VIVER MAIS E
COM SAÚDE É UM DESEJO UNIVERSAL. No mundo todo, a longevidade de um povo é
reconhecida como um indicador de bem-estar social e econômico. Afinal, é
preciso superar inúmeros desafios para que a população acumule mais anos de
vida: da vacinação em massa ao saneamento universal; da gestão eficiente do
sistema público de saúde à adoção das mais novas tecnologias da medicina; dos
custos crescentes dos serviços à demanda para que o acesso seja igualitário. O
Brasil lida simultaneamente com o envelhecimento de sua população e com o fato
de que não venceu ainda males que nos condenam ao atraso. As doenças
infecciosas são a causa de 18% das mortes dos brasileiros, índice que continua
muito superior ao das nações ricas. Mas, conforme esta edição especial de EXAME
mostra nas páginas a seguir, não faltam exemplos do que o país deve fazer para
superar suas mazelas. De outro lado, há uma corrida mundial para prolongar
ainda mais a vida humana, como mostram reportagens feitas em vários países. As
descobertas que se anunciam pela frente são extraordinárias — e os brasileiros
também vão querer usufruir das oportunidades de alcançar um futuro mais longo e
melhor.
ENVELHECER COM SAÚDE
O número de brasileiros acima de 60 anos deverá crescer 45% até 2030, quando o país terá pela primeira vez mais idosos do que crianças. 0 setor de saúde será pressionado, mas a tecnologia de ponta, a redução da burocracia e a gestão eficiente podem trazer um equilíbrio
A rede de laboratórios Alliar enfrenta um dos maiores desafios de sua curta história — a empresa foi criada em 2011 por quatro grupos de diagnósticos de São Paulo, de Minas Gerais e de Mato Grosso do Sul. Impelida pelos planos de saúde, a Alliar batalha diligentemente pela eficiência. Um dos recursos que estão gerando ganho de produtividade são as centrais de comando de exames de ressonância magnética a distância. Para o exame, normalmente o paciente é conduzido por um auxiliar até o equipamento, enquanto um técnico dentro da mesma sala programa o aparelho. Mas na Alliar não é mais assim. Os técnicos ficam nas centrais (dentro ou fora da unidade em que o exame é realizado), de onde comandam a ressonância e se comunicam com o paciente e o auxiliar. Isso é possível com o uso de softwares, câmeras e microfones da alemã Siemens. O aparato, criado a princípio para a Alliar, já foi exportado para Estados Unidos, Alemanha, China e Índia. Instalada em 2015, a primeira central da Alliar, no bairro paulistano da Vila Mariana, tem 35 técnicos que programam 40 máquinas. Com a tecnologia, foi possível reduzir em um terço o número de técnicos na rede — como há radiação nas salas de exame, a lei limita a carga de trabalho e eram necessários mais profissionais na versão presencial. Já os pedidos de repetição de exames caíram 35%, uma vez que o técnico não atende todos os pacientes que batem à porta, só os que farão os exames de sua especialidade. “Os planos de saúde nos pressionam para a redução do preço dos serviços”, diz Eduardo Margara, diretor de operações da Alliar. “Eles sentem uma alta nos pedidos de exames devido ao envelhecimento da população, o que, por sua vez, está pressionando seus custos.”
O setor de saúde brasileiro — assim como a Alliar — está inquieto. Enquanto tenta lidar com as mazelas históricas do desperdício e da má gestão, agora também tem de se adaptar à realidade do envelhecimento da população. Não é de hoje que se verificou essa tendência, mas o fato é que seus impactos estão mais evidentes. A longevidade, uma conquista da humanidade, está fazendo a quantidade de idosos aumentar em todo o mundo. No Brasil, o ritmo tem se acelerado. A Organização das Nações Unidas prevê que, de 1950 a 2050, a fatia de pessoas acima de 60 anos na população cresça seis vezes no Brasil, o dobro da taxa projetada para países como Canadá e Holanda. Em 2030, o número de idosos por aqui vai superar pela primeira vez o de crianças com até 14 anos. “O Brasil demorou 18 anos para dobrar a população de idosos, enquanto a França levou 45 anos”, diz o médico Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade. “Há nações que conseguem postergar o efeito do envelhecimento atraindo imigrantes, o que não acontece por aqui.” Kalache palestrou durante o EXAME Fórum Saúde, realizado em Brasília no dia 21 de junho, com a presença de autoridades, executivos e especialistas no setor de saúde brasileiro.
Viver mais é uma boa notícia para todo mundo, desde que se viva com saúde. E, nesse ponto, os especialistas acreditam que o Brasil avança lentamente. A população está ficando mais idosa, porém continua pobre e desigual. Segundo a Organização das Nações Unidas, o país é o décimo mais desigual no mundo. Por aqui, um cidadão pobre leva nove gerações para atingir a renda média nacional, enquanto na Dinamarca são necessárias apenas duas. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países mais ricos, os jovens de hoje enfrentarão mais desigualdade na velhice do que os aposentados atuais, devido ao desemprego e às disparidades salariais causadas pelas últimas crises. “O envelhecimento nos toca desde o início da vida, quando é preciso promover a saúde, a participação na sociedade e o aprendizado contínuo”, afirma Kalache.
Para o setor público, fica a preocupação com os idosos de menor renda, que tendem a ter mais complicações decorrentes de doenças crônicas e a precisar de mais cuidados de longo prazo. Normalmente, um familiar deixa de trabalhar para cuidar do idoso doente ou a família desembolsa muitos recursos com o cuidador, podendo comprometer até 70% da renda do domicílio. Segundo a OCDE, há apenas 218 instituições públicas, como casas de repouso, disponíveis para atender 20 milhões de brasileiros de mais idade, e 71% dos municípios não têm esse tipo de instituição. Sem um cuidado apropriado à população, haverá mais pressão no sistema público, que já está sobrecarregado. Essa realidade é evidenciada pela opinião do brasileiro sobre os serviços públicos: três em cada quatro afirmam que eles são ruins ou péssimos e cerca de 80% já desistiram de uma consulta ou exame pela demora em marcar. “A percepção do brasileiro é que o sistema público simplesmente não está funcionando”, diz Renato da Fonseca, gerente da Confederação Nacional da Indústria, responsável por uma pesquisa a respeito.
Diante dessa realidade, o setor público começa a buscar mais eficiência com o uso de tecnologia. Em Curitiba, no Paraná, há prontuários eletrônicos para toda a população desde 1999. No início deste ano, a tecnologia permitiu identificar os 500 000 cidadãos que precisavam de vacinação diante do surto de febre amarela e os 30?000 cidadãos acima de 80 anos que necessitam de acompanhamento de saúde. Na cidade, desde o ano passado, os médicos vão até a residência de idosos com doenças crônicas para fazer coisas como medir a pressão ou prescrever um remédio. “O custo anual do projeto, de 1,2 milhão de reais, é um décimo do que seria gasto com uma internação”, diz a secretária de Saúde de Curitiba, Márcia Huçulak. O resultado: a taxa de internações na cidade, de seis casos para cada 100?000 atendimentos, está um terço abaixo da média nacional.
Além do setor público, o privado também não está numa situação confortável. Com a longevidade, tende a crescer mais de 50% o número de internações, exames e consultas de idosos nos planos de saúde até 2030, segundo o Instituto de Estudos em Saúde Suplementar, um centro de pesquisa mantido pelas operadoras privadas de planos de saúde. “O modelo tradicional de plano de saúde está fadado ao insucesso, porque, de cada 100 reais arrecadados, 85 vão para o pagamento de despesas com o atendimento aos pacientes”, diz Leandro Fonseca da Silva, diretor da Agência Nacional de Saúde Suplementar. “É por isso que temos insistido que as empresas sejam gestoras da saúde dos pacientes, e não apenas vendedoras de planos de saúde.” Como forma de equilibrar a conta, a agência lançou novas regras para a coparticipação dos clientes no pagamento de consultas e exames. Grandes empresas também estão agindo para reduzir os custos dos planos dos funcionários. Um caso recente é o da Amazon, da gestora Berkshire Hathaway e do banco JP Morgan Chase, que anunciaram a criação de uma empresa conjunta de saúde, sem fins lucrativos, para reduzir os custos dos planos de seu 1 milhão de empregados. Entre as atividades previstas pela nova empresa está o desenvolvimento de aplicativos, como um que sugere genéricos para que os funcionários saibam de opções mais baratas de remédios na hora da compra.
Caso nada seja feito, o Brasil poderá alcançar 25% do produto interno bruto de gasto total no sistema de saúde — hoje, a fatia é de 9,5%. Os dados, do Instituto Coalizão Saúde, que elabora estudos na área, consideram a mudança do perfil demográfico — o custo do atendimento hospitalar de quem tem mais de 60 anos é o dobro do registrado para outras faixas etárias. Na projeção dos gastos, entra também a inflação dos serviços de saúde, cujos preços têm subido devido à incorporação de novas tecnologias. Um estudo da consultoria Mercer Marsh Benefícios, realizado com 225 operadores de saúde em 62 países, mostra que o Brasil terá a terceira maior inflação médica neste ano, de 15,4%, atrás apenas da Argentina, com 26%, e do Egito, com 20%.
Uma forma de reduzir o custo é garantir a oferta de remédios a preços mais baratos. Nessa jornada, o Ministério da Saúde tem formado parcerias com o setor privado desde 2012, comprando em grandes quantidades por valores inferiores das farmacêuticas, com a contrapartida de transferência de tecnologia para os laboratórios públicos. Até agora, 112 parcerias já foram feitas, gerando economia de 5,2 bilhões de reais. “As parcerias ampliaram a oferta de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde”, diz Thiago Rodrigues Santos, diretor de Inovação do Ministério da Saúde. A redução de custos também pode vir com os medicamentos biossimilares, uma espécie de genéricos dos biológicos, que tratam de doenças complexas e representam gastos anuais de 1,3 bilhão de reais no Brasil. Hoje, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária analisa o pedido de 11?biossimilares. “Estimamos que deverá haver redução de até 10% em relação ao preço do remédio de referência, que também tende a cair com a pressão da entrada de um biossimilar”, diz Alcebíades Athayde Júnior, presidente da farmacêutica Libbs.
Esses exemplos mostram que o Brasil não está fadado ao fracasso na luta por trazer equilíbrio ao sistema de saúde. Ao contrário disso, uma série de medidas pode ser tomada, com impactos significativos. Os dados do Instituto Coalizão Saúde mostram que, se eliminados os fatores de risco, como tabagismo, sedentarismo, consumo excessivo de álcool e dieta pouco saudável, seriam poupados 100 bilhões de reais ao ano do sistema. “A primeira coisa a fazer é criar uma cultura que dê prioridade à prevenção de doenças”, diz Denise Eloi, diretora executiva do Instituto Coalizão Saúde, também participante do EXAME Fórum Saúde.
Promover a saúde requer uma rede de atendimento próxima do paciente, um desafio para um país continental. O Brasil tem dois médicos para cada 1?000 cidadãos, número que triplica nas cidades acima de 500?000 habitantes, mas cai para menos de 0,5 em municípios pequenos da Região Norte, de acordo com o Conselho Federal de Medicina. Mesmo as cidades médias da região sofrem com uma quantidade de médicos 53% inferior à média nacional para municípios similares. Em Palmas, capital do Tocantins, desde 2014 a prefeitura financia uma escola para que recém-formados em medicina possam fazer a especialização nos postos de saúde, com visitas à casa de pacientes. Em quatro anos, 400 jovens passaram pelo programa. Antes da residência médica, menos da metade dos moradores tinha acesso a consultas preventivas. “Hoje, graças aos residentes, conseguimos cobrir toda a cidade”, diz o médico Nésio Fernandes, ex-secretário de saúde de Palmas que implementou o projeto. A fila de espera para uma consulta médica não urgente, que não raramente superava 10 000 pessoas, hoje está quase zerada.
O caminho para garantir serviços melhores a uma população que envelhece também passa por redução da burocracia. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária tem se mexido nesse sentido. “Temos um número de técnicos pequeno para manter o sistema eficiente como o mercado gostaria”, disse no EXAME Fórum Saúde Varley Dias Sousa, gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da Anvisa. “Mas os produtos mais urgentes têm sido aprovados em ritmo mais acelerado.” Até há pouco tempo, todo registro de remédio entrava numa fila única e os técnicos tinham de avaliar o que caía em suas mãos. A fila alcançou 700 pedidos, com demora de até seis anos para resposta. No início do ano passado, estagiários foram contratados para checar os documentos antes de o processo começar, e os 33 técnicos foram divididos em áreas de conhecimento, avaliando mais de um remédio com função semelhante ao mesmo tempo. A fila caiu 80% e deve ser zerada nos próximos meses. Dessa forma, mais remédios devem chegar ao país. “Produtos que estão em nosso portfólio em outros mercados há muito tempo, e que não trazíamos pela demora em aprovar, agora já podem ser lançados aqui”, diz Juan Carlos Gaona, presidente do laboratório americano Abbott no Brasil.
O Brasil tem um duplo desafio: sanar as doenças do sistema de saúde, hoje em desequilíbrio, enquanto aprende a lidar com o envelhecimento da população. Nas próximas páginas, EXAME mostra exemplos de países que conseguiram tornar o sistema de saúde mais sustentável, de tecnologias que reduzem os custos e de empresas cujo negócio foca a longevidade. São componentes importantes de uma possível receita para o Brasil envelhecer, mas com boa saúde.
O PACIENTE COM A MÃO NO BOLSO
Pressionadas pelo aumento dos custos, as operadoras de planos de saúde repassam a conta aos clientes — e enfrentam uma boa dose de resistência
O envelhecimento da população e a escalada da inflação médica estão causando um enorme problema para as empresas de planos de saúde. Elas têm tomado medidas para ganhar eficiência e conter a disparada das despesas. Como exemplo, a operadora brasileira Amil, controlada pelo grupo americano UnitedHealth, tem 16 centros de prevenção para pacientes com doenças crônicas. Eles são orientados a seguir uma alimentação saudável e a praticar exercícios, uma forma de evitar a cara hospitalização. Mas, apesar da disseminação desse tipo de programa entre as operadoras, não há muita saída: parte da conta de saúde está sendo repassada aos consumidores. Não sem uma boa dose de resistência.
No embate entre clientes e planos, o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) moveu uma ação para limitar o reajuste dos planos individuais em 2018 — nos anos anteriores, a taxa superou 13%. O instituto se baseia num relatório do Tribunal de Contas da União que apontou problemas na metodologia da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo o documento, a ANS considera como base para o reajuste dos planos individuais o aumento praticado nos planos coletivos, que são feitos sem tanta vigilância. O Idec ganhou em primeira instância, quando o reajuste foi limitado a 5,72%, mas perdeu em segunda. A ANS divulgou um reajuste de até 10%, e o Idec recorreu. O caso continua na Justiça.
No mais recente episódio, a ANS lançou em junho regras para a coparticipação do paciente no pagamento de tratamentos cobertos pelos planos de saúde. Essas cobranças ocorrem há duas décadas, mas não tinham um limite. Agora, a coparticipação deve ser de no máximo 40%: numa consulta de 70 reais, o paciente pagará até 28 reais. Em um mês, a cobrança de todas as coparticipações não pode exceder o valor de uma mensalidade. “Atuamos para racionalizar o uso dos serviços de saúde e evitar o endividamento excessivo do paciente”, diz Rodrigo Aguiar, diretor de desenvolvimento setorial da ANS. De acordo com os órgãos de defesa do consumidor, as medidas desestimulam consultas e exames.
O esforço do setor de saúde para dividir a conta com os clientes está disseminado em países como Singapura e Holanda. “Isso reduz o desperdício e as fraudes, que atingem, em média, 20% dos recursos gastos com saúde”, diz Carlos Suslik, consultor especializado em gestão de saúde. É uma saída para lidar com as mazelas do sistema brasileiro, mas que deve causar mais embates.
AS DOENÇAS DO ATRASO
No Brasil de 2018, 1 em cada 5 pessoas ainda morre por doenças infecciosas. A vacinação retrocedeu e novas epidemias estão surgindo. O país que anseia pelas novidades da medicina não resolveu problemas do passado
Em janeiro, vários pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Saúde, foram chamados às pressas de volta das férias. Um surto de hepatite A havia infectado pelo menos 120 pessoas na comunidade do Vidigal, no Rio de Janeiro, e era preciso fazer o sequenciamento genético do vírus com urgência. No final de 2017, correria semelhante acontecera quando a febre amarela obrigou a Fiocruz a produzir mais vacinas, estudar a efetividade das doses fracionadas e treinar profissionais de saúde para evitar que uma epidemia urbana fizesse um estrago na população, como ocorria até meados do século 20. Ainda assim, 1.190 pessoas foram contaminadas e 373 morreram nos primeiros seis meses de 2018. Agora já se prevê mais trabalho intenso pela frente: dessa vez, com o crescimento da incidência de sarampo iniciada na fronteira norte do Brasil, em razão da entrada de refugiados venezuelanos em Roraima. “O risco de os casos de sarampo se espalharem para outros estados é razoável”, diz Rivaldo Venâncio da Cunha, coordenador de vigilância e dos laboratórios de referência da Fiocruz. “Além da fabricação de mais vacinas, estamos nos preparando para dar suporte à rede de diagnósticos.”
Os episódios relatados pelos técnicos da Fiocruz não decorrem de falta de sorte dos brasileiros. No caso da hepatite A no Rio de Janeiro, o surto carioca foi causado por água contaminada, resultante da falta de sanea-mento básico. Na cidade, 56% do esgoto coletado — nem todo esgoto é coletado — não é tratado. Já para a febre amarela sabe-se que, a cada oito ou dez anos, há um novo surto e é possível se preparar para enfrentá-lo com antecedência. Em relação ao sarampo, apesar do reforço de imunização nas fronteiras feito pelo governo, os indicadores mostram que a vacinação no país tem diminuído e atingiu, no ano passado, o menor percentual em 16 anos. Apenas 70% das crianças brasileiras foram vacinadas contra o sarampo em 2017. “Se a imunização fosse efetiva, mesmo com a chegada de estrangeiros contaminados, a doença não se espalharia”, afirma Expedito Luna, médico e professor no Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP).
O Brasil de 2018 continua a lidar com doenças que em grande parte do mundo desenvolvido já foram controladas, quando não erradicadas, e sua incidência atesta nosso atraso. Casos de malária e sífilis voltaram a proliferar no país, após anos de seguidas reduções. Tuberculose e hanseníase, males que não se consegue efetivamente erradicar, somam mais de 65?000 casos notificados anualmente. Todos os verões, as doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, como dengue, zika e chikungunya, se transformam num desafio para o sistema público de saúde. Até a poliomielite, erradicada no país em 1990, tem alto risco de retornar. Um levantamento do Ministério da Saúde mostra que 312 cidades no país imunizaram menos da metade das crianças que deveriam receber a dose da vacina em 2017. “A impressão é de que voltamos ao início do século passado”, diz Venâncio, da Fiocruz.
As doenças infectocontagiosas estiveram no centro das discussões da saúde pública em todo o mundo no século 20. Foi no início do século passado que surgiram as vacinas contra tuberculose, difteria, tétano e febre amarela. Após a Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se a imunização contra poliomielite, sarampo e rubéo-la. Ainda assim, em 1970, 40% das mortes por problemas de saúde nos países emergentes eram provenientes de doenças infecciosas — ante 13% nas nações ricas. A situação melhorou no mundo emergente, mas hoje 18% ainda morrem por esses males. O fato é que a parte mais pobre do mundo não atingiu o patamar de 50 anos atrás dos países ricos, enquanto estes reduziram a 8% o número de óbitos por doenças infecciosas. É verdade que a virada do milênio trouxe à pauta problemas de outra natureza.
Em boa parte dos países, o debate foi direcionado para o que fazer e como lidar com as doenças crônico-degenerativas, aquelas causadas pela maior sobrevida da população. Estão lá hipertensão, diabetes, artropatias e, até mesmo, o câncer. “Essas doenças eram menos presentes no passado porque não dava tempo de desenvolvê-las: as pessoas morriam antes por doenças infectocontagiosas”, diz Claudio Lottenberg, presidente da UnitedHealth Group Brasil, controladora do plano de saúde Amil. “Hoje, é de extrema importância acompanhar e ter políticas públicas para essas doenças.”
No Brasil, uma soma de problemas faz das doenças do passado uma realidade no presente. A começar pela falta de saneamento. Ainda hoje, 35 milhões de pessoas não recebem água tratada no país e 100 milhões não têm acesso a coleta de esgoto. Somente 42% do esgoto coletado é tratado. Cerca de 12 milhões de domicílios não têm o lixo recolhido. “O índice de saneamento básico em Teresina, uma capital de estado, é de 15%”, afirma Leonardo Giusti, sócio da consultoria KPMG. “Não é possível tratar a saúde sem tratar a água.” Tudo isso afeta diretamente a saúde dos brasileiros — e o que se gasta com ela. Todos os anos, o país registra 340.000 internações causadas por infecções gastrintestinais, resultando em cerca de 5.000 mortes. Apenas o custo hospitalar com as internações por causa de diarreia no Sistema Único de Saúde chega a 125 milhões de reais por ano.
Os números são alarmantes, mas não deveriam surpreender ninguém. A correlação entre saneamento e saúde pública é largamente documentada. Segundo dados da Unicef e da Organização Mundial da Saúde, quanto maior o acesso ao saneamento, menor a mortalidade infantil num país. Nações como o Japão e os Estados Unidos, onde o saneamento básico é universal, registram, respectivamente, duas e seis mortes a cada 1?000 nascidos vivos. No extremo oposto está o Zimbábue: no país africano, onde o serviço de esgoto está disponível para apenas 37% da população, morrem 47 crianças a cada 1?000 nascimentos. No Brasil, pouco mais da metade da população tem o esgoto coletado, e a taxa de mortalidade infantil chega a 15 mortes por grupo de 1?000 nascidos.
Associada à falta de saneamento, a intensa movimentação de pessoas dentro e fora do país tem permitido o surgimento de novas epidemias, exigindo que os esforços em relação à vigilância sanitária e epidemiológica sejam crescentes. De julho de 2017 a maio de 2018, o Brasil registrou 415 mortes por febre amarela, doença cuja vacina foi desenvolvida em 1936. Boa parte dos casos ocorreu nos estados de São Paulo e Minas Gerais, gerando filas e obrigando a adoção do fracionamento das doses da vacina para atender mais rapidamente um maior número de pessoas. Uma das hipóteses para a epidemia é o aumento do desmatamento nas áreas limítrofes das zonas urbanas, algo que não ocorre da noite para o dia. Outra é o acidente da mineradora Samarco, em Minas Gerais: o rompimento da barragem na cidade de Mariana provocou mudanças bruscas no ambiente. Especialistas alertaram para a necessidade de imunizar a população local em larga escala.
“Ainda que parte do que ocorreu pudesse ter sido evitado, as iniciativas de controle da febre amarela foram essenciais para impedir uma tragédia”, diz Pedro Tauil, professor do núcleo de Medicina Tropical na Universidade de Brasília. A mesma previsibilidade ocorre com a dengue. Nas últimas três décadas, com exceção do ano de 1988, o Brasil sofreu todos os anos com epidemias de dengue de maior ou menor intensidade. Somados 2016 e 2017, foi registrado 1,7 milhão de casos de dengue no Brasil. Houve 816 mortes no período para uma doença em que 90% das ocorrências exigem tratamento com água e soro fisiológico. “Boa parte dos óbitos resulta de falta de diagnóstico correto, subestimando a gravidade da doença”, diz Venâncio, da Fiocruz. Cabem aos estados e municípios as ações de combate e controle do Aedes aegypti, mosquito transmissor de dengue, chikungunya, zika e febre amarela urbana (a silvestre é transmitida por outro mosquito), mas o poder público depende do engajamento da população na eliminação de criadouros do inseto, que se desenvolvem principalmente dentro dos domicílios.
