar formulado pela defesa de quatro acusados na Operação Câmbio, Desligo. Neste caso, o ministro entendeu que deveria ceder às exceções da Súmula 691. Achou que os presos estavam sendo submetidos a “constrangimento ilegal”. Gilmar sempre poderá dizer que Firmino, que roubou 140 reais, já estava condenado e cumprindo pena. Os quatro acusados estavam apenas em prisão provisória, embora tenham sido capturados no âmbito de uma operação que investiga desvios e lavagem de dinheiro da ordem de 1,6 bilhão de dólares. Ainda que o direito não seja uma ciência exata, e que cada caso seja sempre único em si mesmo, juízes de cortes supremas contribuem com a democracia quando usam de isonomia, e não de zelo seletivo.
Rigor de ocasião
Dirceu, condenado a mais de trinta anos de prisão, foi solto graças a Dias Toffoli. Souza, que roubou uma bermuda de 10 reais, não teve a mesma sorte
Por Roberta Paduan, na Revista Veja