De todo modo, entre os especialistas há um consenso: até que se desenvolva uma nova tecnologia, será impossível eliminar o Aedes aegypti das grandes cidades. “Até os anos 90, acreditava-se que seria possível erradicá-lo”, afirma Stefan Cunha Ujvari, infectologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo, e autor do livro A História da Humanidade Contada pelos Vírus. “Afinal de contas, havíamos sido bem-sucedidos nessa missão no início do século 20, quando se descobriu que ele era o vetor na transmissão da febre amarela urbana.” Só que as grandes cidades do século 21 são muito diferentes daquelas de 70 ou 80 anos atrás — além de bem mais populosas, há um adensamento maior, condições que facilitam a transmissão de doenças. Até mesmo o aquecimento global tem um papel na proliferação de doenças transmitidas por mosquitos. Recentemente houve surtos de dengue na Flórida, no sul da França, na Itália, em Singapura e até mesmo em Tóquio, em razão das temperaturas mais altas.
Reconhecido há décadas como um exemplo por seu programa universal de vacinação, o Brasil tem vivido um retrocesso na área também por falta de planejamento. Pelo modelo do SUS, a mão na massa nos atendimentos à população com vacinas está concentrada nos municípios. “Faz sentido a partir do momento em que, ao conhecer melhor seu território, as cidades conseguiriam cuidar mais de perto dos pacientes”, afirma Giusti, da KPMG. “Só que, na prática, faltam coordenação e gestão para executar o que foi desenhado.” Numa realidade bastante heterogênea, é comum que municípios pequenos não tenham estrutura para organizar a vacinação ou que a deixem a cargo das cidades vizinhas maiores. “Mosquitos, vírus e bactérias não costumam respeitar fronteiras geográficas”, diz Luna, da USP. “Por isso, é preciso criar estratégias coordenadas entre União, estados e municípios.” Há diversas discussões para a formação de consórcios intermunicipais e regionais, mas os projetos pouco têm avançado.
A crise das finanças públicas também acaba prejudicando o cenário da saúde. Diversas rubricas dos gastos públicos ligadas à vigilância epidemiológica têm sido reduzidas. No governo federal, programas para o fortalecimento da vigilância sanitária tiveram redução de 28% dos recursos destinados em 2017 em relação ao ano anterior. Com a consolidação do teto dos gastos públicos, que limitou o crescimento da despesa à inflação do ano anterior, o cenário deve ser de aperto. O incremento anual da população, mesmo inferior a 1% ao ano, também tende a reduzir as fatias do bolo para as diferentes necessidades da população. Em alguns estados, a situação também se deteriorou. No Rio de Janeiro, de acordo com o Ministério Público local, cerca de 2 bilhões de reais deixaram de ser investidos nos serviços de saúde estaduais em 2016. “O visível são filas nas portas dos prontos-socorros, mas apenas mais médicos não resolvem”, afirma Luna. “É preciso ter ações de vigilância, controle de vetores e cobertura vacinal ampla.” Há outra frente a ser atacada: a má qualidade dos gastos. O setor de saúde pública no Brasil padece com o desperdício e a ineficiência, além da roubalheira.
“Certamente é possível fazer muito mais usando melhor o dinheiro público”, diz Enrico Vettori, líder da área de saúde da consultoria Deloitte. Além disso, são necessárias políticas públicas para deter situações específicas. No caso de tuberculose, os 25 casos de incidência em cada 100 000 habitantes da população geral se transformam em 250 casos na indígena e 1?400 na encarcerada. “Ou olhamos para essas realidades de forma distinta ou essa situação nunca vai mudar”, afirma Venâncio. “Porque não é só o presidiário o contaminado, mas também os funcionários do sistema prisional, os advogados e familiares que continuam espalhando a doença.”
A superação dessas doenças vai exigir o empenho de toda a sociedade brasileira. Uma crítica comum dos especialistas é a negligência da população com os cuidados recomendados para a saúde e as condições sanitárias, atitude em parte atribuída à falta de educação. “O cidadão delegou ao Estado a responsabilidade exclusiva de cuidar de sua saúde. Será que precisa ter um agente de saúde da família acompanhando a carteira básica de vacinação de todos os brasileiros para avisá-los quando ir ao posto?”, diz Lottenberg, da UnitedHealth. O mesmo se aplica à falta de engajamento com outros problemas, como a eliminação de criadouros de mosquitos ou a prevenção contra doenças sexual-mente transmissíveis. Os avanços da tecnologia têm prometido resolver antigos problemas da medicina que devem resultar numa vida mais saudável e mais longa. As nações ricas lideram essa corrida. O Brasil também quer participar dessa disputa, mas antes precisa resolver as doenças que ainda o condenam ao atraso.
O MELHOR CUSTO-BENEFÍCIO
Singapura tem o sistema de saúde com o melhor custo-benefício. A receita? Dividir os custos com a sociedade — e cobrar dela uma postura saudável
Os 5,6 milhões de singapurianos são o melhor exemplo de uma sociedade que conseguiu brecar a escalada de custos médicos, um problemão nos países ricos. Os gastos públicos e privados na OCDE, o clube das nações mais desenvolvidas, subiram de 9% para 12% do produto interno bruto em 15 anos. Enquanto isso, Singapura seguiu gastando perto de um terço da média de uma nação rica: mais ou menos 4% do PIB. A austeridade está longe de significar serviços precários. Em 2014, um ranking da empresa de análise financeira Bloomberg escolheu a medicina de Singapura como a de melhor custo-benefício em 55 países. Boa parte da elite médica da Ásia está na cidade-estado, que sedia filiais de renomados hospitais americanos, como o Johns Hopkins, cuja sede em Baltimore é referência mundial em cirurgias neurológicas. Ainda assim, gastar pouco com saúde é um contrassenso num lugar como Singapura, em que um de cada 35 habitantes é milionário e cujo custo de vida é dos mais elevados. Em março, a cidade ganhou pela quinta vez o título de mais cara do mundo, à frente de metrópoles como Londres e Tóquio, segundo a consultoria Economist Intelligence Unit.
Por que Singapura gasta tão pouco com saúde se é um lugar tão caro? Uma parte da resposta está no movimento do fim de tarde em Padang, área central da cidade localizada a poucos metros da Baía da Marina, um de seus cartões-postais. Ali, quando o sol e o calorão tropical dão uma trégua, milhares de pessoas saem para correr, andar de bicicleta ou jogar rúgbi, futebol americano ou críquete em áreas verdes ou no meio das ruas, fechadas aos carros ao cair da noite. Singapura é pioneira na “promoção de saúde”, jargão médico para a luta contra o inimigo número 1 do custo galopante: o tratamento de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, causadas por maus hábitos, como o sedentarismo. Em 2001, o governo local criou uma agência só para botar os singapurianos em forma. Para dar conta da missão, entre outras iniciativas, hoje o órgão mantém um canal no YouTube com dicas de alimentação, uma linha de crédito para restaurantes dispostos a tirar frituras do cardápio e um calendário de exercícios gratuitos em praças e escritórios — no portfólio estão aulas de ioga, boxe e até zumba, um tipo de malhação inspirado em danças latinas. O resultado disso tudo são hábitos mais saudáveis que em outros países. Seis em cada dez singapurianos se exercitam regularmente, uma das taxas mais altas do mundo (no Brasil, são três em cada dez). Em Singapura, 11% dos adultos estão obesos. A média dos países ricos é de 17%. Os hábitos saudáveis colaboraram para a longevidade da população superar a média dos países ricos desde 1980. Hoje é de 83 anos, três anos acima do padrão na OCDE.
A preocupação com hábitos saudáveis é parte de um esforço nacional maior: usar a medicina de forma eficiente. É uma lógica entranhada há três décadas, quando reformas contra a escalada dos custos médicos, causada por avanços da medicina e hábitos cada vez mais sedentários de uma sociedade em rápida urbanização, mudaram radicalmente a saúde pública dessa ex-colônia do Reino Unido. Até então, o serviço era financiado pelo governo via impostos, num modelo copiado do NHS, sistema de saúde inglês que também serve de referência ao brasileiro SUS. Hoje, o acesso à medicina em Singapura lembra o de um plano particular do Brasil. Funciona assim: um conselho do Ministério da Saúde decide desde os remédios até os tratamentos disponíveis nos hospitais públicos, onde estão 80% dos leitos. A ideia é pressionar médicos, laboratórios e farmacêuticas a cortar custos. Além disso, o governo recolhe até 9% do salário dos trabalhadores num fundo, o Medisave, criado em 1984 para ser uma espécie de garantidor dos gastos médicos. O cidadão só pode usar o recurso em consultas eletivas, como check-up, e em clínicas privadas cadastradas — geralmente consultórios de médicos de família que, por causa do sistema, estão espalhados pela cidade.
Coparticipação salgada
Para assegurar cuidado médico numa emergência, como num tratamento de câncer, o cidadão também depende de soluções que passam por forte regulação do Estado sobre o mercado privado. Para esse tipo de ocasião, o singapuriano tem a opção de contribuir para o Medishield, fundo criado pelo governo em 1990 para complementar a assistência dos planos de saúde privados que operam no país — 60% dos residentes dispõem de coberturas oferecidas por gigantes do setor de seguros, como a americana Prudential e a inglesa Aviva. Embora seja público, o Medishield funciona como um plano de saúde privado, com mensalidades variáveis segundo a idade e a renda do cidadão e com uma coparticipação salgada, de até 1?400 dólares, dependendo do caso. Na prática, essa combinação de capital privado com forte regulação do Estado força pacientes e médicos a tentar soluções mais em conta antes de buscar tratamentos mais avançados e caros. Em compensação, dá para escolher o padrão de atendimento mesmo em hospitais públicos: há desde estadia em quarto coletivo até numa suíte luxuosa. Quem não tem dinheiro recorre ao Medifund, fundo aberto em 1993 com aporte de 3 bilhões de dólares. Pelas regras, a cobertura do Medifund em 12 meses é limitada ao ganho de capital do fundo no ano anterior — garfar o aporte inicial é proibido por lei. Por causa da austeridade, é comum os hospitais públicos manterem comissões para avaliar quem deve ser atendido no Medifund. Segundo dados oficiais, 99% dos pedidos são aceitos. Os três fundos — Medisave, Medishield e Medifund — diluíram a fonte de recursos à saúde. Em 1980, 70% do gasto com saúde vinha de impostos. Hoje, só 30% vêm. Para muitos ocidentais acostumados a um sistema público que também é universal, o excesso de cobranças ao cidadão em Singapura pode soar perverso. Mas, para os locais, o modelo oferece a chance de haver dinheiro para atender todos, ainda que em padrões distintos de qualidade. “Em Singapura, quem é pobre acessa o sistema. Quem é rico pode ir a outro país caso nada agrade”, diz o médico singapuriano Jeremy Lim, sócio da consultoria global Oliver Wyman e autor do livro Myth or Magic (“Mito ou mágica”, numa tradução livre) sobre a saúde de seu país.
O Brasil tem algo a aprender com Singapura? O enorme contraste entre os países dificulta a análise. Em seis décadas, o governo de Singapura nunca trocou de mãos. O atual primeiro-ministro, Lee Hsien Loong, é filho de Lee Kuan Yew, líder que declarou a independência em 1965, e as eleições locais são criticadas pela falta de transparência. Por outro lado, o país é o sexto menos corrupto do mundo, segundo a ONG Transparência Internacional. Nada mais diferente do Brasil, que sofre com o vaivém de políticas públicas a cada troca de governo e onde a corrupção grassa solta (estamos no 96o lugar entre 180 países na lista da Transparência Internacional). A ênfase no direito à saúde gratuita e no modelo de financiamento do SUS via impostos, tudo isso consagrado pela Constituição de 1988, é um entrave e tanto a mudanças drásticas na gestão da saúde brasileira da forma como ocorreu em Singapura. Mas não custa lembrar que a gestão privada da saúde pública no Brasil, embora bastante diferente do modelo singapuriano, vem trazendo bons resultados. Um exemplo são os postos de saúde e hospitais públicos geridos por organizações sociais, que operam nos moldes da iniciativa privada. Livres das amarras estatais, essas unidades frequentemente entregam saúde de melhor qualidade — e por um custo mais baixo. As situações de Singapura e Brasil são bem diferentes. Mas é possível tirar lições de quem consegue oferecer serviço adequado com o gasto controlado.
NO REINO UNIDO, A META É A EFICÁCIA
O sistema de saúde público britânico completa 70 anos e lida com o desafio de melhorar o atendimento sem prejudicar as finanças
Os britânicos têm uma relação de amor e ódio com seu sistema público de saúde, conhecido pela sigla NHS (National Health Service). Fundado há exatos 70 anos, o serviço, que inspirou a criação do SUS no Brasil, é visto pela população como uma das grandes conquistas britânicas no século 20. Ele é a instituição mais admirada no país, junto da monarquia e do Exército.
O apreço, porém, não significa que o atendimento esteja livre de críticas. No último ano, aumentou o número de reclamações sobre a demora para marcar consultas ou para ser atendido num hospital. Em abril, a quantidade de pacientes que esperam mais de 18 semanas (limite considerado aceitável) para receber tratamento especializado chegou a 500?000, a maior em dez anos. O problema tem duas explicações.
Uma é o aumento da procura por serviços de saúde. A quantidade de internações, por exemplo, subiu 28% em uma década. A segunda é uma questão financeira. Pressionado para reduzir o déficit fiscal, o governo britânico impôs limites ao reajuste de salários e ao aumento do orçamento do NHS. Em meio às restrições nos gastos, o sistema de saúde procurou formas de usar os recursos com mais eficiência. Um programa pioneiro chamado RightCare é uma das medidas de maior sucesso. Criado em 2010, o programa avaliou cada uma das 207 divisões regionais do NHS procurando os lugares em que o tratamento de doenças — como asma, diabetes e certos tipos de câncer — era deficiente.
O objetivo era entender por que regiões com a mesma demografia e a mesma incidência de doenças conseguiam ter resultados melhores do que as outras. Daí por diante, os locais mais atrasados foram incentivados a adotar os mesmos procedimentos daqueles mais bem avaliados. A medida é importante porque, antes, era comum um paciente deixar de receber o tratamento mais recomendado na hora certa, levando a complicações no futuro — e ao uso de terapias e remédios mais caros. “Quando a prevenção falha, as pessoas adoecem mais tarde, e isso leva ao uso excessivo de tratamentos que não seriam necessários. Essa é uma das maiores causas, senão a maior, do desequilíbrio no sistema de saúde”, diz Matthew Cripps, diretor financeiro do NHS da Inglaterra e responsável pelo programa.
Apenas com pequenos ajustes na forma de tratar os pacientes, o NHS economizou no ano passado 610 milhões de libras (3,1 bilhões de reais), valor que ficou acima da meta de 490 milhões de libras. Hoje, o programa é uma das maiores iniciativas para tornar o sistema de saúde financeiramente mais sustentável. Medidas como essa são essenciais para o NHS reduzir a fila dos atendimentos e continuar a ser um símbolo de orgulho para os britânicos nos próximos 70 anos.
AS APOSTAS NA LONGEVIDADE
Elas são uma nova obsessão dos investidores no mundo todo e têm objetivos que vão de até, quem sabe, atingir a eternidade
O pai do biólogo americano Nathaniel David começou a sofrer os sintomas de osteoartrite na coluna cervical quando ainda era adolescente. Hoje, aos 78 anos, sua postura é curvada e ele não consegue mais se mover. David, de 50 anos, descobriu há três anos que herdou a doença degenerativa do pai e está numa corrida contra o tempo para não ter o mesmo destino. Em maio, o biólogo molecular com doutorado pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, conseguiu captar 85 milhões de dólares para desenvolver tratamentos que devem ajudar os 31 milhões de pessoas que já sofrem com a doença no país. O dinheiro veio de uma oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) de sua startup Unity Biotechnology na bolsa americana Nasdaq. Sediada em São Francisco, no coração do Vale do Silício, a Unity está desenvolvendo medicamentos para prevenir, retardar ou até mesmo reverter doenças relacionadas à idade — e, de quebra, expandir a expectativa da vida humana. Em 2016, a empresa já havia chamado a atenção ao receber 116 milhões de dólares de investidores, entre eles Jeff Bezos, fundador do gigante de comércio eletrônico Amazon, e Peter Thiel, um dos criadores da empresa de pagamentos PayPal. “Imagine ficar velho sem ficar velho”, disse David recentemente em Paris, na França, num evento de startups cujas tecnologias prometem mudar o mundo. Em junho, a empresa realizou o primeiro teste clínico de uma de suas drogas — justamente a de osteoartrite — em uma pessoa.
A Unity Biotechnology é uma das muitas startups que apostam na ampliação da longevidade. Se por muito tempo esse setor foi sinônimo de cremes de beleza e Botox, hoje ambiciosas startups espalhadas por Estados Unidos, Europa e Ásia têm objetivos que vão desde acabar com doenças que impedem o envelhecimento saudável até expandir a vida humana em 20 anos, 50 anos ou, quem sabe, até a eternidade. Com seu IPO, a Unity tornou-se a segunda startup de longevidade listada na bolsa. Em janeiro, a Restorbio, que também desenvolve remédios para doenças relacionadas ao envelhecimento, levantou 98 milhões de dólares em sua oferta pública de ações. “Há muita expectativa sobre o potencial de melhora da saúde tratando doenças degenerativas. Nosso foco é aplicar a ciência para ajudar as pessoas a viver com mais saúde e por mais tempo”, afirma o israelense Chen Schor, cofundador e presidente da Restorbio. Se antes os estudos sobre o tema estavam confinados em laboratórios de universidades, eles ganharam impulso com a indústria da tecnologia. “Sempre houve investidores habilidosos e confortáveis com alto risco e alto retorno, mas as pesquisas que tratavam de longevidade não se enquadravam nessa categoria. Com os avanços recentes, as empresas que lidam com o prolongamento da vida agora estão dentro de uma faixa de risco que permite investimentos”, afirma Aubrey De Grey, um dos maiores pesquisadores sobre envelhecimento e diretor da ONG dedicada à longevidade Sens Research Foundation.
O valor dos investimentos em startups de biotecnologia especializadas em saúde humana chegou a 9 bilhões de dólares em 2017. Apenas nos dois primeiros meses deste ano, outros 2,8 bilhões foram captados por empresas novatas. Uma das maiores aceleradoras do mundo, a Y Combinator anunciou no início do ano que está à procura de startups de longevidade que estejam em fase inicial para fazer aportes que podem variar de 500?000 a 1 milhão de dólares. A ONG Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos também lançou uma premiação para pesquisas sobre longevidade que totaliza 100 milhões de dólares. À medida que a oferta de dinheiro se espalha pelo setor, a morte é tratada cada vez menos como um processo biológico natural e mais como um cadeado com um segredo. Para descobrir a solução, portanto, seria preciso encontrar uma combinação de milhões — talvez, bilhões — de possibilidades. “Creio que o corpo perde a resiliência com a idade, perde a capacidade de responder aos desafios. Precisamos descobrir por que isso acontece e parar esse processo. O envelhecimento é algo codificado e, se algo está codificado, é possível descobrir seu segredo”, afirma o médico sul-coreano Joon Yun, que comanda o Palo Alto Investors, fundo americano de investimentos de 1 bilhão de dólares, que doou 2 milhões de dólares ao prêmio da Academia Nacional de Medicina, além de lançar seu próprio prêmio na área no valor de 1 milhão de dólares.
Antes mesmo de se tornarem desejadas pelo mercado financeiro, as startups da longevidade contaram com o dinheiro — e o interesse pessoal — dos bilionários do Vale do Silício nos últimos anos. Em 2013, Sergey Brin e Larry Page, os fundadores da empresa de tecnologia Google, foram precursores na área ao criar a Calico, empresa de pesquisa em longevidade. Os dois esperam, entre outras coisas, ajudar o próprio Brin — que tem uma variante genética que o predispõe à doença de -Parkinson. O fundador da empresa de softwares Oracle, Larry Ellison, gastou 430 milhões de dólares em pesquisas de longevidade depois de afirmar que “a morte nunca fez nenhum sentido para mim”. Peter Thiel, do PayPal, já declarou que espera algum dia poder “curar a morte”, e é constantemente associado ao boato de que faz transfusões sanguíneas com sangue de adolescentes para ficar mais jovem — uma espécie de drácula do século 21. A ideia pode parecer maluca, mas nada é demais para o Vale do Silício. Fundada em 2016, a startup Ambrosia Plasma faz transfusões com sangue de adolescentes para clientes com 35 anos ou mais por um preço inicial de 8?000 dólares e afirma ter 150 clientes. Ninguém supera Jeff Bezos quando o assunto é saúde — sobretudo a dele. Um magrelo desengonçado no fim dos anos 90, época de criação da Amazon, Bezos, hoje com 53 anos, vem chamando a atenção por seus músculos avantajados. A aparência, segundo ele, é fruto de uma rotina de exercícios desde 2013. Mas o bilionário tem investido tempo e dinheiro no tema saúde. Em 2014, colocou 25 milhões de dólares em uma companhia dedicada ao combate ao câncer, a Juno Therapeutics. No ano passado, fez um aporte de valor não revelado na startup Grail, especializada no diagnóstico rápido de câncer. No início deste ano, Bezos anunciou uma parceria com o megainvestidor Warren Buffett, presidente do conglomerado Berkshire Hathaway, e o banqueiro Jamie Dimon, presidente do banco JP Morgan Chase. O objetivo do trio é criar uma empresa sem fins lucrativos que ofereça serviços de saúde acessíveis aos trabalhadores de suas empresas. O último negócio veio no final de junho: a Amazon anunciou a aquisição da loja digital de remédios PillPack, em um negócio avaliado em 1 bilhão de dólares.
Em busca da fonte da juventude
As startups de longevidade de certa forma se beneficiam de décadas de estudos que, no início dos anos 90, chegaram a um ponto decisivo: num verme minúsculo chamado Caenorhabditis elegans, verificou-se que uma única mutação genética podia prolongar sua vida, enquanto outra impedia que isso ocorresse. A descoberta de que a longevidade poderia ser manipulada com algumas modificações genéticas impulsionou novas pesquisas ao redor do mundo para aumentar a vida do verme (que chegou a ser multiplicada por dez em laboratórios) e posteriormente a de ratos (que chegaram a viver o dobro). Os desenvolvimentos seguintes mostraram que as coisas não são tão simples assim e que não existe um gene humano único ligado à expansão da vida. Por isso, há startups trabalhando em diversas frentes para resolver a equação da longevidade. A americana Insilico Medicine, de Baltimore, usa a inteligência artificial para analisar gigantescas bases de dados com o objetivo de identificar os fatores moleculares que influenciam o tempo de vida. “Há dois anos eu precisava bater de porta em porta para explicar o que a companhia fazia. Agora, os investidores vêm nos procurar, principalmente por causa de nossa plataforma de inteligência artificial, e descobrem quanto isso é importante para as pesquisas de longevidade”, afirma Alex Zhavoronkov, presidente da Insilico Medicine.
Apesar do crescente número de startups nesse mercado, poucas já chegaram ao ponto de oferecer produtos à população em geral. A startup nova-iorquina Elysium Health é uma das exceções. Seu primeiro produto, um suplemento chamado Basis, é vendido pelo site por 60 dólares (custo da dose mensal) e promete aumentar e sustentar os níveis de NDA no corpo. A NDA é uma coenzima necessária para processos biológicos essenciais, incluindo a criação de energia e a regulação dos ritmos cardíacos. Geralmente, os níveis de NDA começam a cair a partir do fim da segunda década da vida humana. “Acreditamos que a pesquisa tem de andar junto com o desenvolvimento de produtos que vão beneficiar a população. Não dá para fazer só um ou outro”, afirma o americano Eric Marcotulli, presidente e cofundador da Elysium e ex-sócio do Sequoia Capital, um fundo que administra 14 bilhões de dólares. A startup já recebeu 31 milhões de dólares em aportes desde sua fundação, há dois anos, e está realizando uma nova rodada de investimentos. No Brasil, o número de startups de saúde passa de 260, mas muitas estão focadas em desenvolver soluções para facilitar a vida de idosos. São produtos como, por exemplo, o da startup MaturiJobs, que criou um site para oferecer vagas de emprego a pessoas com mais de 60 anos.
Embora a indústria da longevidade esteja em franca expansão, ainda é difícil estimar quanto essas -startups podem valer no futuro. O mercado de produtos e tratamentos estéticos relacionados ao envelhecimento devem alcançar 288 bilhões de dólares no mundo neste ano, segundo a empresa de pesquisas Orbis. Mais do que cremes para rugas, investidores e consumidores querem soluções para doenças relacionadas ao envelhecimento. “Tenho certeza de que esse mercado se tornará maior do que qualquer outro que já vimos. Todos querem viver mais e de forma mais saudável”, diz o investidor britânico Jim Mellon, que há cerca de sete meses abriu um fundo especializado em longevidade, o Juvenescence, e espera investir os 63 milhões de dólares captados ainda em 2018. A evolução, no entanto, ainda é difícil de prever. “É um mercado diferente dos outros. Não é como a indústria da tecnologia, que apresenta resultados rapidamente e causa uma disrupção do dia para a noite. Ainda há muita pesquisa a ser feita”, afirma a americana Alexandra Bause, sócia do fundo de investimentos em longevidade Apollo Ventures, da Alemanha. Mesmo que se encontre a cura para as doenças relacionadas ao envelhecimento, como o câncer, as pesquisas mostram que isso elevaria a média de vida humana para algo em torno de 90 anos (ante a atual expectativa de 71,4 anos, na média mundial). Enquanto as startups de longevidade procuram o caminho para que possam viver (muito) mais e melhor, a receita para envelhecer bem continua a indicada pelos médicos: dieta saudável, exercícios físicos, pouco estresse e, de vez em quando, uma taça de vinho.
VELHOS E FORTES
Para enfrentar os desafios do envelhecimento da população, o Japão procura um mercado de trabalho com mais idosos e mais equidade
Localizada em Sumida, na região metropolitana de Tóquio, a Hamano Products, pequena indústria de metalmecânica, parece uma janela para o futuro. Uma de suas principais apostas é uma parceria para desenvolver uma turbina eólica com um novo design, atualmente em fase de testes. A empresa acredita que seu modelo é à prova de tufão, sonha com uma fatia do mercado japonês e, quem sabe, do mundial. Mas, independentemente do que venha a ocorrer com a turbina, a Hamano já é uma empresa, digamos assim, à frente de seu tempo. Quase 20% de sua mão de obra tem mais de 50 anos de idade. Em 2011, a procura por um novo operador para uma das máquinas de estampagem de metal de sua linha acabou quando encontraram Noboru Saito, na época com 69 anos. No 1o andar da fábrica da Hamano, onde um aspirador à disposição deixa claro que nem a poeira é permitida ali, Saito faz suas tarefas e serve de consultor para os colegas mais novos. Ainda disposto e forte aos 76 anos, Saito não tem a menor ideia de quando vai se aposentar.
O Japão está na vanguarda da onda do cabelo branco. A expectativa de vida, de 83,7 anos, é a maior do mundo. “Os japoneses estão vivendo mais graças a fatores como um sistema de saúde universal, eficiente e relativamente acessível”, diz Andrew Gordon, professor de história do Japão na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. A permanência de pessoas mais velhas no mercado de trabalho também tem relação com a contínua queda da taxa de natalidade. No final dos anos 70, nasciam cerca de 2 milhões de crianças japonesas por ano. Em 2016, o número de nascimentos caiu para menos de 1 milhão pela primeira vez em décadas, e a previsão é que a queda continue. Líder em longevidade e, ao mesmo tempo, integrante do pelotão dos países de baixa natalidade, o Japão fica devendo no cálculo da demografia.
A população japonesa está encolhendo desde o começo desta década, quando atingiu o pico de 128 milhões. Pelas estimativas do Instituto Nacional de Pesquisa da População e de Seguridade Social do Japão, os japoneses serão 88 milhões em 2065. Sabendo que há um limite para o uso de expressões do tipo “os 80 anos são os novos 70, os 70 anos são os novos 60 e os 60 são os novos 50”, muitos especialistas apontam a necessidade de o Japão recorrer à imigração. Mas essa parece ser uma opção politicamente inaceitável num país onde a unidade étnica é vista como uma virtude. O influxo anual de imigrantes está na casa dos 50 000 e inclui estudantes e trabalhadores temporários. Para recuperar a população já perdida e estabilizar o encolhimento, o país precisaria atrair imigrantes permanentes e o fluxo teria de ser quase dez vezes maior.
O envelhecimento visto no Japão é uma prévia do que está por vir, em menor ou maior medida, em várias partes do mundo. A população mundial está ficando velha. Em 2015, apenas uma pessoa tinha 60 anos ou mais em cada grupo de oito. Na metade deste século, a proporção chegará a uma para cinco, segundo prevê a Organização das Nações Unidas. Em 2030, o mundo terá mais idosos do que crianças de até 9 anos. O quadro é atualmente mais agudo em países ricos — além do Japão, Itália, Alemanha, Finlândia e Portugal enfrentam essa questão. Mas esse fenômeno será sentido também em países em desenvolvimento. “Em termos demográficos, o Japão hoje é parecido com o que o Brasil será daqui a algumas décadas”, diz o médico brasileiro Alexandre Kalache, presidente da Aliança Global de Centros Internacionais da Longevidade, uma rede de estudos. A fatia de pessoas com 60 anos ou mais na população brasileira deverá sair dos atuais 13% para 29% em 2050 pelos cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Nem todos os países que estão ficando mais velhos vão ver o encolhimento da população. Para que isso ocorra é preciso que o número de nascimentos e a imigração caiam a um nível inferior ao de mortes. As Nações Unidas estimam que nas próximas três décadas esse vai ser o caso de 51 países, entre os quais Bulgária, Croácia, Polônia e Ucrânia. No Brasil, o encolhimento vai demorar um pouco mais para ocorrer. A população brasileira deve continuar crescendo até 2050, alcançando 232 milhões. Olhando mais para a frente é que o número começa a cair e pode chegar a 190 milhões no final do século.
Numa escala global, o envelhecimento é resultado da vitória da civilização. É um claro sinal de mais acesso à educação, a oportunidades de emprego e a serviços de saúde muito mais tecnológicos e eficientes do que nossos pais e avós tiveram. Ao mesmo tempo, também é verdade que a conquista da longevidade traz novos desafios. Que o diga o Japão. A proporção de japoneses em idade de trabalho em relação à dos que são dependentes está caindo, o que significa menos gente para pagar as contas de aposentadorias e serviços de saúde e fazer a economia crescer. Em conversas no banco central do Japão, economistas não escondem a preocupação. Analistas do setor privado concordam. “Olhando para a frente, o envelhecimento da população é o maior desafio econômico do Japão”, diz Takahiro Sekido, estrategista em Tóquio do banco japonês MUFG, parte do Mitsubishi UFJ Financial Group, um dos mais importantes grupos do setor financeiro no país.
Como demografia é destino, no sentido de que as tendências não são revertidas rapidamente, a opção é acionar as forças atualmente subutilizadas. Uma delas é o grupo dos idosos. O país precisa de mais velhinhos que trabalhem, como Saito, o operário da foto ao lado. No Japão, a aposentadoria é aos 65 anos de idade, mas existe a percepção dentro do governo de que será necessário aumentá-la. Quase 30% dos homens com 65 ou mais anos continuam trabalhando. Na Alemanha, o percentual é de 8%; e na França, de 3%. Como ressalta Yukihiro Matsuyama, diretor de pesquisa no Canon Institute for Global Studies, um centro de pesquisa com sede em Tóquio, o problema é que nem todo mundo concorda com as mudanças. “Quando se vive na ‘democracia do cabelo branco’, com muitos eleitores idosos, os políticos relutam em alterar certos benefícios”, diz Matsuyama.
Às margens do Rio Katsura, que corta a cidade de Kyoto, a 3 horas e meia de trem de Tóquio, Katsuhito Matsumi faz uma pausa no trabalho de remoção de pedras com uma retroescavadeira e conta que contribui para a previdência pública e também para um fundo privado. Aos 53 anos, dono de uma microempresa de construção com apenas quatro empregados, Matsumi diz que já fez as contas. Os dois fundos só vão gerar uma renda que ele considera satisfatória se continuar trabalhando até os 80 anos. Matsumi não pretende parar até lá, mas se pergunta se terá saúde para continuar fazendo o trabalho pesado de molduras de madeira para concreto, sua especialidade. “Se o governo aumentar a idade mínima da aposentadoria e eu não tiver força física para trabalhar, vou me sentir como se estivesse sendo morto”, diz Matsumi.
Womenomics
Ainda que o governo consiga levar situações como a de Matsumi em conta, vença as resistências a mudanças e passe uma lei com uma nova idade mínima, o problema da falta de braços não estará resolvido. Outra meta igualmente importante é elevar a presença das mulheres no mercado de trabalho. Atingindo os dois objetivos, a situação muda de cara. “Se a participação de mulheres de 31 a 40 anos e de homens de 61 a 70 subir no mercado de 10 a 15 pontos percentuais, o tamanho da força de trabalho deverá se estabilizar até 2030”, disse recentemente numa palestra nos Estados Unidos Atsushi Seike, professor de economia do trabalho e ex-presidente da Universidade Keiko.
A executiva Mika Matsuo chefia o setor de recursos humanos da AIG, multinacional americana do setor de seguros, no Japão e na Coreia do Sul, à frente de uma equipe de 80 funcionários. Depois de terminar a pós-graduação em administração nos Estados Unidos nos anos 80, ela voltou para o Japão. Quando casou, combinou com o marido que não deixaria de investir na carreira mesmo após o nascimento do filho. Trabalhou por mais de uma década no Citibank, foi para o JP?-Morgan Chase, outro banco americano, passou pela agência de avaliação de risco Moody’s e pelo banco Tokyo Star — a maior parte do tempo em cargos do alto escalão. Um dos problemas do Japão é que trajetórias como a de Mika são raríssimas. As mulheres são metade da população, mas ocupam menos de 20% dos cargos da gerência para cima. O índice é baixo em comparação ao de Estados Unidos, boa parte da Europa e também do Brasil — todos acima de 35%. As japonesas também são sub-representadas nos chamados “empregos para toda vida” das grandes corporações e acabam tendo uma fatia desproporcionalmente grande dos empregos mal pagos de meio turno. No quesito igualdade de pagamento para homens e mulheres com a mesma posição, o Japão fica na posição número 52 no mundo, de acordo com o mais recente relatório sobre as distâncias entre gêneros do Fórum Econômico Mundial, com sede na Suíça. É melhor do que o Brasil, na 114a posição, mas ainda assim é um papelão em comparação com outros países ricos. “Por causa do problema do envelhecimento, o governo tem tentado mudar essa situação”, afirma Mika.
Em 2015, o primeiro-ministro Shinzo Abe lançou a ideia de “ativar” a participação das mulheres. O objetivo de Abe era incentivar a entrada feminina no mercado de trabalho e sua ascensão profissional. Pela nova lei aprovada no Parlamento naquele mesmo ano, as empresas com mais de 300 empregados passaram a ter a obrigação de analisar sua situação em áreas como número de mulheres recrutadas, fatia feminina nos cargos de gerência e número de horas trabalhadas por todos os funcionários. Para pelo menos uma das áreas, as empresas tiveram de traçar uma meta. Parte delas escolheu a redução da carga horária. Fazia todo o sentido. “Uma das razões que explicam o baixo número de gerentes mulheres é a cultura de jornadas longas”, diz Makiko Tachimori, presidente da Harmony Jinzai, empresa de procura de executivas com sede em Tóquio.
Quando o assunto é hora extra, os japoneses são um páreo duro. De acordo com a economista Yoko Tanaka, professora de estudos japoneses na Universidade de Tsukuba, que faz pesquisas por amostras mais detalhadas do que as conduzidas pelo governo, a média de horas trabalhadas por semana está em 53, impossível para mulheres com filhos que não contam com a ajuda do marido, situação que é quase uma regra no Japão. De um grupo de sete países ricos, que inclui Japão, Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Suécia e Noruega, os japoneses são os pais de filhos pequenos que menos ajudam a mulher nas tarefas domésticas e nos cuidados com a criança — em média, 1 hora e meia por dia. Os franceses, os mais próximos, ajudam o dobro do tempo. Num país onde impera a hora extra, o papel destinado ao homem é trabalhar e se desconectar das coisas da casa.
Como às vezes ocorre, as regras mudam, mas a cultura é mais forte. Uma das novas palavras surgidas depois de começarem as tentativas de reduzir as horas extras foi furarimen. É a fusão de duas outras expressões. Furari frurari, que significa “caminhar de forma trôpega”, e sararimen, uma corruptela do inglês salary men, que no Japão é sinônimo de “homens provedores que trabalham longas horas”. Embaladas pela nova lei, empresas começaram a apagar as luzes e a expulsar os funcionários dos escritórios. Mas boa parte deles, em vez de ir para casa dividir com a mulher os afazeres domésticos, passou a encher os bares ou a tomar bebidas alcoólicas em parques. Com os sararimen caminhando de forma meio furari frurari ao sair de bares e parques, não demorou a surgir a nova palavra. Há ainda outro fenômeno chamado –mochikaeri-zangyo. São funcionários de empresas que reduziram as horas, mas não a carga de trabalho. Esses acabam enchendo os cafés ou vão para casa trabalhar.
Mesmo com todos os percalços, a reforma de Abe costuma ser elogiada por grupos de feministas. Eles argumentam que os papéis de homens e mulheres não mudam de uma hora para a outra. E dizem que algumas transformações começam a ser sentidas. Em março, a Toyota anunciou Teiko Kudo, alta executiva do Sumitomo Mitsui Banking Corp, uma instituição financeira, como a primeira mulher a ter lugar em seu conselho de administração. O número de funcionários públicos que passaram a fazer uso da licença-paternidade também está subindo. De quase nada chegou a 10% no ano passado. É uma vitória dos ikumen, neologismo criado para descrever uma nova geração de homens que se envolvem ativamente na criação dos filhos. A esperança é que um maior apoio dos homens torne a maternidade menos assustadora e ajude as mães a não abandonar a carreira profissional.
A resposta sobre se o Japão conseguirá enfrentar os desafios do envelhecimento e o encolhimento da população vai depender de vários embates na sociedade. Um deles é entre idosos como o operário de 76 anos, ainda na ativa na fábrica em Tóquio, e profissionais como o dono da pequena construtora em Kyoto, contrário à mudança da idade mínima para aposentadoria. Há também a disputa entre mulheres e chefes machistas, que pagam mais a homens no mesmo cargo. E, sim, existe ainda o embate entre os pais ativos na criação dos filhos e os trôpegos alcoolizados. Pelo ganho possível, todas são batalhas que vale a pena enfrentar.
O CAMINHO DA HOLANDA
O país, que sempre foi conhecido pelas bicicletas que lotam as ruas, um símbolo da qualidade de vida, agora ostenta um título ainda mais importante
A enfermeira Marjolijn Onvlee, de 52 anos, começa sua jornada de trabalho diária às 8 da manhã num escritório com um grupo de dez enfermeiros na Rua Vrolikstraat, na zona leste de Amsterdã. No computador, estão todas as fichas com o histórico de saúde dos sete pacientes que ela vai visitar naquele 8 de março, uma quinta-feira de sol fraco e temperatura baixa na metrópole holandesa. Marjolijn é enfermeira da Buurtzorg, um dos negócios criados na Holanda para prestar serviços de enfermagem em domicílio a idosos, pessoas com dificuldade de locomoção, em recuperação de uma cirurgia ou com algum vício, como álcool e drogas. Criada em 2007, a Buurtzorg tem 850 grupos de enfermeiros, agregando 10.000 profissionais que atendem 70.000 pacientes. Logo que chega, Marjolijn atualiza os prontuários, discute os casos com os colegas. Traça metas a ser alcançadas nos tratamentos e analisa o que já foi conquistado, visando à melhoria da saúde ou da qualidade de vida dos pacientes. “Organizamos tudo antes do atendimento domiciliar, quando orientamos a família sobre o cuidado com o paciente, garantimos que ele siga o tratamento e simplesmente fazemos companhia quando precisa”, diz ela.
EXAME pôde acompanhar uma dessas visitas. Às 3?da tarde, a enfermeira pegou sua bicicleta rumo à residência do último paciente do dia — com esta repórter na garupa. Não demorou nem 10 minutos e ela estava na casa de Martijn de Zeeuw, um diretor de escola aposentado, de 86 anos, que vive sozinho num apartamento de um quarto em frente ao Oosterpark, prImeiro grande parque público municipal, aberto em 1891. Diabético, o paciente não consegue mais aplicar a insulina sozinho devido a um problema nas pernas que lhe dificulta a mobilidade e a capacidade de dar conta dos afazeres domésticos. “Os enfermeiros me ajudam a vestir a roupa, tomar a medicação e sempre me lembram de não comer chocolate. Não que eu já não saiba”, diz Zeeuw, em tom de brincadeira. “Mas é sempre bom ter al-guém que se preocupa com minha saúde todos os dias.”
Depois de meia hora na casa do paciente, Marjolijn pega novamente a bicicleta e pedala mais 15 minutos pela vizinhança até chegar à clínica onde está Susan de Korte, de 48 anos, a médica de Zeeuw. Não é todo dia que a enfermeira vai até o consultório, mas ela sempre tem em mãos os telefones dos especialistas que acompanham seus pacientes. Ali, elas conversam sobre a saúde de Zeeuw e discutem se é preciso mudar a medicação, algo que só pode ser feito com autorização médica. Nessa clínica, Susan atende cerca de 30 pacientes por dia em consultas que geralmente são rápidas, mas que podem demorar mais tempo se for preciso fazer algum procedimento médico de menor complexidade. Sempre há um espaço na agenda para quem precisa ser atendido no mesmo dia. Além disso, Susan ainda tem tempo para visitar pacientes em casa. “Todas as pessoas que atendo precisam estar próximas da clínica numa distância que permita o deslocamento em 15 minutos para os casos de emergência”, diz Susan.
Saindo do consultório, Marjolijn vai para casa, finalizando mais um dia de trabalho. Sua rotina, no entanto, deixa exemplos de como funciona o sistema de saúde da Holanda, que tem ganhado destaque. O país, que sempre é lembrado pelas bicicletas que lotam as ruas de suas cidades, um símbolo da qualidade de vida da população, ostenta o título de provedor do melhor sistema de saúde europeu. Nos últimos sete anos, a Holanda se manteve no topo do ranking da Health Consumer Powerhouse, organização sueca que funciona como um observatório do consumidor para serviços de saúde. O ranking, iniciado em 2005, analisa 35 países e considera 46 indicadores em seis grupos: os direitos dos pacientes, o acesso aos serviços, os resultados dos trata-mentos, a quantidade de serviços, o incentivo à prevenção e o uso de medicamentos. Na pontuação, que vai até 1 000, a Holanda alcançou 924 na edição deste ano. Os poucos pontos perdidos se devem a poucos números baixos (para o padrão europeu) de alguns indicadores, como demora de 300 dias para um novo medicamento entrar no sistema de subsídio do governo — ou seja, para um lançamento chegar a um preço acessível à população.
O que destaca o sistema holandês — e o senhor Zeeuw diz concordar — é a atenção especial ao cuidado primário, para controlar as doenças crônicas e evitar a hospitalização. O objetivo tem sido alcançado com uma rede de quase 14?000 médicos de família, o equivalente a 0,8 para cada 1000 habitantes, que estão próximos da casa dos pacientes e sempre têm horário disponível, pessoalmente ou por telefone. É como o programa de saúde de família do sistema único brasileiro, que tem médicos em postos nas periferias, mas com um adendo: só vai a um hospital holandês para exames, cirurgias ou consultas com um especialista quem tiver uma carta de recomendação do médico de família ou sofreu um acidente. Os hospitais não estão de portas abertas a quem desejar. Na Holanda, os médicos de família são capazes de resolver 96% dos casos. E quem precisa de serviço hospitalar é atendido rapidamente: a espera para uma cirurgia eletiva, aquela que pode levar mais tempo para ocorrer, é de menos de um mês, em média, para algumas doenças. “A rede de médicos de família torna o acesso ao sistema fácil e o relacionamento com o paciente mais pessoal”, diz Nick Guldemond, professor no Instituto de Política de Saúde e Gestão da Universidade Erasmus, em Roterdã.
Reforma
Contribui para o desempenho do sistema holandês uma reforma feita há mais de uma década. Até 2006, os dois terços de cidadãos de menor renda dispunham de um seguro social de saúde, bancado e gerido pelo governo federal, que tinha uma rede oficial de hospitais e clínicas para o atendimento (alguns ainda se mantêm). Os demais 35% da população eram obrigados a contratar um seguro privado, num mercado pouco regulado. A divisão antiga lembra o esquema brasileiro, com uma massa de pessoas recorrendo ao Sistema Único de Saúde e os demais aos planos privados. O governo holandês decidiu mudar o modelo devido à escalada dos custos, ao difícil acesso aos serviços e à baixa qualidade do atendimento. Desde 2006, todo cidadão é obrigado a comprar um plano de saúde administrado por uma seguradora, a qual pode prestar os serviços ou contratar hospitais, clínicas e médicos que o façam. Para menores de 18 anos e pessoas de baixa renda, a contratação do plano é subsidiada. De resto, o papel do governo ficou restrito a determinar as políticas públicas e regular o mercado. “O principal mérito holandês foi remover os políticos das decisões operacionais do dia a dia”, diz Arne Bjornberg, presidente executivo da Health Consumer Powerhouse.
O sistema holandês é altamente competitivo. Segundo as regras, as seguradoras não podem recusar nenhum cliente, nem que seja de um grupo de risco elevado. Por isso, o governo, as empresas e os cidadãos de maior renda contribuem com impostos que formam um fundo para bancar as perdas das seguradoras com pacientes que demandam mais cuidados e acabam gerando mais custos. Um dos reflexos desse sistema é que ele, ao final, dá mais poder de escolha aos próprios pacientes. Eles decidem o seguro, o médico de família e o hospital que os atenderão, de acordo com a cobertura em sua região. No total, 24 empresas oferecem seguros e, a cada ano, 7% dos cidadãos decidem trocar de provedor, devido aos preços ou à qualidade do atendimento. Além disso, a participação dos cidadãos se dá de outra forma: existem 300 associações de pacientes, que são chamadas a votar nas tomadas de decisão de políticas públicas e na regulamentação do setor. “A reforma foi minuciosamente planejada para que um sistema de concorrência funcione”, diz Francesca Colombo, diretora da divisão de Saúde da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne as nações mais ricas. “Certamente é um bom exemplo prático para países com sistemas similares.”
Há uma corrida das seguradoras na Holanda para oferecer os melhores preços e, portanto, elas buscam reduzir os custos. Na prática, isso acontece quando as seguradoras pagam os hospitais e as clínicas de sua rede com base num preço de referência para tratamento, exame ou cirurgia realizados. Isso significa que o hospital ou a clínica vão receber um valor predeterminado e, se conseguirem gastar menos, sobrará mais ao final do mês como lucro. No médio prazo, isso tende a fazer o preço de referência dos serviços cair, beneficiando todo o sistema. Outra forma de reduzir os custos é a seguradora contratar empresas que acompanham de perto os pacientes, como o que ocorre com a Buurtzorg, da enfermeira Marjolijn. As seguradoras também financiam organizações que visam trazer mais eficiência e melhor atendimento ao sistema.
No Centro Médico da Universidade Radboud, em Nijmegen, uma cidade universitária do leste da Holanda, próxima à fronteira com a Alemanha, as seguradoras investem numa organização chamada ParkinsonNet. Ela é voltada para os pacientes com a doença de Parkinson, cujo número deve alcançar 100?000 no país até 2020. A organização oferece uma formação a especialistas que tratam da doença, os quais podem pagar uma taxa para se tornar membros. Ela ainda lança procedimentos-padrão de tratamento, baseando-se em evidências de pesquisas sobre a doença. Até agora, já foram treinados 3?000 profissionais de 12 especialidades. Além disso, uma rede social foi montada para que o paciente possa encontrar o médico desejado. Criada em 2004, a ParkinsonNet já foi capaz de reduzir à metade o número de acidentes com fratura nos quadris das pessoas com a doença de Parkinson, diminuindo a hospitalização. “A economia por paciente é de 439 dólares por ano, bem maior do que o custo para manter a rede. É por isso que as seguradoras continuam nos financiando”, diz Lonneke Rompen, responsável pela área internacional da ParkinsonNet, que replica o modelo na rede californiana Kaiser Permanente.
Uma parte do sucesso de uma organização como a ParkinsonNet está na tecnologia. O Centro Médico da Universidade Radboud tem sido apontado como um dos mais digitalizados da Holanda. Na ala leste há uma equipe de dez pesquisadores e especialistas em políticas públicas que trabalham exclusivamente para implementar novas tecnologias que possam ser usadas pelos funcionários e pelos pacientes. Alguns médicos e enfermeiros do hospital passam por lá uma vez por semana para contribuir para os programas de pesquisa. O ambiente, parecido com o de uma startup, tem impressoras 3D para reproduzir partes do corpo ou tumores, por exemplo. O departamento desenvolveu o Facetalk, ferramenta que permite fazer consultas médicas por chamadas de vídeo num ambiente amplamente seguro — os holandeses culturalmente prezam bastante a privacidade e a segurança da informação. Também saíram dali dispositivos para medir o nível de estresse dos médicos com base nos batimentos cardíacos ou para medir a pressão do paciente e obter resultados melhores nos tratamentos.
No final do dia, os holandeses têm conseguido controlar melhor os custos do sistema de saúde. Os gastos estão crescendo num ritmo menor do que o registrado antes da reforma de 2006. Há cinco anos, as despesas com saúde estão no patamar de 10% do produto interno bruto. Se nada fosse feito, os holandeses estimam que em 2040 estariam em 30% do PIB. O sistema do país costumava ser o quarto mais caro da Europa, atrás de Luxemburgo, Noruega e Suíça. Nos anos recentes, no entanto, foi ultrapassado pela Suécia e pela Alemanha. O governo tem uma ação efetiva no controle dos custos: é ele que determina quais tratamentos vão ser incluídos nos seguros de saúde, uma cobertura bastante ampla, e ainda fixa um preço máximo para os medicamentos, com base nos valores de referência coletados na Bélgica, na França, na Alemanha e no Reino Unido. Antes dessa regra, os preços dos remédios eram, em média, 20% mais caros do que nos países vizinhos, mas agora foram equalizados. Além disso, o Ministério de Assuntos Econômicos e Clima determinou que a saúde é um dos nove setores prioritários do país, escolhidos conforme sua capacidade de contribuir para o avanço da sociedade holandesa. Para isso, foi criada uma fundação chamada Health-Holland, que realiza parcerias público-privadas, juntando empresas, governo, pacientes e universidades para financiar e executar pesquisas na área. A ideia é promover uma inovação que melhore a saúde das pessoas, mantendo a própria economia holandesa saudável. A indústria de saúde, a academia e o governo trabalham juntos na organização. “Nós inovamos em conjunto com empresas farmacêuticas e de tecnologia, baseados na preferência dos pacientes e mantendo o sistema de saúde viável”, diz Nico van Meeteren, presidente executivo da Health-Holland.
É claro que o sistema holandês tem seus pontos frágeis. Numa conversa com brasileiros e holandeses que moram no país, é normal ouvir que o médico de família tende a não dar muita atenção a problemas de saúde menores, deixando muitas vezes o caso piorar para só então remeter o paciente a um hospital. Os médicos de família reclamam que estão sobrecarregados, com uma quantidade de consultas que precisa ser reduzida para que possam dar mais atenção aos pacientes. Especialistas, por sua vez, dizem que falta às seguradoras exigir mais qualidade dos prestadores de serviço. Reclamações à parte, até agora os holandeses conseguiram dar mais acesso à saúde para a população, com mais atenção ao cuidado básico, menos hospitalização e mais equilíbrio dos custos. No caminho rumo a um sistema mais saudável, os holandeses ainda não resolveram todos os problemas. Mas a receita holandesa está trazendo resultados.
O DESAFIO DOS CUSTOS CONTINUA
O médico holandês Nick Guldemond, uma das maiores autoridades em saúde da Europa, diz que o sistema de seu país está equilibrado, mas sofre com a pressão do custo das inovações
A Holanda conseguiu desenvolver ao longo das últimas décadas um sistema universal de saúde, que atende amplamente os cidadãos, qualquer que seja a faixa de renda. De agora em diante, no entanto, o desafio do país é outro: mesmo sofrendo com as pressões do envelhecimento da população, manter os custos sob controle num cenário de aumento de preços dos medicamentos e de novas tecnologias para a saúde. A opinião é do médico holandês Nick Guldemond, professor na Escola de Política de -Saúde e Gestão da Universidade Erasmus, em Roterdã. “De maneira geral, o sistema é sustentável. Mas o país precisa conter o aumento desses custos”, afirma. Considerado uma autoridade em sistemas de saúde e tecnologia, Guldemond é especialista na comissão europeia para estudos sobre políticas na área de saúde digital. A seguir, a entrevista que ele concedeu a EXAME.
Por que o sistema de saúde holandês é considerado o melhor da Europa?
O país oferece o melhor cuidado de saúde a qualquer paciente, seja ele um milionário ou um sem-teto. Há uma satisfação do cidadão porque é fácil ingressar no sistema, bastando comprar um seguro. Isso dá acesso ao atendimento por um médico de família, que sabe do contexto social do cidadão, acompanha sua saúde e presta orientações.
Como esse sistema foi formulado?
Até 2006, ele era parecido com o sistema brasileiro: os mais pobres tinham atendimento público e os mais ricos seguros privados. Mas o governo tornou obrigatório que todas as pessoas contratassem um seguro, ajudando os mais pobres, e as seguradoras foram incentivadas a oferecer o melhor serviço pelo menor preço, num mercado altamente concorrido. A implicação disso para o paciente é que ele tem liberdade de escolher o seguro e o médico.
De maneira geral, o sistema holandês é caro?
O país desembolsa por ano cerca de 10% do produto interno bruto com a saúde, metade arcada pelo cidadão e a outra pelo governo. Se considerar o custo dividido por cidadão, paga-se em torno de 5?000 euros por ano. É muito dinheiro, mas de maneira geral é um sistema sustentável.
Quais os desafios para o sistema de saúde holandês?
A Holanda precisa conter o aumento dos custos. Antes, o maior problema que pressionava os gastos com saúde era o envelhecimento da população, mas agora há também a elevação do preço dos medicamentos e o custo maior das novas tecnologias.
Como essa questão está sendo resolvida?
A Holanda firma alianças com outros governos para ganhar poder de barganha com a indústria farmacêutica na compra de remédios. E faz avaliações constantes que permitem dizer se uma inovação realmente é eficiente em tratamento e viável em custo.
Esse sistema pode ser replicado no Brasil?
Há elementos que podem ser, sim, replicados, como injetar muita competição no mercado de saúde, algo que resulta em mais eficiência.
O FUTURO É DIGITAL
O diretor médico da Philips na Holanda, Jan Kimpen, diz que há consenso de que as soluções digitais transformarão os tratamentos de saúde
A centenária Philips, conhecida por sua história na área de produtos elétricos e bens de consumo, está cada vez mais voltada para o campo da saúde. A mudança vem de uma decisão estratégica tomada no início da década. No entanto, a empresa com sede em Amsterdã, na Holanda, tem enfrentado uma série de desafios na empreitada. O mercado de saúde passa por uma transformação digital. E, apesar do consenso de que a digitalização trará tratamentos melhores e menos custosos, ainda há entraves para a adoção das tecnologias. Os pacientes temem pela segurança das informações, os médicos dizem que a tecnologia aumenta o trabalho e os políticos precisam ser educados para montar uma boa regulação. “Estamos vivendo uma fase de adaptação”, diz o pediatra belga Jan Kimpen, de 60 anos, que foi presidente do hospital da Universidade de Utrecht e desde 2016 é diretor médico da Philips. Na empresa, a área de saúde domina os recursos para pesquisas e tem ganhado espaço no faturamento. Kimpen concedeu a entrevista a seguir no escritório central da Philips.
Por que a Philips focou seus negócios em saúde?
Essa é uma área que cresce, mas que tem desafios e oportunidades. Os sistemas de saúde dos países estão mudando de um modelo baseado em volume de serviços para um modelo baseado no valor trazido pelos serviços. Isso significa gerar o melhor resultado com o menor custo. A digitalização vai ajudar. Com ela, é possível compartilhar dados eletronicamente e monitorar pacientes em casa, por exemplo.
Os médicos e os pacientes estão convencidos dos benefícios da digitalização?
Em todo o mundo, inclusive no Brasil, eles acreditam que a digitalização é parte do futuro da saúde e que trará tratamentos médicos mais eficientes e menos custosos. Como exemplo, uma pesquisa que fizemos mostra que, para 81% dos profissionais da saúde e para 74% da população em 16 países, a tecnologia melhora a assistência médica a distância.
Os pacientes estão dispostos a pagar mais por soluções digitais?
Em países como os Estados Unidos, onde os serviços de saúde são caros, as pessoas pagam por um tratamento digital que não é oferecido pelo seguro de saúde. Na Holanda, por outro lado, as pessoas não querem pagar nada além do seguro. Se uma empresa quiser implementar uma solução digital na Holanda, portanto, terá de ser muito competitiva, porque aqui é muito difícil pedir mais dinheiro para isso.
Como lidar com esse ambiente mais hostil?
Existe uma prática de os seguros remunerarem os hospitais de acordo com um preço fixo para o tratamento. Não importa como o hospital entrega o serviço, desde que a qualidade seja boa. O paciente pode ir toda semana ao hospital ou ter consultas por vídeo. Nessa situação, seria mais fácil adotar soluções digitais, porque o hospital vai gastar o dinheiro que receber da maneira que desejar, e será estimulado a encontrar uma maneira mais eficiente.
De que forma os médicos lidam com a digitalização?
Até agora a digitalização causou mais trabalho. E a classe médica em vários países está com um volume excessivo de trabalho. Cerca de metade dos profissionais em alguns países, como na Holanda, tem a síndrome de Burnout, que decorre do esgotamento físico e mental. Foi divulgado um paper que mostra que os médicos estão trabalhando 10 horas a mais por semana checando mensagens e preenchendo prontuários eletrônicos. Temos de fazer um trabalho melhor.
Tudo isso é normal de uma fase de transição da saúde, da analógica para a digital?
É uma fase de adaptação, sim. Existe um legado muito grande dos sistemas antigos, que estão mais presentes na Europa e também nos Estados Unidos, com os quais médicos e pacientes estão acostumados. Fora isso, é difícil entender o panorama da digitalização. Há muitas empresas prometendo o céu com a digitalização, e só podem entregar um pouco de avanço.
Qual tem sido o ritmo de adoção da digitalização nos hospitais?
O panorama não é muito simples. Eu fui presidente executivo de um hospital e sempre me senti confortável construindo uma nova sala de tratamento intensivo, porque eu tinha referência de preço e do resultado. Mas pense na aquisição de um prontuário eletrônico: o que ele entregará de resultado ou quando terei de atualizá-lo? Essa realidade é menos tangível, porém é um passo que teremos de dar.
De que forma os governos estão regulando as soluções digitais diante do receio dos pacientes com o vazamento de informações?
As regras estão travando o progresso da transformação digital. Tentamos educar os governos e os parlamentares sobre o que temos a oferecer e quais os cuidados a tomar. Mas, às vezes, os burocratas não entendem a diferença entre uma droga e um dispositivo médico disponível para o paciente.
Com tantos desafios à digitalização, a Philips tem tido sucesso em sua mudança de foco?
Éramos um conglomerado industrial. Estávamos em muitos mercados, mas para ter sucesso precisávamos apostar em um. Hoje, 60% dos investimentos da empresa vão para pesquisa em saúde. E 70% das receitas são de negócios de curto prazo, como vender produtos, enquanto 30% são de parcerias de longo prazo em saúde, que não existiam há alguns anos. A saúde está se transformando. Queremos ser parte disso.
O SEGREDO ESTÁ NO DNA
O sequenciamento genético de grandes populações vai permitir que a medicina de precisão seja adotada em larga escala, eliminando custos e garantindo o melhor tratamento para cada paciente
No edifício de oito andares no centro de Cambridge, cidade da região metropolitana de Boston, onde estão instaladas a Universidade Harvard e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, quase 500 cientistas da empresa farmacêutica americana Amgen se dedicam a estudar no presente moléculas que podem trazer alívio no futuro para quem sofre dos mais diferentes males. Ali, há quem se concentre em entender os mecanismos da dor, como a da enxaqueca, os anticorpos para o combate de diversos tipos de câncer, as proteínas para o tratamento de doenças inflamatórias e do Alzheimer. Nos laboratórios, visitados pela repórter de EXAME — com o uso de um traje especial para evitar contaminação do ambiente —, o tempo dos pesquisadores é diferente: dez anos podem se passar facilmente entre os primeiros estudos moleculares e, na melhor das hipóteses, o lançamento de drogas que sejam efetivamente prescritas aos pacientes. Ainda assim, muitas tentativas fracassam no caminho. Para encurtar esse tempo e acertar mais alvos, os cientistas da Amgen estão debruçados sobre os dados genéticos gerados numa ilha a 4.000 quilômetros de Cambridge.
A Islândia, nação nórdica que passa boa parte do tempo abaixo de temperaturas glaciais, foi o primeiro país a ter o sequenciamento genético de quase toda a população, que descende basicamente dos vikings. Com 337.000 habitantes, mais da metade dos islandeses doou amostras de sangue à experiência que pode mudar a maneira como os genes influenciam a construção de novos remédios. Apenas 2.600 islandeses tiveram os genes 100% sequenciados. O mapeamento dos genes do restante da população, que registra baixíssimos índices de imigrantes, foi inferido com base em dados genéticos mais limitados e registros de árvores genealógicas. Dois gigantescos bancos de dados orientam as pesquisas: um contém as informações genéticas de metade dos adultos do país. O outro é composto do prontuário médico do sistema público de saúde. A empresa islandesa deCode, criada nos anos 90 pelo neurocientista e ex-professor da Universidade Harvard Kari Stefansson, foi que desenvolveu a tecnologia para juntar todas essas peças e encontrou variantes genéticas raras e comuns associadas ao risco de doenças. Em 2012, a Amgen comprou a deCode por 415 milhões de dólares e, de lá para cá, mergulhou nos dados dos islandeses. “Com a deCode, mais que ninguém no mundo, estamos aprendendo como as variações do DNA afetam o risco de doenças”, diz Elliott Levy, vice–presidente de desenvolvimento global da Amgen. Desde que a empresa islandesa foi comprada, a Amgen multiplicou por 5 a validação genética em seu port-fólio. Cerca de 75% das drogas em desenvolvimento têm forte apoio dos estudos genéticos. A empresa também descontinuou 5% de suas pesquisas em razão das informações genéticas vindas da Islândia. Um dos primeiros resultados foi a identificação de uma nova variante genética que diminuiu em 34% o risco de doenças do coração e derrame. A deCode descobriu que um em cada 120 islandeses tem uma mutação que inativa o gene ASGR1 e que essas pessoas têm níveis mais baixos do chamado colesterol ruim. A Amgen está testando opções terapêuticas que replicam o comportamento da variante genética.
Experiências como a da Amgen indicam o caminho para as novas gerações de medicamentos. E toda a indústria farmacêutica e de biotecnologia está na corrida. A sueco-britânica AstraZeneca lançou em 2016 um projeto para sequenciar os genes de 2 milhões de pessoas em dez anos. Um consórcio de cinco farmacêuticas, entre elas a Abbvie, a Biogen e a Pfizer, lançou um projeto em janeiro para desvendar os genes de 500?000 voluntários britânicos. Além das empresas, os países estão investindo no sequenciamento genético maciço das populações. Na China, a província de Jiangsu começou a sequenciar os genes de 1 milhão de pessoas para compor o primeiro banco genético do país. Em maio, os Estados Unidos abriram as inscrições para que 1 milhão de americanos compartilhem seu DNA e dez anos de hábitos de saúde com o governo, projeto que vai consumir 1,4 bilhão de dólares. As informações vão compor um banco de dados que compara a genética, o estilo de vida e o meio ambiente de diferentes grupos de pessoas. Com os dados, os pesquisadores creem que vão aprender mais sobre a razão de algumas pessoas escaparem de certas doenças e outras não. “Há 14 países fazendo sequenciamento de populações. Cinco das maiores economias estão investindo em projetos próprios, incluindo o Brasil”, diz Francis de Souza, presidente da americana Illumina, uma das principais fabricantes de sequenciadores genéticos do mundo. “Esperamos que outros países sigam os exemplos ao longo do tempo.” Isso deve impactar o mercado de sequenciamento genético, que movimentou 7 bilhões de dólares em 2016 e deverá chegar a 27 bilhões em 2023.
O uso dos genes no desenvolvimento de novos tratamentos começou após o Projeto Genoma Humano. A iniciativa, que levou dez anos até ser concluída em 2003 e consumiu 3 bilhões de dólares, fez o primeiro grande mapa genético de seres humanos. Com ele foi possível identificar que cada pessoa tem cerca de 22.000 genes — e não 40.000, como se imaginava na época. O Genoma Humano, hoje na 38a versão, serve de referência para todas as novas tecnologias de sequenciamento. O problema é que não contempla as variações dos genes que cada indivíduo pode ter — e é aí que residem as doenças. Há dois grupos de mutações. O primeiro é o das raras e fortes, que causam cerca de 10% das doenças. Uma vez identificada a mutação, os riscos são altos de um indivíduo desenvolver uma doença. A atriz americana Angelina Jolie descobriu que carrega a mutação do gene BRCA 1, que representa um risco de 87% de desenvolver câncer de mama e 50% de sofrer câncer de ovário. O diagnóstico levou a atriz a se submeter a uma cirurgia preventiva para retirada das mamas e dos ovários. Outro grupo de mutações é o das comuns, com intensidade fraca e moderada, que, associadas a fatores não hereditários, como dieta inadequada e falta de exercícios, causam grande parte das doenças, incluindo diabetes, doença renal crônica, Parkinson, Alzheimer e 90% dos tipos de câncer. “É por isso que a tendência global é fazer o sequenciamento genético de grandes grupos, na base dos milhões de indivíduos, para juntar evidências de como as mutações fracas atuam para que haja ou não uma doença”, diz Guilherme Yamamoto, médico geneticista e pesquisador da Universidade de São Paulo.
A nova miríade de informações que deverão chegar aos cientistas nos próximos anos finalmente dará escala à medicina personalizada. Na história da indústria farmacêutica, a maioria das drogas funciona em 60% dos pacientes. “Com os testes genéticos, conseguimos maior clareza de diagnóstico, identificando assim quais medicamentos responderão melhor para cada tipo de paciente”, diz o inglês Fraser Hall, presidente da AstraZeneca no Brasil. “Mais de 80% de nossos medicamentos em desenvolvimento precisarão ser combinados com um diagnóstico complementar.” A estratégia de personalizar também ajuda a diminuir os crescentes custos de inovação da indústria farmacêutica. Estima–se que o custo de desenvolvimento de uma nova droga seja de 2 bilhões de dólares. De cada 100 moléculas que passam para o estágio pré-clínico, apenas uma ou duas acabam efetivamente no mercado.
O que permite usar o sequenciamento em larga escala hoje é o brutal barateamento das técnicas que fazem a leitura do DNA. Em 2001, o custo de sequenciamento genético era de 100 milhões de dólares por pessoa. Hoje, sai por 1.000 dólares. A redução do custo ocorreu graças à entrada dos sequenciadores de segunda geração, chamados de NGS, em 2007. A capacidade computacional dessas máquinas decodifica 2 trilhões de bases de DNA por dia — a primeira geração de sequenciadores conseguia decodificar 100.000 bases por dia. A expectativa é que nos próximos anos novas máquinas, com maior capacidade de leitura, baixem o custo de sequenciar o genoma humano para 100 dólares. “O barateamento tem sido tão rápido que as tecnologias de sequenciamento têm desafiado a lei de Moore”, diz João Bosco, fundador e presidente da Genomika, empresa de Recife que faz sequenciamento genético para farmacêuticas, hospitais e laboratórios de diagnóstico. Bosco se refere à profecia do americano Gordon Moore, um dos fundadores da empresa de microeletrônica Intel, que em 1965 disse que a cada 18 meses o preço dos chips cairia pela metade, enquanto o poder de processamento dobraria. Médico patologista, Bosco codirigiu durante sete anos a área de genética e imunologia do Instituto Nacional de Saúde, órgão do governo americano, em Bethesda, no estado de Maryland. Ele decidiu voltar ao Brasil em 2013 e criar sua empresa. “Com a popularização da tecnologia, vi que havia a oportunidade de criar um negócio aqui”, diz. Em 2017, a Genomika atendeu 20.000 pacientes e o hospital paulistano Albert Einstein se tornou seu sócio minoritário.
O Brasil dá os primeiros passos nessa corrida pelo mapeamento dos genes da população. A equipe da geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da Universidade de São Paulo (USP), analisa os dados colhidos do sequenciamento genético de 1.300 pessoas com mais de 70 anos de São Paulo. O estudo foca idosos saudáveis que levam vida independente e não apresentam doenças relacionadas ao envelhecimento, como Parkinson ou Alzheimer. No projeto, foram encontradas 207.000 mutações genéticas nunca antes descritas na literatura médica. Um quinto delas é potencialmente prejudicial. Mas os pesquisadores da USP também estão encontrando variantes que protegem os idosos dos efeitos da idade avançada. Foi descoberta uma idosa de 93 anos no projeto que carrega uma mutação que, aparentemente, evita o surgimento de Alzheimer. “Se houvesse uma amostra populacional maior, poderíamos comparar os dados com os de outras pessoas que carregam a mesma mutação e pesquisar novas aplicações”, diz Mayana. O problema é que falta financiamento para esse tipo de iniciativa no Brasil. As amostras dos genes dos brasileiros foram enviadas a San Diego, na Califórnia, e a tarefa foi feita pela empresa Human Longevity (HLI), fundada pelo bioquímico americano Craig Venter, um dos pioneiros no tema. Em troca do sequenciamento das amostras brasileiras, cujo custo estimado era de 2 milhões de dólares, os americanos receberam os dados dos idosos de São Paulo para fazer os próprios estudos.
Se para os cientistas não há dúvida de que as informações contidas nos genes de milhões de pessoas permitirão desvendar muitos mistérios da medicina, questões éticas estão sendo colocadas. A principal é: como fica a privacidade se dados genéticos forem compartilhados com empresas, como seguradoras e operadoras de saúde? “Essas companhias têm todo o interesse em saber qual cliente carrega nos genes mutações que podem acarretar doenças de alto custo. É justo cobrar do paciente pelo DNA que ele tem?”, diz Mayana. A resposta tem sido um uníssono não. A nova regulação de proteção de dados da Europa, aprovada em abril, dá poder ao cidadão no controle de suas informações digitais e de seu prontuário médico, o que inclui qualquer dado genético. Nos Estados Unidos, a lei proíbe qualquer compartilhamento dos laboratórios com outras entidades sem o consentimento expresso do paciente. No Brasil, ainda não há legislação específica, mas os cientistas têm seguido o padrão americano. No entanto, esse é apenas o início de uma realidade em que boa parte dos cidadãos terá as informações genéticas trabalhando em favor de sua saúde. Um futuro em que o sequenciamento genético será tão comum quanto o teste do pezinho, hoje aplicado nos recém-nascidos — para fazê–los viver mais e melhor.
A FARMACÊUTICA QUE CAÇA O ERRO
A empresa canadense Deep Genomics utiliza inteligência artificial para criar remédios mais eficazes e com menos efeitos colaterais
Com quase 50 anos de idade, o pesquisador canadense Brendan Frey é um dos mais renomados especialistas em deep learning, uma técnica de inteligência artificial. A fama surgiu no início dos anos 2000, quando ele ainda trabalhava como professor de computação na Universidade de Toronto. Os resultados de seus estudos foram publicados sucessivamente nos principais periódicos científicos do mundo. “Ter um artigo na Nature e na Science é algo incrível, mas não é realmente do que o paciente precisa”, diz Frey. “Percebi que criar uma startup seria a melhor forma de atender às necessidades dos pacientes.”
E, assim, em 2015 surgiu a Deep Genomics, empresa que tem como meta utilizar uma abordagem computacional para encontrar a cura para doenças neurodegenerativas, neuromusculares e metabólicas — como Parkinson, distrofia de Duchenne e porfiria — que se originam de erros no código genético dos pacientes.
Vestido com uma camiseta da banda de rock AC/DC, em seu escritório em Toronto, Frey explica a EXAME que o uso de inteligência artificial é a melhor saída para entender o DNA, um longo e extenso código que regula como as células de nosso corpo funcionam. O ser humano é bom para entender a linguagem escrita e verbal, mas as máquinas oferecem a melhor opção quando se trata de um código como o DNA, que tem inúmeras variações, que podem ser ligadas ou desligadas de acordo com interações com o ambiente, como alimentação, estresse e nível de poluição. Somente os algoritmos, apoiados em computadores superpotentes, podem lidar com tantos cenários. “Nosso objetivo é tornar o desenvolvimento de remédios um esforço de engenharia e de certeza. É o oposto do que ocorre hoje na indústria farmacêutica, que trabalha muito com tentativa e erro”, diz Frey.
Pesquisadores da área de inteligência artificial costumam usar a imagem de uma árvore frutífera para explicar como a ciência da computação pode ajudar no desenvolvimento de remédios. As atuais drogas mais eficazes do mundo e com os menores efeitos colaterais seriam as frutas maduras que já foram colhidas pela ciência apenas porque estariam ao alcance das mãos, ou seja, mero golpe de sorte. Os outros frutos que sobraram nos galhos mais baixos não são bons e representam os remédios com eficácia menor e com muitos efeitos colaterais, algo que aumenta os custos de desenvolvimento e a necessidade de mais testes clínicos antes de ser aprovados pelas agências reguladoras. A inteligência artificial seria, portanto, uma maneira de construir uma escada até os galhos mais altos dessa mesma árvore, onde estariam outras frutas maduras — é a engenharia em prol de remédios melhores. A computação pode ser usada para simular a estrutura e a interação de moléculas de um remédio com o corpo humano antes mesmo de o medicamento ser criado em laboratório. A inteligência artificial também pode ser empregada para descobrir outros padrões de erros no DNA e, no limite, encontrar doenças que ainda nem foram descritas pela medicina.
“Ao conhecermos a mutação de um paciente, ficamos sabendo também o que está errado em suas células. É isso que possibilita o caminho para que possamos criar o remédio exato”, afirma Frey. O DNA também apresenta outra vantagem para essa abordagem de inteligência artificial: é um dado estruturado, com um padrão claro de construção, como o biólogo americano James Watson e o biofísico inglês Francis Crick descreveram nos anos 50, com o famoso modelo da dupla hélice. Utilizar dados disponíveis de relatos de doenças e de efeitos colaterais em testes clínicos não seria uma boa opção, uma vez que as informações podem variar entre diferentes médicos e dentro da indústria farmacêutica — pois, afinal, não há um padrão para preencher relatórios e muitas vezes uma informação sobre um efeito colateral não é descrita. “O que o deep learning faz é uma generalização a partir do DNA. E o sistema pode crescer a cada nova inserção ou descoberta feita.”
Segundo Frey, a empresa já conseguiu descobrir prováveis curas utilizando esse método. A Deep Genomics espera realizar testes clínicos nos próximos três anos, embora não divulgue para quais doenças. Se comprovada a eficácia de sua técnica, a empresa poderá realizar o licenciamento da fórmula do medicamento para a indústria farmacêutica. Frey também espera mudar a abordagem das agências reguladoras, que assumem desde o início que os novos remédios não vão funcionar bem — para ter uma ideia, um medicamento para psoríase comum nos Estados Unidos e no Canadá gasta metade do tempo de seu comercial de 30 segundos explicando sobre os efeitos colaterais, que vão desde diarreia até depressão. A aposta na Deep Genomics é tão alta que a startup já recebeu mais de 16?milhões de dólares em duas rodadas de investimento. Nada mau para um ex-professor que queria mais do que publicar artigos científicos.
ENVELHECER COM SAÚDE
O número de brasileiros acima de 60 anos deverá crescer 45% até 2030, quando o país terá pela primeira vez mais idosos do que crianças. 0 setor de saúde será pressionado, mas a tecnologia de ponta, a redução da burocracia e a gestão eficiente podem trazer um equilíbrio
A rede de laboratórios Alliar enfrenta um dos maiores desafios de sua curta história — a empresa foi criada em 2011 por quatro grupos de diagnósticos de São Paulo, de Minas Gerais e de Mato Grosso do Sul. Impelida pelos planos de saúde, a Alliar batalha diligentemente pela eficiência. Um dos recursos que estão gerando ganho de produtividade são as centrais de comando de exames de ressonância magnética a distância. Para o exame, normalmente o paciente é conduzido por um auxiliar até o equipamento, enquanto um técnico dentro da mesma sala programa o aparelho. Mas na Alliar não é mais assim. Os técnicos ficam nas centrais (dentro ou fora da unidade em que o exame é realizado), de onde comandam a ressonância e se comunicam com o paciente e o auxiliar. Isso é possível com o uso de softwares, câmeras e microfones da alemã Siemens. O aparato, criado a princípio para a Alliar, já foi exportado para Estados Unidos, Alemanha, China e Índia. Instalada em 2015, a primeira central da Alliar, no bairro paulistano da Vila Mariana, tem 35 técnicos que programam 40 máquinas. Com a tecnologia, foi possível reduzir em um terço o número de técnicos na rede — como há radiação nas salas de exame, a lei limita a carga de trabalho e eram necessários mais profissionais na versão presencial. Já os pedidos de repetição de exames caíram 35%, uma vez que o técnico não atende todos os pacientes que batem à porta, só os que farão os exames de sua especialidade. “Os planos de saúde nos pressionam para a redução do preço dos serviços”, diz Eduardo Margara, diretor de operações da Alliar. “Eles sentem uma alta nos pedidos de exames devido ao envelhecimento da população, o que, por sua vez, está pressionando seus custos.”
O setor de saúde brasileiro — assim como a Alliar — está inquieto. Enquanto tenta lidar com as mazelas históricas do desperdício e da má gestão, agora também tem de se adaptar à realidade do envelhecimento da população. Não é de hoje que se verificou essa tendência, mas o fato é que seus impactos estão mais evidentes. A longevidade, uma conquista da humanidade, está fazendo a quantidade de idosos aumentar em todo o mundo. No Brasil, o ritmo tem se acelerado. A Organização das Nações Unidas prevê que, de 1950 a 2050, a fatia de pessoas acima de 60 anos na população cresça seis vezes no Brasil, o dobro da taxa projetada para países como Canadá e Holanda. Em 2030, o número de idosos por aqui vai superar pela primeira vez o de crianças com até 14 anos. “O Brasil demorou 18 anos para dobrar a população de idosos, enquanto a França levou 45 anos”, diz o médico Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade. “Há nações que conseguem postergar o efeito do envelhecimento atraindo imigrantes, o que não acontece por aqui.” Kalache palestrou durante o EXAME Fórum Saúde, realizado em Brasília no dia 21 de junho, com a presença de autoridades, executivos e especialistas no setor de saúde brasileiro.
Viver mais é uma boa notícia para todo mundo, desde que se viva com saúde. E, nesse ponto, os especialistas acreditam que o Brasil avança lentamente. A população está ficando mais idosa, porém continua pobre e desigual. Segundo a Organização das Nações Unidas, o país é o décimo mais desigual no mundo. Por aqui, um cidadão pobre leva nove gerações para atingir a renda média nacional, enquanto na Dinamarca são necessárias apenas duas. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que reúne os países mais ricos, os jovens de hoje enfrentarão mais desigualdade na velhice do que os aposentados atuais, devido ao desemprego e às disparidades salariais causadas pelas últimas crises. “O envelhecimento nos toca desde o início da vida, quando é preciso promover a saúde, a participação na sociedade e o aprendizado contínuo”, afirma Kalache.
Para o setor público, fica a preocupação com os idosos de menor renda, que tendem a ter mais complicações decorrentes de doenças crônicas e a precisar de mais cuidados de longo prazo. Normalmente, um familiar deixa de trabalhar para cuidar do idoso doente ou a família desembolsa muitos recursos com o cuidador, podendo comprometer até 70% da renda do domicílio. Segundo a OCDE, há apenas 218 instituições públicas, como casas de repouso, disponíveis para atender 20 milhões de brasileiros de mais idade, e 71% dos municípios não têm esse tipo de instituição. Sem um cuidado apropriado à população, haverá mais pressão no sistema público, que já está sobrecarregado. Essa realidade é evidenciada pela opinião do brasileiro sobre os serviços públicos: três em cada quatro afirmam que eles são ruins ou péssimos e cerca de 80% já desistiram de uma consulta ou exame pela demora em marcar. “A percepção do brasileiro é que o sistema público simplesmente não está funcionando”, diz Renato da Fonseca, gerente da Confederação Nacional da Indústria, responsável por uma pesquisa a respeito.
Diante dessa realidade, o setor público começa a buscar mais eficiência com o uso de tecnologia. Em Curitiba, no Paraná, há prontuários eletrônicos para toda a população desde 1999. No início deste ano, a tecnologia permitiu identificar os 500 000 cidadãos que precisavam de vacinação diante do surto de febre amarela e os 30?000 cidadãos acima de 80 anos que necessitam de acompanhamento de saúde. Na cidade, desde o ano passado, os médicos vão até a residência de idosos com doenças crônicas para fazer coisas como medir a pressão ou prescrever um remédio. “O custo anual do projeto, de 1,2 milhão de reais, é um décimo do que seria gasto com uma internação”, diz a secretária de Saúde de Curitiba, Márcia Huçulak. O resultado: a taxa de internações na cidade, de seis casos para cada 100?000 atendimentos, está um terço abaixo da média nacional.
Além do setor público, o privado também não está numa situação confortável. Com a longevidade, tende a crescer mais de 50% o número de internações, exames e consultas de idosos nos planos de saúde até 2030, segundo o Instituto de Estudos em Saúde Suplementar, um centro de pesquisa mantido pelas operadoras privadas de planos de saúde. “O modelo tradicional de plano de saúde está fadado ao insucesso, porque, de cada 100 reais arrecadados, 85 vão para o pagamento de despesas com o atendimento aos pacientes”, diz Leandro Fonseca da Silva, diretor da Agência Nacional de Saúde Suplementar. “É por isso que temos insistido que as empresas sejam gestoras da saúde dos pacientes, e não apenas vendedoras de planos de saúde.” Como forma de equilibrar a conta, a agência lançou novas regras para a coparticipação dos clientes no pagamento de consultas e exames. Grandes empresas também estão agindo para reduzir os custos dos planos dos funcionários. Um caso recente é o da Amazon, da gestora Berkshire Hathaway e do banco JP Morgan Chase, que anunciaram a criação de uma empresa conjunta de saúde, sem fins lucrativos, para reduzir os custos dos planos de seu 1 milhão de empregados. Entre as atividades previstas pela nova empresa está o desenvolvimento de aplicativos, como um que sugere genéricos para que os funcionários saibam de opções mais baratas de remédios na hora da compra.
Caso nada seja feito, o Brasil poderá alcançar 25% do produto interno bruto de gasto total no sistema de saúde — hoje, a fatia é de 9,5%. Os dados, do Instituto Coalizão Saúde, que elabora estudos na área, consideram a mudança do perfil demográfico — o custo do atendimento hospitalar de quem tem mais de 60 anos é o dobro do registrado para outras faixas etárias. Na projeção dos gastos, entra também a inflação dos serviços de saúde, cujos preços têm subido devido à incorporação de novas tecnologias. Um estudo da consultoria Mercer Marsh Benefícios, realizado com 225 operadores de saúde em 62 países, mostra que o Brasil terá a terceira maior inflação médica neste ano, de 15,4%, atrás apenas da Argentina, com 26%, e do Egito, com 20%.
Uma forma de reduzir o custo é garantir a oferta de remédios a preços mais baratos. Nessa jornada, o Ministério da Saúde tem formado parcerias com o setor privado desde 2012, comprando em grandes quantidades por valores inferiores das farmacêuticas, com a contrapartida de transferência de tecnologia para os laboratórios públicos. Até agora, 112 parcerias já foram feitas, gerando economia de 5,2 bilhões de reais. “As parcerias ampliaram a oferta de medicamentos pelo Sistema Único de Saúde”, diz Thiago Rodrigues Santos, diretor de Inovação do Ministério da Saúde. A redução de custos também pode vir com os medicamentos biossimilares, uma espécie de genéricos dos biológicos, que tratam de doenças complexas e representam gastos anuais de 1,3 bilhão de reais no Brasil. Hoje, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária analisa o pedido de 11?biossimilares. “Estimamos que deverá haver redução de até 10% em relação ao preço do remédio de referência, que também tende a cair com a pressão da entrada de um biossimilar”, diz Alcebíades Athayde Júnior, presidente da farmacêutica Libbs.
Esses exemplos mostram que o Brasil não está fadado ao fracasso na luta por trazer equilíbrio ao sistema de saúde. Ao contrário disso, uma série de medidas pode ser tomada, com impactos significativos. Os dados do Instituto Coalizão Saúde mostram que, se eliminados os fatores de risco, como tabagismo, sedentarismo, consumo excessivo de álcool e dieta pouco saudável, seriam poupados 100 bilhões de reais ao ano do sistema. “A primeira coisa a fazer é criar uma cultura que dê prioridade à prevenção de doenças”, diz Denise Eloi, diretora executiva do Instituto Coalizão Saúde, também participante do EXAME Fórum Saúde.
Promover a saúde requer uma rede de atendimento próxima do paciente, um desafio para um país continental. O Brasil tem dois médicos para cada 1?000 cidadãos, número que triplica nas cidades acima de 500?000 habitantes, mas cai para menos de 0,5 em municípios pequenos da Região Norte, de acordo com o Conselho Federal de Medicina. Mesmo as cidades médias da região sofrem com uma quantidade de médicos 53% inferior à média nacional para municípios similares. Em Palmas, capital do Tocantins, desde 2014 a prefeitura financia uma escola para que recém-formados em medicina possam fazer a especialização nos postos de saúde, com visitas à casa de pacientes. Em quatro anos, 400 jovens passaram pelo programa. Antes da residência médica, menos da metade dos moradores tinha acesso a consultas preventivas. “Hoje, graças aos residentes, conseguimos cobrir toda a cidade”, diz o médico Nésio Fernandes, ex-secretário de saúde de Palmas que implementou o projeto. A fila de espera para uma consulta médica não urgente, que não raramente superava 10 000 pessoas, hoje está quase zerada.
O caminho para garantir serviços melhores a uma população que envelhece também passa por redução da burocracia. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária tem se mexido nesse sentido. “Temos um número de técnicos pequeno para manter o sistema eficiente como o mercado gostaria”, disse no EXAME Fórum Saúde Varley Dias Sousa, gerente-geral de medicamentos e produtos biológicos da Anvisa. “Mas os produtos mais urgentes têm sido aprovados em ritmo mais acelerado.” Até há pouco tempo, todo registro de remédio entrava numa fila única e os técnicos tinham de avaliar o que caía em suas mãos. A fila alcançou 700 pedidos, com demora de até seis anos para resposta. No início do ano passado, estagiários foram contratados para checar os documentos antes de o processo começar, e os 33 técnicos foram divididos em áreas de conhecimento, avaliando mais de um remédio com função semelhante ao mesmo tempo. A fila caiu 80% e deve ser zerada nos próximos meses. Dessa forma, mais remédios devem chegar ao país. “Produtos que estão em nosso portfólio em outros mercados há muito tempo, e que não trazíamos pela demora em aprovar, agora já podem ser lançados aqui”, diz Juan Carlos Gaona, presidente do laboratório americano Abbott no Brasil.
O Brasil tem um duplo desafio: sanar as doenças do sistema de saúde, hoje em desequilíbrio, enquanto aprende a lidar com o envelhecimento da população. Nas próximas páginas, EXAME mostra exemplos de países que conseguiram tornar o sistema de saúde mais sustentável, de tecnologias que reduzem os custos e de empresas cujo negócio foca a longevidade. São componentes importantes de uma possível receita para o Brasil envelhecer, mas com boa saúde.
O PACIENTE COM A MÃO NO BOLSO
Pressionadas pelo aumento dos custos, as operadoras de planos de saúde repassam a conta aos clientes — e enfrentam uma boa dose de resistência
O envelhecimento da população e a escalada da inflação médica estão causando um enorme problema para as empresas de planos de saúde. Elas têm tomado medidas para ganhar eficiência e conter a disparada das despesas. Como exemplo, a operadora brasileira Amil, controlada pelo grupo americano UnitedHealth, tem 16 centros de prevenção para pacientes com doenças crônicas. Eles são orientados a seguir uma alimentação saudável e a praticar exercícios, uma forma de evitar a cara hospitalização. Mas, apesar da disseminação desse tipo de programa entre as operadoras, não há muita saída: parte da conta de saúde está sendo repassada aos consumidores. Não sem uma boa dose de resistência.
No embate entre clientes e planos, o Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) moveu uma ação para limitar o reajuste dos planos individuais em 2018 — nos anos anteriores, a taxa superou 13%. O instituto se baseia num relatório do Tribunal de Contas da União que apontou problemas na metodologia da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Segundo o documento, a ANS considera como base para o reajuste dos planos individuais o aumento praticado nos planos coletivos, que são feitos sem tanta vigilância. O Idec ganhou em primeira instância, quando o reajuste foi limitado a 5,72%, mas perdeu em segunda. A ANS divulgou um reajuste de até 10%, e o Idec recorreu. O caso continua na Justiça.
No mais recente episódio, a ANS lançou em junho regras para a coparticipação do paciente no pagamento de tratamentos cobertos pelos planos de saúde. Essas cobranças ocorrem há duas décadas, mas não tinham um limite. Agora, a coparticipação deve ser de no máximo 40%: numa consulta de 70 reais, o paciente pagará até 28 reais. Em um mês, a cobrança de todas as coparticipações não pode exceder o valor de uma mensalidade. “Atuamos para racionalizar o uso dos serviços de saúde e evitar o endividamento excessivo do paciente”, diz Rodrigo Aguiar, diretor de desenvolvimento setorial da ANS. De acordo com os órgãos de defesa do consumidor, as medidas desestimulam consultas e exames.
O esforço do setor de saúde para dividir a conta com os clientes está disseminado em países como Singapura e Holanda. “Isso reduz o desperdício e as fraudes, que atingem, em média, 20% dos recursos gastos com saúde”, diz Carlos Suslik, consultor especializado em gestão de saúde. É uma saída para lidar com as mazelas do sistema brasileiro, mas que deve causar mais embates.
AS DOENÇAS DO ATRASO
No Brasil de 2018, 1 em cada 5 pessoas ainda morre por doenças infecciosas. A vacinação retrocedeu e novas epidemias estão surgindo. O país que anseia pelas novidades da medicina não resolveu problemas do passado
Em janeiro, vários pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), instituição de pesquisa vinculada ao Ministério da Saúde, foram chamados às pressas de volta das férias. Um surto de hepatite A havia infectado pelo menos 120 pessoas na comunidade do Vidigal, no Rio de Janeiro, e era preciso fazer o sequenciamento genético do vírus com urgência. No final de 2017, correria semelhante acontecera quando a febre amarela obrigou a Fiocruz a produzir mais vacinas, estudar a efetividade das doses fracionadas e treinar profissionais de saúde para evitar que uma epidemia urbana fizesse um estrago na população, como ocorria até meados do século 20. Ainda assim, 1.190 pessoas foram contaminadas e 373 morreram nos primeiros seis meses de 2018. Agora já se prevê mais trabalho intenso pela frente: dessa vez, com o crescimento da incidência de sarampo iniciada na fronteira norte do Brasil, em razão da entrada de refugiados venezuelanos em Roraima. “O risco de os casos de sarampo se espalharem para outros estados é razoável”, diz Rivaldo Venâncio da Cunha, coordenador de vigilância e dos laboratórios de referência da Fiocruz. “Além da fabricação de mais vacinas, estamos nos preparando para dar suporte à rede de diagnósticos.”
Os episódios relatados pelos técnicos da Fiocruz não decorrem de falta de sorte dos brasileiros. No caso da hepatite A no Rio de Janeiro, o surto carioca foi causado por água contaminada, resultante da falta de sanea-mento básico. Na cidade, 56% do esgoto coletado — nem todo esgoto é coletado — não é tratado. Já para a febre amarela sabe-se que, a cada oito ou dez anos, há um novo surto e é possível se preparar para enfrentá-lo com antecedência. Em relação ao sarampo, apesar do reforço de imunização nas fronteiras feito pelo governo, os indicadores mostram que a vacinação no país tem diminuído e atingiu, no ano passado, o menor percentual em 16 anos. Apenas 70% das crianças brasileiras foram vacinadas contra o sarampo em 2017. “Se a imunização fosse efetiva, mesmo com a chegada de estrangeiros contaminados, a doença não se espalharia”, afirma Expedito Luna, médico e professor no Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo (USP).
O Brasil de 2018 continua a lidar com doenças que em grande parte do mundo desenvolvido já foram controladas, quando não erradicadas, e sua incidência atesta nosso atraso. Casos de malária e sífilis voltaram a proliferar no país, após anos de seguidas reduções. Tuberculose e hanseníase, males que não se consegue efetivamente erradicar, somam mais de 65?000 casos notificados anualmente. Todos os verões, as doenças transmitidas pelo mosquito Aedes aegypti, como dengue, zika e chikungunya, se transformam num desafio para o sistema público de saúde. Até a poliomielite, erradicada no país em 1990, tem alto risco de retornar. Um levantamento do Ministério da Saúde mostra que 312 cidades no país imunizaram menos da metade das crianças que deveriam receber a dose da vacina em 2017. “A impressão é de que voltamos ao início do século passado”, diz Venâncio, da Fiocruz.
As doenças infectocontagiosas estiveram no centro das discussões da saúde pública em todo o mundo no século 20. Foi no início do século passado que surgiram as vacinas contra tuberculose, difteria, tétano e febre amarela. Após a Segunda Guerra Mundial, desenvolveu-se a imunização contra poliomielite, sarampo e rubéo-la. Ainda assim, em 1970, 40% das mortes por problemas de saúde nos países emergentes eram provenientes de doenças infecciosas — ante 13% nas nações ricas. A situação melhorou no mundo emergente, mas hoje 18% ainda morrem por esses males. O fato é que a parte mais pobre do mundo não atingiu o patamar de 50 anos atrás dos países ricos, enquanto estes reduziram a 8% o número de óbitos por doenças infecciosas. É verdade que a virada do milênio trouxe à pauta problemas de outra natureza.
Em boa parte dos países, o debate foi direcionado para o que fazer e como lidar com as doenças crônico-degenerativas, aquelas causadas pela maior sobrevida da população. Estão lá hipertensão, diabetes, artropatias e, até mesmo, o câncer. “Essas doenças eram menos presentes no passado porque não dava tempo de desenvolvê-las: as pessoas morriam antes por doenças infectocontagiosas”, diz Claudio Lottenberg, presidente da UnitedHealth Group Brasil, controladora do plano de saúde Amil. “Hoje, é de extrema importância acompanhar e ter políticas públicas para essas doenças.”
No Brasil, uma soma de problemas faz das doenças do passado uma realidade no presente. A começar pela falta de saneamento. Ainda hoje, 35 milhões de pessoas não recebem água tratada no país e 100 milhões não têm acesso a coleta de esgoto. Somente 42% do esgoto coletado é tratado. Cerca de 12 milhões de domicílios não têm o lixo recolhido. “O índice de saneamento básico em Teresina, uma capital de estado, é de 15%”, afirma Leonardo Giusti, sócio da consultoria KPMG. “Não é possível tratar a saúde sem tratar a água.” Tudo isso afeta diretamente a saúde dos brasileiros — e o que se gasta com ela. Todos os anos, o país registra 340.000 internações causadas por infecções gastrintestinais, resultando em cerca de 5.000 mortes. Apenas o custo hospitalar com as internações por causa de diarreia no Sistema Único de Saúde chega a 125 milhões de reais por ano.
Os números são alarmantes, mas não deveriam surpreender ninguém. A correlação entre saneamento e saúde pública é largamente documentada. Segundo dados da Unicef e da Organização Mundial da Saúde, quanto maior o acesso ao saneamento, menor a mortalidade infantil num país. Nações como o Japão e os Estados Unidos, onde o saneamento básico é universal, registram, respectivamente, duas e seis mortes a cada 1?000 nascidos vivos. No extremo oposto está o Zimbábue: no país africano, onde o serviço de esgoto está disponível para apenas 37% da população, morrem 47 crianças a cada 1?000 nascimentos. No Brasil, pouco mais da metade da população tem o esgoto coletado, e a taxa de mortalidade infantil chega a 15 mortes por grupo de 1?000 nascidos.
Associada à falta de saneamento, a intensa movimentação de pessoas dentro e fora do país tem permitido o surgimento de novas epidemias, exigindo que os esforços em relação à vigilância sanitária e epidemiológica sejam crescentes. De julho de 2017 a maio de 2018, o Brasil registrou 415 mortes por febre amarela, doença cuja vacina foi desenvolvida em 1936. Boa parte dos casos ocorreu nos estados de São Paulo e Minas Gerais, gerando filas e obrigando a adoção do fracionamento das doses da vacina para atender mais rapidamente um maior número de pessoas. Uma das hipóteses para a epidemia é o aumento do desmatamento nas áreas limítrofes das zonas urbanas, algo que não ocorre da noite para o dia. Outra é o acidente da mineradora Samarco, em Minas Gerais: o rompimento da barragem na cidade de Mariana provocou mudanças bruscas no ambiente. Especialistas alertaram para a necessidade de imunizar a população local em larga escala.
“Ainda que parte do que ocorreu pudesse ter sido evitado, as iniciativas de controle da febre amarela foram essenciais para impedir uma tragédia”, diz Pedro Tauil, professor do núcleo de Medicina Tropical na Universidade de Brasília. A mesma previsibilidade ocorre com a dengue. Nas últimas três décadas, com exceção do ano de 1988, o Brasil sofreu todos os anos com epidemias de dengue de maior ou menor intensidade. Somados 2016 e 2017, foi registrado 1,7 milhão de casos de dengue no Brasil. Houve 816 mortes no período para uma doença em que 90% das ocorrências exigem tratamento com água e soro fisiológico. “Boa parte dos óbitos resulta de falta de diagnóstico correto, subestimando a gravidade da doença”, diz Venâncio, da Fiocruz. Cabem aos estados e municípios as ações de combate e controle do Aedes aegypti, mosquito transmissor de dengue, chikungunya, zika e febre amarela urbana (a silvestre é transmitida por outro mosquito), mas o poder público depende do engajamento da população na eliminação de criadouros do inseto, que se desenvolvem principalmente dentro dos domicílios.
De todo modo, entre os especialistas há um consenso: até que se desenvolva uma nova tecnologia, será impossível eliminar o Aedes aegypti das grandes cidades. “Até os anos 90, acreditava-se que seria possível erradicá-lo”, afirma Stefan Cunha Ujvari, infectologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, de São Paulo, e autor do livro A História da Humanidade Contada pelos Vírus. “Afinal de contas, havíamos sido bem-sucedidos nessa missão no início do século 20, quando se descobriu que ele era o vetor na transmissão da febre amarela urbana.” Só que as grandes cidades do século 21 são muito diferentes daquelas de 70 ou 80 anos atrás — além de bem mais populosas, há um adensamento maior, condições que facilitam a transmissão de doenças. Até mesmo o aquecimento global tem um papel na proliferação de doenças transmitidas por mosquitos. Recentemente houve surtos de dengue na Flórida, no sul da França, na Itália, em Singapura e até mesmo em Tóquio, em razão das temperaturas mais altas.
Reconhecido há décadas como um exemplo por seu programa universal de vacinação, o Brasil tem vivido um retrocesso na área também por falta de planejamento. Pelo modelo do SUS, a mão na massa nos atendimentos à população com vacinas está concentrada nos municípios. “Faz sentido a partir do momento em que, ao conhecer melhor seu território, as cidades conseguiriam cuidar mais de perto dos pacientes”, afirma Giusti, da KPMG. “Só que, na prática, faltam coordenação e gestão para executar o que foi desenhado.” Numa realidade bastante heterogênea, é comum que municípios pequenos não tenham estrutura para organizar a vacinação ou que a deixem a cargo das cidades vizinhas maiores. “Mosquitos, vírus e bactérias não costumam respeitar fronteiras geográficas”, diz Luna, da USP. “Por isso, é preciso criar estratégias coordenadas entre União, estados e municípios.” Há diversas discussões para a formação de consórcios intermunicipais e regionais, mas os projetos pouco têm avançado.
A crise das finanças públicas também acaba prejudicando o cenário da saúde. Diversas rubricas dos gastos públicos ligadas à vigilância epidemiológica têm sido reduzidas. No governo federal, programas para o fortalecimento da vigilância sanitária tiveram redução de 28% dos recursos destinados em 2017 em relação ao ano anterior. Com a consolidação do teto dos gastos públicos, que limitou o crescimento da despesa à inflação do ano anterior, o cenário deve ser de aperto. O incremento anual da população, mesmo inferior a 1% ao ano, também tende a reduzir as fatias do bolo para as diferentes necessidades da população. Em alguns estados, a situação também se deteriorou. No Rio de Janeiro, de acordo com o Ministério Público local, cerca de 2 bilhões de reais deixaram de ser investidos nos serviços de saúde estaduais em 2016. “O visível são filas nas portas dos prontos-socorros, mas apenas mais médicos não resolvem”, afirma Luna. “É preciso ter ações de vigilância, controle de vetores e cobertura vacinal ampla.” Há outra frente a ser atacada: a má qualidade dos gastos. O setor de saúde pública no Brasil padece com o desperdício e a ineficiência, além da roubalheira.
“Certamente é possível fazer muito mais usando melhor o dinheiro público”, diz Enrico Vettori, líder da área de saúde da consultoria Deloitte. Além disso, são necessárias políticas públicas para deter situações específicas. No caso de tuberculose, os 25 casos de incidência em cada 100 000 habitantes da população geral se transformam em 250 casos na indígena e 1?400 na encarcerada. “Ou olhamos para essas realidades de forma distinta ou essa situação nunca vai mudar”, afirma Venâncio. “Porque não é só o presidiário o contaminado, mas também os funcionários do sistema prisional, os advogados e familiares que continuam espalhando a doença.”
A superação dessas doenças vai exigir o empenho de toda a sociedade brasileira. Uma crítica comum dos especialistas é a negligência da população com os cuidados recomendados para a saúde e as condições sanitárias, atitude em parte atribuída à falta de educação. “O cidadão delegou ao Estado a responsabilidade exclusiva de cuidar de sua saúde. Será que precisa ter um agente de saúde da família acompanhando a carteira básica de vacinação de todos os brasileiros para avisá-los quando ir ao posto?”, diz Lottenberg, da UnitedHealth. O mesmo se aplica à falta de engajamento com outros problemas, como a eliminação de criadouros de mosquitos ou a prevenção contra doenças sexual-mente transmissíveis. Os avanços da tecnologia têm prometido resolver antigos problemas da medicina que devem resultar numa vida mais saudável e mais longa. As nações ricas lideram essa corrida. O Brasil também quer participar dessa disputa, mas antes precisa resolver as doenças que ainda o condenam ao atraso.
O MELHOR CUSTO-BENEFÍCIO
Singapura tem o sistema de saúde com o melhor custo-benefício. A receita? Dividir os custos com a sociedade — e cobrar dela uma postura saudável
Os 5,6 milhões de singapurianos são o melhor exemplo de uma sociedade que conseguiu brecar a escalada de custos médicos, um problemão nos países ricos. Os gastos públicos e privados na OCDE, o clube das nações mais desenvolvidas, subiram de 9% para 12% do produto interno bruto em 15 anos. Enquanto isso, Singapura seguiu gastando perto de um terço da média de uma nação rica: mais ou menos 4% do PIB. A austeridade está longe de significar serviços precários. Em 2014, um ranking da empresa de análise financeira Bloomberg escolheu a medicina de Singapura como a de melhor custo-benefício em 55 países. Boa parte da elite médica da Ásia está na cidade-estado, que sedia filiais de renomados hospitais americanos, como o Johns Hopkins, cuja sede em Baltimore é referência mundial em cirurgias neurológicas. Ainda assim, gastar pouco com saúde é um contrassenso num lugar como Singapura, em que um de cada 35 habitantes é milionário e cujo custo de vida é dos mais elevados. Em março, a cidade ganhou pela quinta vez o título de mais cara do mundo, à frente de metrópoles como Londres e Tóquio, segundo a consultoria Economist Intelligence Unit.
Por que Singapura gasta tão pouco com saúde se é um lugar tão caro? Uma parte da resposta está no movimento do fim de tarde em Padang, área central da cidade localizada a poucos metros da Baía da Marina, um de seus cartões-postais. Ali, quando o sol e o calorão tropical dão uma trégua, milhares de pessoas saem para correr, andar de bicicleta ou jogar rúgbi, futebol americano ou críquete em áreas verdes ou no meio das ruas, fechadas aos carros ao cair da noite. Singapura é pioneira na “promoção de saúde”, jargão médico para a luta contra o inimigo número 1 do custo galopante: o tratamento de doenças crônicas, como diabetes e hipertensão, causadas por maus hábitos, como o sedentarismo. Em 2001, o governo local criou uma agência só para botar os singapurianos em forma. Para dar conta da missão, entre outras iniciativas, hoje o órgão mantém um canal no YouTube com dicas de alimentação, uma linha de crédito para restaurantes dispostos a tirar frituras do cardápio e um calendário de exercícios gratuitos em praças e escritórios — no portfólio estão aulas de ioga, boxe e até zumba, um tipo de malhação inspirado em danças latinas. O resultado disso tudo são hábitos mais saudáveis que em outros países. Seis em cada dez singapurianos se exercitam regularmente, uma das taxas mais altas do mundo (no Brasil, são três em cada dez). Em Singapura, 11% dos adultos estão obesos. A média dos países ricos é de 17%. Os hábitos saudáveis colaboraram para a longevidade da população superar a média dos países ricos desde 1980. Hoje é de 83 anos, três anos acima do padrão na OCDE.
A preocupação com hábitos saudáveis é parte de um esforço nacional maior: usar a medicina de forma eficiente. É uma lógica entranhada há três décadas, quando reformas contra a escalada dos custos médicos, causada por avanços da medicina e hábitos cada vez mais sedentários de uma sociedade em rápida urbanização, mudaram radicalmente a saúde pública dessa ex-colônia do Reino Unido. Até então, o serviço era financiado pelo governo via impostos, num modelo copiado do NHS, sistema de saúde inglês que também serve de referência ao brasileiro SUS. Hoje, o acesso à medicina em Singapura lembra o de um plano particular do Brasil. Funciona assim: um conselho do Ministério da Saúde decide desde os remédios até os tratamentos disponíveis nos hospitais públicos, onde estão 80% dos leitos. A ideia é pressionar médicos, laboratórios e farmacêuticas a cortar custos. Além disso, o governo recolhe até 9% do salário dos trabalhadores num fundo, o Medisave, criado em 1984 para ser uma espécie de garantidor dos gastos médicos. O cidadão só pode usar o recurso em consultas eletivas, como check-up, e em clínicas privadas cadastradas — geralmente consultórios de médicos de família que, por causa do sistema, estão espalhados pela cidade.
Coparticipação salgada
Para assegurar cuidado médico numa emergência, como num tratamento de câncer, o cidadão também depende de soluções que passam por forte regulação do Estado sobre o mercado privado. Para esse tipo de ocasião, o singapuriano tem a opção de contribuir para o Medishield, fundo criado pelo governo em 1990 para complementar a assistência dos planos de saúde privados que operam no país — 60% dos residentes dispõem de coberturas oferecidas por gigantes do setor de seguros, como a americana Prudential e a inglesa Aviva. Embora seja público, o Medishield funciona como um plano de saúde privado, com mensalidades variáveis segundo a idade e a renda do cidadão e com uma coparticipação salgada, de até 1?400 dólares, dependendo do caso. Na prática, essa combinação de capital privado com forte regulação do Estado força pacientes e médicos a tentar soluções mais em conta antes de buscar tratamentos mais avançados e caros. Em compensação, dá para escolher o padrão de atendimento mesmo em hospitais públicos: há desde estadia em quarto coletivo até numa suíte luxuosa. Quem não tem dinheiro recorre ao Medifund, fundo aberto em 1993 com aporte de 3 bilhões de dólares. Pelas regras, a cobertura do Medifund em 12 meses é limitada ao ganho de capital do fundo no ano anterior — garfar o aporte inicial é proibido por lei. Por causa da austeridade, é comum os hospitais públicos manterem comissões para avaliar quem deve ser atendido no Medifund. Segundo dados oficiais, 99% dos pedidos são aceitos. Os três fundos — Medisave, Medishield e Medifund — diluíram a fonte de recursos à saúde. Em 1980, 70% do gasto com saúde vinha de impostos. Hoje, só 30% vêm. Para muitos ocidentais acostumados a um sistema público que também é universal, o excesso de cobranças ao cidadão em Singapura pode soar perverso. Mas, para os locais, o modelo oferece a chance de haver dinheiro para atender todos, ainda que em padrões distintos de qualidade. “Em Singapura, quem é pobre acessa o sistema. Quem é rico pode ir a outro país caso nada agrade”, diz o médico singapuriano Jeremy Lim, sócio da consultoria global Oliver Wyman e autor do livro Myth or Magic (“Mito ou mágica”, numa tradução livre) sobre a saúde de seu país.
O Brasil tem algo a aprender com Singapura? O enorme contraste entre os países dificulta a análise. Em seis décadas, o governo de Singapura nunca trocou de mãos. O atual primeiro-ministro, Lee Hsien Loong, é filho de Lee Kuan Yew, líder que declarou a independência em 1965, e as eleições locais são criticadas pela falta de transparência. Por outro lado, o país é o sexto menos corrupto do mundo, segundo a ONG Transparência Internacional. Nada mais diferente do Brasil, que sofre com o vaivém de políticas públicas a cada troca de governo e onde a corrupção grassa solta (estamos no 96o lugar entre 180 países na lista da Transparência Internacional). A ênfase no direito à saúde gratuita e no modelo de financiamento do SUS via impostos, tudo isso consagrado pela Constituição de 1988, é um entrave e tanto a mudanças drásticas na gestão da saúde brasileira da forma como ocorreu em Singapura. Mas não custa lembrar que a gestão privada da saúde pública no Brasil, embora bastante diferente do modelo singapuriano, vem trazendo bons resultados. Um exemplo são os postos de saúde e hospitais públicos geridos por organizações sociais, que operam nos moldes da iniciativa privada. Livres das amarras estatais, essas unidades frequentemente entregam saúde de melhor qualidade — e por um custo mais baixo. As situações de Singapura e Brasil são bem diferentes. Mas é possível tirar lições de quem consegue oferecer serviço adequado com o gasto controlado.
NO REINO UNIDO, A META É A EFICÁCIA
O sistema de saúde público britânico completa 70 anos e lida com o desafio de melhorar o atendimento sem prejudicar as finanças
Os britânicos têm uma relação de amor e ódio com seu sistema público de saúde, conhecido pela sigla NHS (National Health Service). Fundado há exatos 70 anos, o serviço, que inspirou a criação do SUS no Brasil, é visto pela população como uma das grandes conquistas britânicas no século 20. Ele é a instituição mais admirada no país, junto da monarquia e do Exército.
O apreço, porém, não significa que o atendimento esteja livre de críticas. No último ano, aumentou o número de reclamações sobre a demora para marcar consultas ou para ser atendido num hospital. Em abril, a quantidade de pacientes que esperam mais de 18 semanas (limite considerado aceitável) para receber tratamento especializado chegou a 500?000, a maior em dez anos. O problema tem duas explicações.
Uma é o aumento da procura por serviços de saúde. A quantidade de internações, por exemplo, subiu 28% em uma década. A segunda é uma questão financeira. Pressionado para reduzir o déficit fiscal, o governo britânico impôs limites ao reajuste de salários e ao aumento do orçamento do NHS. Em meio às restrições nos gastos, o sistema de saúde procurou formas de usar os recursos com mais eficiência. Um programa pioneiro chamado RightCare é uma das medidas de maior sucesso. Criado em 2010, o programa avaliou cada uma das 207 divisões regionais do NHS procurando os lugares em que o tratamento de doenças — como asma, diabetes e certos tipos de câncer — era deficiente.
O objetivo era entender por que regiões com a mesma demografia e a mesma incidência de doenças conseguiam ter resultados melhores do que as outras. Daí por diante, os locais mais atrasados foram incentivados a adotar os mesmos procedimentos daqueles mais bem avaliados. A medida é importante porque, antes, era comum um paciente deixar de receber o tratamento mais recomendado na hora certa, levando a complicações no futuro — e ao uso de terapias e remédios mais caros. “Quando a prevenção falha, as pessoas adoecem mais tarde, e isso leva ao uso excessivo de tratamentos que não seriam necessários. Essa é uma das maiores causas, senão a maior, do desequilíbrio no sistema de saúde”, diz Matthew Cripps, diretor financeiro do NHS da Inglaterra e responsável pelo programa.
Apenas com pequenos ajustes na forma de tratar os pacientes, o NHS economizou no ano passado 610 milhões de libras (3,1 bilhões de reais), valor que ficou acima da meta de 490 milhões de libras. Hoje, o programa é uma das maiores iniciativas para tornar o sistema de saúde financeiramente mais sustentável. Medidas como essa são essenciais para o NHS reduzir a fila dos atendimentos e continuar a ser um símbolo de orgulho para os britânicos nos próximos 70 anos.
AS APOSTAS NA LONGEVIDADE
Elas são uma nova obsessão dos investidores no mundo todo e têm objetivos que vão de até, quem sabe, atingir a eternidade
O pai do biólogo americano Nathaniel David começou a sofrer os sintomas de osteoartrite na coluna cervical quando ainda era adolescente. Hoje, aos 78 anos, sua postura é curvada e ele não consegue mais se mover. David, de 50 anos, descobriu há três anos que herdou a doença degenerativa do pai e está numa corrida contra o tempo para não ter o mesmo destino. Em maio, o biólogo molecular com doutorado pela Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, conseguiu captar 85 milhões de dólares para desenvolver tratamentos que devem ajudar os 31 milhões de pessoas que já sofrem com a doença no país. O dinheiro veio de uma oferta inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) de sua startup Unity Biotechnology na bolsa americana Nasdaq. Sediada em São Francisco, no coração do Vale do Silício, a Unity está desenvolvendo medicamentos para prevenir, retardar ou até mesmo reverter doenças relacionadas à idade — e, de quebra, expandir a expectativa da vida humana. Em 2016, a empresa já havia chamado a atenção ao receber 116 milhões de dólares de investidores, entre eles Jeff Bezos, fundador do gigante de comércio eletrônico Amazon, e Peter Thiel, um dos criadores da empresa de pagamentos PayPal. “Imagine ficar velho sem ficar velho”, disse David recentemente em Paris, na França, num evento de startups cujas tecnologias prometem mudar o mundo. Em junho, a empresa realizou o primeiro teste clínico de uma de suas drogas — justamente a de osteoartrite — em uma pessoa.
A Unity Biotechnology é uma das muitas startups que apostam na ampliação da longevidade. Se por muito tempo esse setor foi sinônimo de cremes de beleza e Botox, hoje ambiciosas startups espalhadas por Estados Unidos, Europa e Ásia têm objetivos que vão desde acabar com doenças que impedem o envelhecimento saudável até expandir a vida humana em 20 anos, 50 anos ou, quem sabe, até a eternidade. Com seu IPO, a Unity tornou-se a segunda startup de longevidade listada na bolsa. Em janeiro, a Restorbio, que também desenvolve remédios para doenças relacionadas ao envelhecimento, levantou 98 milhões de dólares em sua oferta pública de ações. “Há muita expectativa sobre o potencial de melhora da saúde tratando doenças degenerativas. Nosso foco é aplicar a ciência para ajudar as pessoas a viver com mais saúde e por mais tempo”, afirma o israelense Chen Schor, cofundador e presidente da Restorbio. Se antes os estudos sobre o tema estavam confinados em laboratórios de universidades, eles ganharam impulso com a indústria da tecnologia. “Sempre houve investidores habilidosos e confortáveis com alto risco e alto retorno, mas as pesquisas que tratavam de longevidade não se enquadravam nessa categoria. Com os avanços recentes, as empresas que lidam com o prolongamento da vida agora estão dentro de uma faixa de risco que permite investimentos”, afirma Aubrey De Grey, um dos maiores pesquisadores sobre envelhecimento e diretor da ONG dedicada à longevidade Sens Research Foundation.
O valor dos investimentos em startups de biotecnologia especializadas em saúde humana chegou a 9 bilhões de dólares em 2017. Apenas nos dois primeiros meses deste ano, outros 2,8 bilhões foram captados por empresas novatas. Uma das maiores aceleradoras do mundo, a Y Combinator anunciou no início do ano que está à procura de startups de longevidade que estejam em fase inicial para fazer aportes que podem variar de 500?000 a 1 milhão de dólares. A ONG Academia Nacional de Medicina dos Estados Unidos também lançou uma premiação para pesquisas sobre longevidade que totaliza 100 milhões de dólares. À medida que a oferta de dinheiro se espalha pelo setor, a morte é tratada cada vez menos como um processo biológico natural e mais como um cadeado com um segredo. Para descobrir a solução, portanto, seria preciso encontrar uma combinação de milhões — talvez, bilhões — de possibilidades. “Creio que o corpo perde a resiliência com a idade, perde a capacidade de responder aos desafios. Precisamos descobrir por que isso acontece e parar esse processo. O envelhecimento é algo codificado e, se algo está codificado, é possível descobrir seu segredo”, afirma o médico sul-coreano Joon Yun, que comanda o Palo Alto Investors, fundo americano de investimentos de 1 bilhão de dólares, que doou 2 milhões de dólares ao prêmio da Academia Nacional de Medicina, além de lançar seu próprio prêmio na área no valor de 1 milhão de dólares.
Antes mesmo de se tornarem desejadas pelo mercado financeiro, as startups da longevidade contaram com o dinheiro — e o interesse pessoal — dos bilionários do Vale do Silício nos últimos anos. Em 2013, Sergey Brin e Larry Page, os fundadores da empresa de tecnologia Google, foram precursores na área ao criar a Calico, empresa de pesquisa em longevidade. Os dois esperam, entre outras coisas, ajudar o próprio Brin — que tem uma variante genética que o predispõe à doença de -Parkinson. O fundador da empresa de softwares Oracle, Larry Ellison, gastou 430 milhões de dólares em pesquisas de longevidade depois de afirmar que “a morte nunca fez nenhum sentido para mim”. Peter Thiel, do PayPal, já declarou que espera algum dia poder “curar a morte”, e é constantemente associado ao boato de que faz transfusões sanguíneas com sangue de adolescentes para ficar mais jovem — uma espécie de drácula do século 21. A ideia pode parecer maluca, mas nada é demais para o Vale do Silício. Fundada em 2016, a startup Ambrosia Plasma faz transfusões com sangue de adolescentes para clientes com 35 anos ou mais por um preço inicial de 8?000 dólares e afirma ter 150 clientes. Ninguém supera Jeff Bezos quando o assunto é saúde — sobretudo a dele. Um magrelo desengonçado no fim dos anos 90, época de criação da Amazon, Bezos, hoje com 53 anos, vem chamando a atenção por seus músculos avantajados. A aparência, segundo ele, é fruto de uma rotina de exercícios desde 2013. Mas o bilionário tem investido tempo e dinheiro no tema saúde. Em 2014, colocou 25 milhões de dólares em uma companhia dedicada ao combate ao câncer, a Juno Therapeutics. No ano passado, fez um aporte de valor não revelado na startup Grail, especializada no diagnóstico rápido de câncer. No início deste ano, Bezos anunciou uma parceria com o megainvestidor Warren Buffett, presidente do conglomerado Berkshire Hathaway, e o banqueiro Jamie Dimon, presidente do banco JP Morgan Chase. O objetivo do trio é criar uma empresa sem fins lucrativos que ofereça serviços de saúde acessíveis aos trabalhadores de suas empresas. O último negócio veio no final de junho: a Amazon anunciou a aquisição da loja digital de remédios PillPack, em um negócio avaliado em 1 bilhão de dólares.
Em busca da fonte da juventude
As startups de longevidade de certa forma se beneficiam de décadas de estudos que, no início dos anos 90, chegaram a um ponto decisivo: num verme minúsculo chamado Caenorhabditis elegans, verificou-se que uma única mutação genética podia prolongar sua vida, enquanto outra impedia que isso ocorresse. A descoberta de que a longevidade poderia ser manipulada com algumas modificações genéticas impulsionou novas pesquisas ao redor do mundo para aumentar a vida do verme (que chegou a ser multiplicada por dez em laboratórios) e posteriormente a de ratos (que chegaram a viver o dobro). Os desenvolvimentos seguintes mostraram que as coisas não são tão simples assim e que não existe um gene humano único ligado à expansão da vida. Por isso, há startups trabalhando em diversas frentes para resolver a equação da longevidade. A americana Insilico Medicine, de Baltimore, usa a inteligência artificial para analisar gigantescas bases de dados com o objetivo de identificar os fatores moleculares que influenciam o tempo de vida. “Há dois anos eu precisava bater de porta em porta para explicar o que a companhia fazia. Agora, os investidores vêm nos procurar, principalmente por causa de nossa plataforma de inteligência artificial, e descobrem quanto isso é importante para as pesquisas de longevidade”, afirma Alex Zhavoronkov, presidente da Insilico Medicine.
Apesar do crescente número de startups nesse mercado, poucas já chegaram ao ponto de oferecer produtos à população em geral. A startup nova-iorquina Elysium Health é uma das exceções. Seu primeiro produto, um suplemento chamado Basis, é vendido pelo site por 60 dólares (custo da dose mensal) e promete aumentar e sustentar os níveis de NDA no corpo. A NDA é uma coenzima necessária para processos biológicos essenciais, incluindo a criação de energia e a regulação dos ritmos cardíacos. Geralmente, os níveis de NDA começam a cair a partir do fim da segunda década da vida humana. “Acreditamos que a pesquisa tem de andar junto com o desenvolvimento de produtos que vão beneficiar a população. Não dá para fazer só um ou outro”, afirma o americano Eric Marcotulli, presidente e cofundador da Elysium e ex-sócio do Sequoia Capital, um fundo que administra 14 bilhões de dólares. A startup já recebeu 31 milhões de dólares em aportes desde sua fundação, há dois anos, e está realizando uma nova rodada de investimentos. No Brasil, o número de startups de saúde passa de 260, mas muitas estão focadas em desenvolver soluções para facilitar a vida de idosos. São produtos como, por exemplo, o da startup MaturiJobs, que criou um site para oferecer vagas de emprego a pessoas com mais de 60 anos.
Embora a indústria da longevidade esteja em franca expansão, ainda é difícil estimar quanto essas -startups podem valer no futuro. O mercado de produtos e tratamentos estéticos relacionados ao envelhecimento devem alcançar 288 bilhões de dólares no mundo neste ano, segundo a empresa de pesquisas Orbis. Mais do que cremes para rugas, investidores e consumidores querem soluções para doenças relacionadas ao envelhecimento. “Tenho certeza de que esse mercado se tornará maior do que qualquer outro que já vimos. Todos querem viver mais e de forma mais saudável”, diz o investidor britânico Jim Mellon, que há cerca de sete meses abriu um fundo especializado em longevidade, o Juvenescence, e espera investir os 63 milhões de dólares captados ainda em 2018. A evolução, no entanto, ainda é difícil de prever. “É um mercado diferente dos outros. Não é como a indústria da tecnologia, que apresenta resultados rapidamente e causa uma disrupção do dia para a noite. Ainda há muita pesquisa a ser feita”, afirma a americana Alexandra Bause, sócia do fundo de investimentos em longevidade Apollo Ventures, da Alemanha. Mesmo que se encontre a cura para as doenças relacionadas ao envelhecimento, como o câncer, as pesquisas mostram que isso elevaria a média de vida humana para algo em torno de 90 anos (ante a atual expectativa de 71,4 anos, na média mundial). Enquanto as startups de longevidade procuram o caminho para que possam viver (muito) mais e melhor, a receita para envelhecer bem continua a indicada pelos médicos: dieta saudável, exercícios físicos, pouco estresse e, de vez em quando, uma taça de vinho.
VELHOS E FORTES
Para enfrentar os desafios do envelhecimento da população, o Japão procura um mercado de trabalho com mais idosos e mais equidade
Localizada em Sumida, na região metropolitana de Tóquio, a Hamano Products, pequena indústria de metalmecânica, parece uma janela para o futuro. Uma de suas principais apostas é uma parceria para desenvolver uma turbina eólica com um novo design, atualmente em fase de testes. A empresa acredita que seu modelo é à prova de tufão, sonha com uma fatia do mercado japonês e, quem sabe, do mundial. Mas, independentemente do que venha a ocorrer com a turbina, a Hamano já é uma empresa, digamos assim, à frente de seu tempo. Quase 20% de sua mão de obra tem mais de 50 anos de idade. Em 2011, a procura por um novo operador para uma das máquinas de estampagem de metal de sua linha acabou quando encontraram Noboru Saito, na época com 69 anos. No 1o andar da fábrica da Hamano, onde um aspirador à disposição deixa claro que nem a poeira é permitida ali, Saito faz suas tarefas e serve de consultor para os colegas mais novos. Ainda disposto e forte aos 76 anos, Saito não tem a menor ideia de quando vai se aposentar.
O Japão está na vanguarda da onda do cabelo branco. A expectativa de vida, de 83,7 anos, é a maior do mundo. “Os japoneses estão vivendo mais graças a fatores como um sistema de saúde universal, eficiente e relativamente acessível”, diz Andrew Gordon, professor de história do Japão na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. A permanência de pessoas mais velhas no mercado de trabalho também tem relação com a contínua queda da taxa de natalidade. No final dos anos 70, nasciam cerca de 2 milhões de crianças japonesas por ano. Em 2016, o número de nascimentos caiu para menos de 1 milhão pela primeira vez em décadas, e a previsão é que a queda continue. Líder em longevidade e, ao mesmo tempo, integrante do pelotão dos países de baixa natalidade, o Japão fica devendo no cálculo da demografia.
A população japonesa está encolhendo desde o começo desta década, quando atingiu o pico de 128 milhões. Pelas estimativas do Instituto Nacional de Pesquisa da População e de Seguridade Social do Japão, os japoneses serão 88 milhões em 2065. Sabendo que há um limite para o uso de expressões do tipo “os 80 anos são os novos 70, os 70 anos são os novos 60 e os 60 são os novos 50”, muitos especialistas apontam a necessidade de o Japão recorrer à imigração. Mas essa parece ser uma opção politicamente inaceitável num país onde a unidade étnica é vista como uma virtude. O influxo anual de imigrantes está na casa dos 50 000 e inclui estudantes e trabalhadores temporários. Para recuperar a população já perdida e estabilizar o encolhimento, o país precisaria atrair imigrantes permanentes e o fluxo teria de ser quase dez vezes maior.
O envelhecimento visto no Japão é uma prévia do que está por vir, em menor ou maior medida, em várias partes do mundo. A população mundial está ficando velha. Em 2015, apenas uma pessoa tinha 60 anos ou mais em cada grupo de oito. Na metade deste século, a proporção chegará a uma para cinco, segundo prevê a Organização das Nações Unidas. Em 2030, o mundo terá mais idosos do que crianças de até 9 anos. O quadro é atualmente mais agudo em países ricos — além do Japão, Itália, Alemanha, Finlândia e Portugal enfrentam essa questão. Mas esse fenômeno será sentido também em países em desenvolvimento. “Em termos demográficos, o Japão hoje é parecido com o que o Brasil será daqui a algumas décadas”, diz o médico brasileiro Alexandre Kalache, presidente da Aliança Global de Centros Internacionais da Longevidade, uma rede de estudos. A fatia de pessoas com 60 anos ou mais na população brasileira deverá sair dos atuais 13% para 29% em 2050 pelos cálculos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Nem todos os países que estão ficando mais velhos vão ver o encolhimento da população. Para que isso ocorra é preciso que o número de nascimentos e a imigração caiam a um nível inferior ao de mortes. As Nações Unidas estimam que nas próximas três décadas esse vai ser o caso de 51 países, entre os quais Bulgária, Croácia, Polônia e Ucrânia. No Brasil, o encolhimento vai demorar um pouco mais para ocorrer. A população brasileira deve continuar crescendo até 2050, alcançando 232 milhões. Olhando mais para a frente é que o número começa a cair e pode chegar a 190 milhões no final do século.
Numa escala global, o envelhecimento é resultado da vitória da civilização. É um claro sinal de mais acesso à educação, a oportunidades de emprego e a serviços de saúde muito mais tecnológicos e eficientes do que nossos pais e avós tiveram. Ao mesmo tempo, também é verdade que a conquista da longevidade traz novos desafios. Que o diga o Japão. A proporção de japoneses em idade de trabalho em relação à dos que são dependentes está caindo, o que significa menos gente para pagar as contas de aposentadorias e serviços de saúde e fazer a economia crescer. Em conversas no banco central do Japão, economistas não escondem a preocupação. Analistas do setor privado concordam. “Olhando para a frente, o envelhecimento da população é o maior desafio econômico do Japão”, diz Takahiro Sekido, estrategista em Tóquio do banco japonês MUFG, parte do Mitsubishi UFJ Financial Group, um dos mais importantes grupos do setor financeiro no país.
Como demografia é destino, no sentido de que as tendências não são revertidas rapidamente, a opção é acionar as forças atualmente subutilizadas. Uma delas é o grupo dos idosos. O país precisa de mais velhinhos que trabalhem, como Saito, o operário da foto ao lado. No Japão, a aposentadoria é aos 65 anos de idade, mas existe a percepção dentro do governo de que será necessário aumentá-la. Quase 30% dos homens com 65 ou mais anos continuam trabalhando. Na Alemanha, o percentual é de 8%; e na França, de 3%. Como ressalta Yukihiro Matsuyama, diretor de pesquisa no Canon Institute for Global Studies, um centro de pesquisa com sede em Tóquio, o problema é que nem todo mundo concorda com as mudanças. “Quando se vive na ‘democracia do cabelo branco’, com muitos eleitores idosos, os políticos relutam em alterar certos benefícios”, diz Matsuyama.
Às margens do Rio Katsura, que corta a cidade de Kyoto, a 3 horas e meia de trem de Tóquio, Katsuhito Matsumi faz uma pausa no trabalho de remoção de pedras com uma retroescavadeira e conta que contribui para a previdência pública e também para um fundo privado. Aos 53 anos, dono de uma microempresa de construção com apenas quatro empregados, Matsumi diz que já fez as contas. Os dois fundos só vão gerar uma renda que ele considera satisfatória se continuar trabalhando até os 80 anos. Matsumi não pretende parar até lá, mas se pergunta se terá saúde para continuar fazendo o trabalho pesado de molduras de madeira para concreto, sua especialidade. “Se o governo aumentar a idade mínima da aposentadoria e eu não tiver força física para trabalhar, vou me sentir como se estivesse sendo morto”, diz Matsumi.
Womenomics
Ainda que o governo consiga levar situações como a de Matsumi em conta, vença as resistências a mudanças e passe uma lei com uma nova idade mínima, o problema da falta de braços não estará resolvido. Outra meta igualmente importante é elevar a presença das mulheres no mercado de trabalho. Atingindo os dois objetivos, a situação muda de cara. “Se a participação de mulheres de 31 a 40 anos e de homens de 61 a 70 subir no mercado de 10 a 15 pontos percentuais, o tamanho da força de trabalho deverá se estabilizar até 2030”, disse recentemente numa palestra nos Estados Unidos Atsushi Seike, professor de economia do trabalho e ex-presidente da Universidade Keiko.
A executiva Mika Matsuo chefia o setor de recursos humanos da AIG, multinacional americana do setor de seguros, no Japão e na Coreia do Sul, à frente de uma equipe de 80 funcionários. Depois de terminar a pós-graduação em administração nos Estados Unidos nos anos 80, ela voltou para o Japão. Quando casou, combinou com o marido que não deixaria de investir na carreira mesmo após o nascimento do filho. Trabalhou por mais de uma década no Citibank, foi para o JP?-Morgan Chase, outro banco americano, passou pela agência de avaliação de risco Moody’s e pelo banco Tokyo Star — a maior parte do tempo em cargos do alto escalão. Um dos problemas do Japão é que trajetórias como a de Mika são raríssimas. As mulheres são metade da população, mas ocupam menos de 20% dos cargos da gerência para cima. O índice é baixo em comparação ao de Estados Unidos, boa parte da Europa e também do Brasil — todos acima de 35%. As japonesas também são sub-representadas nos chamados “empregos para toda vida” das grandes corporações e acabam tendo uma fatia desproporcionalmente grande dos empregos mal pagos de meio turno. No quesito igualdade de pagamento para homens e mulheres com a mesma posição, o Japão fica na posição número 52 no mundo, de acordo com o mais recente relatório sobre as distâncias entre gêneros do Fórum Econômico Mundial, com sede na Suíça. É melhor do que o Brasil, na 114a posição, mas ainda assim é um papelão em comparação com outros países ricos. “Por causa do problema do envelhecimento, o governo tem tentado mudar essa situação”, afirma Mika.
Em 2015, o primeiro-ministro Shinzo Abe lançou a ideia de “ativar” a participação das mulheres. O objetivo de Abe era incentivar a entrada feminina no mercado de trabalho e sua ascensão profissional. Pela nova lei aprovada no Parlamento naquele mesmo ano, as empresas com mais de 300 empregados passaram a ter a obrigação de analisar sua situação em áreas como número de mulheres recrutadas, fatia feminina nos cargos de gerência e número de horas trabalhadas por todos os funcionários. Para pelo menos uma das áreas, as empresas tiveram de traçar uma meta. Parte delas escolheu a redução da carga horária. Fazia todo o sentido. “Uma das razões que explicam o baixo número de gerentes mulheres é a cultura de jornadas longas”, diz Makiko Tachimori, presidente da Harmony Jinzai, empresa de procura de executivas com sede em Tóquio.
Quando o assunto é hora extra, os japoneses são um páreo duro. De acordo com a economista Yoko Tanaka, professora de estudos japoneses na Universidade de Tsukuba, que faz pesquisas por amostras mais detalhadas do que as conduzidas pelo governo, a média de horas trabalhadas por semana está em 53, impossível para mulheres com filhos que não contam com a ajuda do marido, situação que é quase uma regra no Japão. De um grupo de sete países ricos, que inclui Japão, Estados Unidos, Inglaterra, França, Alemanha, Suécia e Noruega, os japoneses são os pais de filhos pequenos que menos ajudam a mulher nas tarefas domésticas e nos cuidados com a criança — em média, 1 hora e meia por dia. Os franceses, os mais próximos, ajudam o dobro do tempo. Num país onde impera a hora extra, o papel destinado ao homem é trabalhar e se desconectar das coisas da casa.
Como às vezes ocorre, as regras mudam, mas a cultura é mais forte. Uma das novas palavras surgidas depois de começarem as tentativas de reduzir as horas extras foi furarimen. É a fusão de duas outras expressões. Furari frurari, que significa “caminhar de forma trôpega”, e sararimen, uma corruptela do inglês salary men, que no Japão é sinônimo de “homens provedores que trabalham longas horas”. Embaladas pela nova lei, empresas começaram a apagar as luzes e a expulsar os funcionários dos escritórios. Mas boa parte deles, em vez de ir para casa dividir com a mulher os afazeres domésticos, passou a encher os bares ou a tomar bebidas alcoólicas em parques. Com os sararimen caminhando de forma meio furari frurari ao sair de bares e parques, não demorou a surgir a nova palavra. Há ainda outro fenômeno chamado –mochikaeri-zangyo. São funcionários de empresas que reduziram as horas, mas não a carga de trabalho. Esses acabam enchendo os cafés ou vão para casa trabalhar.
Mesmo com todos os percalços, a reforma de Abe costuma ser elogiada por grupos de feministas. Eles argumentam que os papéis de homens e mulheres não mudam de uma hora para a outra. E dizem que algumas transformações começam a ser sentidas. Em março, a Toyota anunciou Teiko Kudo, alta executiva do Sumitomo Mitsui Banking Corp, uma instituição financeira, como a primeira mulher a ter lugar em seu conselho de administração. O número de funcionários públicos que passaram a fazer uso da licença-paternidade também está subindo. De quase nada chegou a 10% no ano passado. É uma vitória dos ikumen, neologismo criado para descrever uma nova geração de homens que se envolvem ativamente na criação dos filhos. A esperança é que um maior apoio dos homens torne a maternidade menos assustadora e ajude as mães a não abandonar a carreira profissional.
A resposta sobre se o Japão conseguirá enfrentar os desafios do envelhecimento e o encolhimento da população vai depender de vários embates na sociedade. Um deles é entre idosos como o operário de 76 anos, ainda na ativa na fábrica em Tóquio, e profissionais como o dono da pequena construtora em Kyoto, contrário à mudança da idade mínima para aposentadoria. Há também a disputa entre mulheres e chefes machistas, que pagam mais a homens no mesmo cargo. E, sim, existe ainda o embate entre os pais ativos na criação dos filhos e os trôpegos alcoolizados. Pelo ganho possível, todas são batalhas que vale a pena enfrentar.
O CAMINHO DA HOLANDA
O país, que sempre foi conhecido pelas bicicletas que lotam as ruas, um símbolo da qualidade de vida, agora ostenta um título ainda mais importante
A enfermeira Marjolijn Onvlee, de 52 anos, começa sua jornada de trabalho diária às 8 da manhã num escritório com um grupo de dez enfermeiros na Rua Vrolikstraat, na zona leste de Amsterdã. No computador, estão todas as fichas com o histórico de saúde dos sete pacientes que ela vai visitar naquele 8 de março, uma quinta-feira de sol fraco e temperatura baixa na metrópole holandesa. Marjolijn é enfermeira da Buurtzorg, um dos negócios criados na Holanda para prestar serviços de enfermagem em domicílio a idosos, pessoas com dificuldade de locomoção, em recuperação de uma cirurgia ou com algum vício, como álcool e drogas. Criada em 2007, a Buurtzorg tem 850 grupos de enfermeiros, agregando 10.000 profissionais que atendem 70.000 pacientes. Logo que chega, Marjolijn atualiza os prontuários, discute os casos com os colegas. Traça metas a ser alcançadas nos tratamentos e analisa o que já foi conquistado, visando à melhoria da saúde ou da qualidade de vida dos pacientes. “Organizamos tudo antes do atendimento domiciliar, quando orientamos a família sobre o cuidado com o paciente, garantimos que ele siga o tratamento e simplesmente fazemos companhia quando precisa”, diz ela.
EXAME pôde acompanhar uma dessas visitas. Às 3?da tarde, a enfermeira pegou sua bicicleta rumo à residência do último paciente do dia — com esta repórter na garupa. Não demorou nem 10 minutos e ela estava na casa de Martijn de Zeeuw, um diretor de escola aposentado, de 86 anos, que vive sozinho num apartamento de um quarto em frente ao Oosterpark, prImeiro grande parque público municipal, aberto em 1891. Diabético, o paciente não consegue mais aplicar a insulina sozinho devido a um problema nas pernas que lhe dificulta a mobilidade e a capacidade de dar conta dos afazeres domésticos. “Os enfermeiros me ajudam a vestir a roupa, tomar a medicação e sempre me lembram de não comer chocolate. Não que eu já não saiba”, diz Zeeuw, em tom de brincadeira. “Mas é sempre bom ter al-guém que se preocupa com minha saúde todos os dias.”
Depois de meia hora na casa do paciente, Marjolijn pega novamente a bicicleta e pedala mais 15 minutos pela vizinhança até chegar à clínica onde está Susan de Korte, de 48 anos, a médica de Zeeuw. Não é todo dia que a enfermeira vai até o consultório, mas ela sempre tem em mãos os telefones dos especialistas que acompanham seus pacientes. Ali, elas conversam sobre a saúde de Zeeuw e discutem se é preciso mudar a medicação, algo que só pode ser feito com autorização médica. Nessa clínica, Susan atende cerca de 30 pacientes por dia em consultas que geralmente são rápidas, mas que podem demorar mais tempo se for preciso fazer algum procedimento médico de menor complexidade. Sempre há um espaço na agenda para quem precisa ser atendido no mesmo dia. Além disso, Susan ainda tem tempo para visitar pacientes em casa. “Todas as pessoas que atendo precisam estar próximas da clínica numa distância que permita o deslocamento em 15 minutos para os casos de emergência”, diz Susan.
Saindo do consultório, Marjolijn vai para casa, finalizando mais um dia de trabalho. Sua rotina, no entanto, deixa exemplos de como funciona o sistema de saúde da Holanda, que tem ganhado destaque. O país, que sempre é lembrado pelas bicicletas que lotam as ruas de suas cidades, um símbolo da qualidade de vida da população, ostenta o título de provedor do melhor sistema de saúde europeu. Nos últimos sete anos, a Holanda se manteve no topo do ranking da Health Consumer Powerhouse, organização sueca que funciona como um observatório do consumidor para serviços de saúde. O ranking, iniciado em 2005, analisa 35 países e considera 46 indicadores em seis grupos: os direitos dos pacientes, o acesso aos serviços, os resultados dos trata-mentos, a quantidade de serviços, o incentivo à prevenção e o uso de medicamentos. Na pontuação, que vai até 1 000, a Holanda alcançou 924 na edição deste ano. Os poucos pontos perdidos se devem a poucos números baixos (para o padrão europeu) de alguns indicadores, como demora de 300 dias para um novo medicamento entrar no sistema de subsídio do governo — ou seja, para um lançamento chegar a um preço acessível à população.
O que destaca o sistema holandês — e o senhor Zeeuw diz concordar — é a atenção especial ao cuidado primário, para controlar as doenças crônicas e evitar a hospitalização. O objetivo tem sido alcançado com uma rede de quase 14?000 médicos de família, o equivalente a 0,8 para cada 1000 habitantes, que estão próximos da casa dos pacientes e sempre têm horário disponível, pessoalmente ou por telefone. É como o programa de saúde de família do sistema único brasileiro, que tem médicos em postos nas periferias, mas com um adendo: só vai a um hospital holandês para exames, cirurgias ou consultas com um especialista quem tiver uma carta de recomendação do médico de família ou sofreu um acidente. Os hospitais não estão de portas abertas a quem desejar. Na Holanda, os médicos de família são capazes de resolver 96% dos casos. E quem precisa de serviço hospitalar é atendido rapidamente: a espera para uma cirurgia eletiva, aquela que pode levar mais tempo para ocorrer, é de menos de um mês, em média, para algumas doenças. “A rede de médicos de família torna o acesso ao sistema fácil e o relacionamento com o paciente mais pessoal”, diz Nick Guldemond, professor no Instituto de Política de Saúde e Gestão da Universidade Erasmus, em Roterdã.
Reforma
Contribui para o desempenho do sistema holandês uma reforma feita há mais de uma década. Até 2006, os dois terços de cidadãos de menor renda dispunham de um seguro social de saúde, bancado e gerido pelo governo federal, que tinha uma rede oficial de hospitais e clínicas para o atendimento (alguns ainda se mantêm). Os demais 35% da população eram obrigados a contratar um seguro privado, num mercado pouco regulado. A divisão antiga lembra o esquema brasileiro, com uma massa de pessoas recorrendo ao Sistema Único de Saúde e os demais aos planos privados. O governo holandês decidiu mudar o modelo devido à escalada dos custos, ao difícil acesso aos serviços e à baixa qualidade do atendimento. Desde 2006, todo cidadão é obrigado a comprar um plano de saúde administrado por uma seguradora, a qual pode prestar os serviços ou contratar hospitais, clínicas e médicos que o façam. Para menores de 18 anos e pessoas de baixa renda, a contratação do plano é subsidiada. De resto, o papel do governo ficou restrito a determinar as políticas públicas e regular o mercado. “O principal mérito holandês foi remover os políticos das decisões operacionais do dia a dia”, diz Arne Bjornberg, presidente executivo da Health Consumer Powerhouse.
O sistema holandês é altamente competitivo. Segundo as regras, as seguradoras não podem recusar nenhum cliente, nem que seja de um grupo de risco elevado. Por isso, o governo, as empresas e os cidadãos de maior renda contribuem com impostos que formam um fundo para bancar as perdas das seguradoras com pacientes que demandam mais cuidados e acabam gerando mais custos. Um dos reflexos desse sistema é que ele, ao final, dá mais poder de escolha aos próprios pacientes. Eles decidem o seguro, o médico de família e o hospital que os atenderão, de acordo com a cobertura em sua região. No total, 24 empresas oferecem seguros e, a cada ano, 7% dos cidadãos decidem trocar de provedor, devido aos preços ou à qualidade do atendimento. Além disso, a participação dos cidadãos se dá de outra forma: existem 300 associações de pacientes, que são chamadas a votar nas tomadas de decisão de políticas públicas e na regulamentação do setor. “A reforma foi minuciosamente planejada para que um sistema de concorrência funcione”, diz Francesca Colombo, diretora da divisão de Saúde da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico, que reúne as nações mais ricas. “Certamente é um bom exemplo prático para países com sistemas similares.”
Há uma corrida das seguradoras na Holanda para oferecer os melhores preços e, portanto, elas buscam reduzir os custos. Na prática, isso acontece quando as seguradoras pagam os hospitais e as clínicas de sua rede com base num preço de referência para tratamento, exame ou cirurgia realizados. Isso significa que o hospital ou a clínica vão receber um valor predeterminado e, se conseguirem gastar menos, sobrará mais ao final do mês como lucro. No médio prazo, isso tende a fazer o preço de referência dos serviços cair, beneficiando todo o sistema. Outra forma de reduzir os custos é a seguradora contratar empresas que acompanham de perto os pacientes, como o que ocorre com a Buurtzorg, da enfermeira Marjolijn. As seguradoras também financiam organizações que visam trazer mais eficiência e melhor atendimento ao sistema.
No Centro Médico da Universidade Radboud, em Nijmegen, uma cidade universitária do leste da Holanda, próxima à fronteira com a Alemanha, as seguradoras investem numa organização chamada ParkinsonNet. Ela é voltada para os pacientes com a doença de Parkinson, cujo número deve alcançar 100?000 no país até 2020. A organização oferece uma formação a especialistas que tratam da doença, os quais podem pagar uma taxa para se tornar membros. Ela ainda lança procedimentos-padrão de tratamento, baseando-se em evidências de pesquisas sobre a doença. Até agora, já foram treinados 3?000 profissionais de 12 especialidades. Além disso, uma rede social foi montada para que o paciente possa encontrar o médico desejado. Criada em 2004, a ParkinsonNet já foi capaz de reduzir à metade o número de acidentes com fratura nos quadris das pessoas com a doença de Parkinson, diminuindo a hospitalização. “A economia por paciente é de 439 dólares por ano, bem maior do que o custo para manter a rede. É por isso que as seguradoras continuam nos financiando”, diz Lonneke Rompen, responsável pela área internacional da ParkinsonNet, que replica o modelo na rede californiana Kaiser Permanente.
Uma parte do sucesso de uma organização como a ParkinsonNet está na tecnologia. O Centro Médico da Universidade Radboud tem sido apontado como um dos mais digitalizados da Holanda. Na ala leste há uma equipe de dez pesquisadores e especialistas em políticas públicas que trabalham exclusivamente para implementar novas tecnologias que possam ser usadas pelos funcionários e pelos pacientes. Alguns médicos e enfermeiros do hospital passam por lá uma vez por semana para contribuir para os programas de pesquisa. O ambiente, parecido com o de uma startup, tem impressoras 3D para reproduzir partes do corpo ou tumores, por exemplo. O departamento desenvolveu o Facetalk, ferramenta que permite fazer consultas médicas por chamadas de vídeo num ambiente amplamente seguro — os holandeses culturalmente prezam bastante a privacidade e a segurança da informação. Também saíram dali dispositivos para medir o nível de estresse dos médicos com base nos batimentos cardíacos ou para medir a pressão do paciente e obter resultados melhores nos tratamentos.
No final do dia, os holandeses têm conseguido controlar melhor os custos do sistema de saúde. Os gastos estão crescendo num ritmo menor do que o registrado antes da reforma de 2006. Há cinco anos, as despesas com saúde estão no patamar de 10% do produto interno bruto. Se nada fosse feito, os holandeses estimam que em 2040 estariam em 30% do PIB. O sistema do país costumava ser o quarto mais caro da Europa, atrás de Luxemburgo, Noruega e Suíça. Nos anos recentes, no entanto, foi ultrapassado pela Suécia e pela Alemanha. O governo tem uma ação efetiva no controle dos custos: é ele que determina quais tratamentos vão ser incluídos nos seguros de saúde, uma cobertura bastante ampla, e ainda fixa um preço máximo para os medicamentos, com base nos valores de referência coletados na Bélgica, na França, na Alemanha e no Reino Unido. Antes dessa regra, os preços dos remédios eram, em média, 20% mais caros do que nos países vizinhos, mas agora foram equalizados. Além disso, o Ministério de Assuntos Econômicos e Clima determinou que a saúde é um dos nove setores prioritários do país, escolhidos conforme sua capacidade de contribuir para o avanço da sociedade holandesa. Para isso, foi criada uma fundação chamada Health-Holland, que realiza parcerias público-privadas, juntando empresas, governo, pacientes e universidades para financiar e executar pesquisas na área. A ideia é promover uma inovação que melhore a saúde das pessoas, mantendo a própria economia holandesa saudável. A indústria de saúde, a academia e o governo trabalham juntos na organização. “Nós inovamos em conjunto com empresas farmacêuticas e de tecnologia, baseados na preferência dos pacientes e mantendo o sistema de saúde viável”, diz Nico van Meeteren, presidente executivo da Health-Holland.
É claro que o sistema holandês tem seus pontos frágeis. Numa conversa com brasileiros e holandeses que moram no país, é normal ouvir que o médico de família tende a não dar muita atenção a problemas de saúde menores, deixando muitas vezes o caso piorar para só então remeter o paciente a um hospital. Os médicos de família reclamam que estão sobrecarregados, com uma quantidade de consultas que precisa ser reduzida para que possam dar mais atenção aos pacientes. Especialistas, por sua vez, dizem que falta às seguradoras exigir mais qualidade dos prestadores de serviço. Reclamações à parte, até agora os holandeses conseguiram dar mais acesso à saúde para a população, com mais atenção ao cuidado básico, menos hospitalização e mais equilíbrio dos custos. No caminho rumo a um sistema mais saudável, os holandeses ainda não resolveram todos os problemas. Mas a receita holandesa está trazendo resultados.
O DESAFIO DOS CUSTOS CONTINUA
O médico holandês Nick Guldemond, uma das maiores autoridades em saúde da Europa, diz que o sistema de seu país está equilibrado, mas sofre com a pressão do custo das inovações
A Holanda conseguiu desenvolver ao longo das últimas décadas um sistema universal de saúde, que atende amplamente os cidadãos, qualquer que seja a faixa de renda. De agora em diante, no entanto, o desafio do país é outro: mesmo sofrendo com as pressões do envelhecimento da população, manter os custos sob controle num cenário de aumento de preços dos medicamentos e de novas tecnologias para a saúde. A opinião é do médico holandês Nick Guldemond, professor na Escola de Política de -Saúde e Gestão da Universidade Erasmus, em Roterdã. “De maneira geral, o sistema é sustentável. Mas o país precisa conter o aumento desses custos”, afirma. Considerado uma autoridade em sistemas de saúde e tecnologia, Guldemond é especialista na comissão europeia para estudos sobre políticas na área de saúde digital. A seguir, a entrevista que ele concedeu a EXAME.
Por que o sistema de saúde holandês é considerado o melhor da Europa?
O país oferece o melhor cuidado de saúde a qualquer paciente, seja ele um milionário ou um sem-teto. Há uma satisfação do cidadão porque é fácil ingressar no sistema, bastando comprar um seguro. Isso dá acesso ao atendimento por um médico de família, que sabe do contexto social do cidadão, acompanha sua saúde e presta orientações.
Como esse sistema foi formulado?
Até 2006, ele era parecido com o sistema brasileiro: os mais pobres tinham atendimento público e os mais ricos seguros privados. Mas o governo tornou obrigatório que todas as pessoas contratassem um seguro, ajudando os mais pobres, e as seguradoras foram incentivadas a oferecer o melhor serviço pelo menor preço, num mercado altamente concorrido. A implicação disso para o paciente é que ele tem liberdade de escolher o seguro e o médico.
De maneira geral, o sistema holandês é caro?
O país desembolsa por ano cerca de 10% do produto interno bruto com a saúde, metade arcada pelo cidadão e a outra pelo governo. Se considerar o custo dividido por cidadão, paga-se em torno de 5?000 euros por ano. É muito dinheiro, mas de maneira geral é um sistema sustentável.
Quais os desafios para o sistema de saúde holandês?
A Holanda precisa conter o aumento dos custos. Antes, o maior problema que pressionava os gastos com saúde era o envelhecimento da população, mas agora há também a elevação do preço dos medicamentos e o custo maior das novas tecnologias.
Como essa questão está sendo resolvida?
A Holanda firma alianças com outros governos para ganhar poder de barganha com a indústria farmacêutica na compra de remédios. E faz avaliações constantes que permitem dizer se uma inovação realmente é eficiente em tratamento e viável em custo.
Esse sistema pode ser replicado no Brasil?
Há elementos que podem ser, sim, replicados, como injetar muita competição no mercado de saúde, algo que resulta em mais eficiência.
O FUTURO É DIGITAL
O diretor médico da Philips na Holanda, Jan Kimpen, diz que há consenso de que as soluções digitais transformarão os tratamentos de saúde
A centenária Philips, conhecida por sua história na área de produtos elétricos e bens de consumo, está cada vez mais voltada para o campo da saúde. A mudança vem de uma decisão estratégica tomada no início da década. No entanto, a empresa com sede em Amsterdã, na Holanda, tem enfrentado uma série de desafios na empreitada. O mercado de saúde passa por uma transformação digital. E, apesar do consenso de que a digitalização trará tratamentos melhores e menos custosos, ainda há entraves para a adoção das tecnologias. Os pacientes temem pela segurança das informações, os médicos dizem que a tecnologia aumenta o trabalho e os políticos precisam ser educados para montar uma boa regulação. “Estamos vivendo uma fase de adaptação”, diz o pediatra belga Jan Kimpen, de 60 anos, que foi presidente do hospital da Universidade de Utrecht e desde 2016 é diretor médico da Philips. Na empresa, a área de saúde domina os recursos para pesquisas e tem ganhado espaço no faturamento. Kimpen concedeu a entrevista a seguir no escritório central da Philips.
Por que a Philips focou seus negócios em saúde?
Essa é uma área que cresce, mas que tem desafios e oportunidades. Os sistemas de saúde dos países estão mudando de um modelo baseado em volume de serviços para um modelo baseado no valor trazido pelos serviços. Isso significa gerar o melhor resultado com o menor custo. A digitalização vai ajudar. Com ela, é possível compartilhar dados eletronicamente e monitorar pacientes em casa, por exemplo.
Os médicos e os pacientes estão convencidos dos benefícios da digitalização?
Em todo o mundo, inclusive no Brasil, eles acreditam que a digitalização é parte do futuro da saúde e que trará tratamentos médicos mais eficientes e menos custosos. Como exemplo, uma pesquisa que fizemos mostra que, para 81% dos profissionais da saúde e para 74% da população em 16 países, a tecnologia melhora a assistência médica a distância.
Os pacientes estão dispostos a pagar mais por soluções digitais?
Em países como os Estados Unidos, onde os serviços de saúde são caros, as pessoas pagam por um tratamento digital que não é oferecido pelo seguro de saúde. Na Holanda, por outro lado, as pessoas não querem pagar nada além do seguro. Se uma empresa quiser implementar uma solução digital na Holanda, portanto, terá de ser muito competitiva, porque aqui é muito difícil pedir mais dinheiro para isso.
Como lidar com esse ambiente mais hostil?
Existe uma prática de os seguros remunerarem os hospitais de acordo com um preço fixo para o tratamento. Não importa como o hospital entrega o serviço, desde que a qualidade seja boa. O paciente pode ir toda semana ao hospital ou ter consultas por vídeo. Nessa situação, seria mais fácil adotar soluções digitais, porque o hospital vai gastar o dinheiro que receber da maneira que desejar, e será estimulado a encontrar uma maneira mais eficiente.
De que forma os médicos lidam com a digitalização?
Até agora a digitalização causou mais trabalho. E a classe médica em vários países está com um volume excessivo de trabalho. Cerca de metade dos profissionais em alguns países, como na Holanda, tem a síndrome de Burnout, que decorre do esgotamento físico e mental. Foi divulgado um paper que mostra que os médicos estão trabalhando 10 horas a mais por semana checando mensagens e preenchendo prontuários eletrônicos. Temos de fazer um trabalho melhor.
Tudo isso é normal de uma fase de transição da saúde, da analógica para a digital?
É uma fase de adaptação, sim. Existe um legado muito grande dos sistemas antigos, que estão mais presentes na Europa e também nos Estados Unidos, com os quais médicos e pacientes estão acostumados. Fora isso, é difícil entender o panorama da digitalização. Há muitas empresas prometendo o céu com a digitalização, e só podem entregar um pouco de avanço.
Qual tem sido o ritmo de adoção da digitalização nos hospitais?
O panorama não é muito simples. Eu fui presidente executivo de um hospital e sempre me senti confortável construindo uma nova sala de tratamento intensivo, porque eu tinha referência de preço e do resultado. Mas pense na aquisição de um prontuário eletrônico: o que ele entregará de resultado ou quando terei de atualizá-lo? Essa realidade é menos tangível, porém é um passo que teremos de dar.
De que forma os governos estão regulando as soluções digitais diante do receio dos pacientes com o vazamento de informações?
As regras estão travando o progresso da transformação digital. Tentamos educar os governos e os parlamentares sobre o que temos a oferecer e quais os cuidados a tomar. Mas, às vezes, os burocratas não entendem a diferença entre uma droga e um dispositivo médico disponível para o paciente.
Com tantos desafios à digitalização, a Philips tem tido sucesso em sua mudança de foco?
Éramos um conglomerado industrial. Estávamos em muitos mercados, mas para ter sucesso precisávamos apostar em um. Hoje, 60% dos investimentos da empresa vão para pesquisa em saúde. E 70% das receitas são de negócios de curto prazo, como vender produtos, enquanto 30% são de parcerias de longo prazo em saúde, que não existiam há alguns anos. A saúde está se transformando. Queremos ser parte disso.
O SEGREDO ESTÁ NO DNA
O sequenciamento genético de grandes populações vai permitir que a medicina de precisão seja adotada em larga escala, eliminando custos e garantindo o melhor tratamento para cada paciente
No edifício de oito andares no centro de Cambridge, cidade da região metropolitana de Boston, onde estão instaladas a Universidade Harvard e o Instituto de Tecnologia de Massachusetts, quase 500 cientistas da empresa farmacêutica americana Amgen se dedicam a estudar no presente moléculas que podem trazer alívio no futuro para quem sofre dos mais diferentes males. Ali, há quem se concentre em entender os mecanismos da dor, como a da enxaqueca, os anticorpos para o combate de diversos tipos de câncer, as proteínas para o tratamento de doenças inflamatórias e do Alzheimer. Nos laboratórios, visitados pela repórter de EXAME — com o uso de um traje especial para evitar contaminação do ambiente —, o tempo dos pesquisadores é diferente: dez anos podem se passar facilmente entre os primeiros estudos moleculares e, na melhor das hipóteses, o lançamento de drogas que sejam efetivamente prescritas aos pacientes. Ainda assim, muitas tentativas fracassam no caminho. Para encurtar esse tempo e acertar mais alvos, os cientistas da Amgen estão debruçados sobre os dados genéticos gerados numa ilha a 4.000 quilômetros de Cambridge.
A Islândia, nação nórdica que passa boa parte do tempo abaixo de temperaturas glaciais, foi o primeiro país a ter o sequenciamento genético de quase toda a população, que descende basicamente dos vikings. Com 337.000 habitantes, mais da metade dos islandeses doou amostras de sangue à experiência que pode mudar a maneira como os genes influenciam a construção de novos remédios. Apenas 2.600 islandeses tiveram os genes 100% sequenciados. O mapeamento dos genes do restante da população, que registra baixíssimos índices de imigrantes, foi inferido com base em dados genéticos mais limitados e registros de árvores genealógicas. Dois gigantescos bancos de dados orientam as pesquisas: um contém as informações genéticas de metade dos adultos do país. O outro é composto do prontuário médico do sistema público de saúde. A empresa islandesa deCode, criada nos anos 90 pelo neurocientista e ex-professor da Universidade Harvard Kari Stefansson, foi que desenvolveu a tecnologia para juntar todas essas peças e encontrou variantes genéticas raras e comuns associadas ao risco de doenças. Em 2012, a Amgen comprou a deCode por 415 milhões de dólares e, de lá para cá, mergulhou nos dados dos islandeses. “Com a deCode, mais que ninguém no mundo, estamos aprendendo como as variações do DNA afetam o risco de doenças”, diz Elliott Levy, vice–presidente de desenvolvimento global da Amgen. Desde que a empresa islandesa foi comprada, a Amgen multiplicou por 5 a validação genética em seu port-fólio. Cerca de 75% das drogas em desenvolvimento têm forte apoio dos estudos genéticos. A empresa também descontinuou 5% de suas pesquisas em razão das informações genéticas vindas da Islândia. Um dos primeiros resultados foi a identificação de uma nova variante genética que diminuiu em 34% o risco de doenças do coração e derrame. A deCode descobriu que um em cada 120 islandeses tem uma mutação que inativa o gene ASGR1 e que essas pessoas têm níveis mais baixos do chamado colesterol ruim. A Amgen está testando opções terapêuticas que replicam o comportamento da variante genética.
Experiências como a da Amgen indicam o caminho para as novas gerações de medicamentos. E toda a indústria farmacêutica e de biotecnologia está na corrida. A sueco-britânica AstraZeneca lançou em 2016 um projeto para sequenciar os genes de 2 milhões de pessoas em dez anos. Um consórcio de cinco farmacêuticas, entre elas a Abbvie, a Biogen e a Pfizer, lançou um projeto em janeiro para desvendar os genes de 500?000 voluntários britânicos. Além das empresas, os países estão investindo no sequenciamento genético maciço das populações. Na China, a província de Jiangsu começou a sequenciar os genes de 1 milhão de pessoas para compor o primeiro banco genético do país. Em maio, os Estados Unidos abriram as inscrições para que 1 milhão de americanos compartilhem seu DNA e dez anos de hábitos de saúde com o governo, projeto que vai consumir 1,4 bilhão de dólares. As informações vão compor um banco de dados que compara a genética, o estilo de vida e o meio ambiente de diferentes grupos de pessoas. Com os dados, os pesquisadores creem que vão aprender mais sobre a razão de algumas pessoas escaparem de certas doenças e outras não. “Há 14 países fazendo sequenciamento de populações. Cinco das maiores economias estão investindo em projetos próprios, incluindo o Brasil”, diz Francis de Souza, presidente da americana Illumina, uma das principais fabricantes de sequenciadores genéticos do mundo. “Esperamos que outros países sigam os exemplos ao longo do tempo.” Isso deve impactar o mercado de sequenciamento genético, que movimentou 7 bilhões de dólares em 2016 e deverá chegar a 27 bilhões em 2023.
O uso dos genes no desenvolvimento de novos tratamentos começou após o Projeto Genoma Humano. A iniciativa, que levou dez anos até ser concluída em 2003 e consumiu 3 bilhões de dólares, fez o primeiro grande mapa genético de seres humanos. Com ele foi possível identificar que cada pessoa tem cerca de 22.000 genes — e não 40.000, como se imaginava na época. O Genoma Humano, hoje na 38a versão, serve de referência para todas as novas tecnologias de sequenciamento. O problema é que não contempla as variações dos genes que cada indivíduo pode ter — e é aí que residem as doenças. Há dois grupos de mutações. O primeiro é o das raras e fortes, que causam cerca de 10% das doenças. Uma vez identificada a mutação, os riscos são altos de um indivíduo desenvolver uma doença. A atriz americana Angelina Jolie descobriu que carrega a mutação do gene BRCA 1, que representa um risco de 87% de desenvolver câncer de mama e 50% de sofrer câncer de ovário. O diagnóstico levou a atriz a se submeter a uma cirurgia preventiva para retirada das mamas e dos ovários. Outro grupo de mutações é o das comuns, com intensidade fraca e moderada, que, associadas a fatores não hereditários, como dieta inadequada e falta de exercícios, causam grande parte das doenças, incluindo diabetes, doença renal crônica, Parkinson, Alzheimer e 90% dos tipos de câncer. “É por isso que a tendência global é fazer o sequenciamento genético de grandes grupos, na base dos milhões de indivíduos, para juntar evidências de como as mutações fracas atuam para que haja ou não uma doença”, diz Guilherme Yamamoto, médico geneticista e pesquisador da Universidade de São Paulo.
A nova miríade de informações que deverão chegar aos cientistas nos próximos anos finalmente dará escala à medicina personalizada. Na história da indústria farmacêutica, a maioria das drogas funciona em 60% dos pacientes. “Com os testes genéticos, conseguimos maior clareza de diagnóstico, identificando assim quais medicamentos responderão melhor para cada tipo de paciente”, diz o inglês Fraser Hall, presidente da AstraZeneca no Brasil. “Mais de 80% de nossos medicamentos em desenvolvimento precisarão ser combinados com um diagnóstico complementar.” A estratégia de personalizar também ajuda a diminuir os crescentes custos de inovação da indústria farmacêutica. Estima–se que o custo de desenvolvimento de uma nova droga seja de 2 bilhões de dólares. De cada 100 moléculas que passam para o estágio pré-clínico, apenas uma ou duas acabam efetivamente no mercado.
O que permite usar o sequenciamento em larga escala hoje é o brutal barateamento das técnicas que fazem a leitura do DNA. Em 2001, o custo de sequenciamento genético era de 100 milhões de dólares por pessoa. Hoje, sai por 1.000 dólares. A redução do custo ocorreu graças à entrada dos sequenciadores de segunda geração, chamados de NGS, em 2007. A capacidade computacional dessas máquinas decodifica 2 trilhões de bases de DNA por dia — a primeira geração de sequenciadores conseguia decodificar 100.000 bases por dia. A expectativa é que nos próximos anos novas máquinas, com maior capacidade de leitura, baixem o custo de sequenciar o genoma humano para 100 dólares. “O barateamento tem sido tão rápido que as tecnologias de sequenciamento têm desafiado a lei de Moore”, diz João Bosco, fundador e presidente da Genomika, empresa de Recife que faz sequenciamento genético para farmacêuticas, hospitais e laboratórios de diagnóstico. Bosco se refere à profecia do americano Gordon Moore, um dos fundadores da empresa de microeletrônica Intel, que em 1965 disse que a cada 18 meses o preço dos chips cairia pela metade, enquanto o poder de processamento dobraria. Médico patologista, Bosco codirigiu durante sete anos a área de genética e imunologia do Instituto Nacional de Saúde, órgão do governo americano, em Bethesda, no estado de Maryland. Ele decidiu voltar ao Brasil em 2013 e criar sua empresa. “Com a popularização da tecnologia, vi que havia a oportunidade de criar um negócio aqui”, diz. Em 2017, a Genomika atendeu 20.000 pacientes e o hospital paulistano Albert Einstein se tornou seu sócio minoritário.
O Brasil dá os primeiros passos nessa corrida pelo mapeamento dos genes da população. A equipe da geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Pesquisa sobre o Genoma Humano e Células-Tronco da Universidade de São Paulo (USP), analisa os dados colhidos do sequenciamento genético de 1.300 pessoas com mais de 70 anos de São Paulo. O estudo foca idosos saudáveis que levam vida independente e não apresentam doenças relacionadas ao envelhecimento, como Parkinson ou Alzheimer. No projeto, foram encontradas 207.000 mutações genéticas nunca antes descritas na literatura médica. Um quinto delas é potencialmente prejudicial. Mas os pesquisadores da USP também estão encontrando variantes que protegem os idosos dos efeitos da idade avançada. Foi descoberta uma idosa de 93 anos no projeto que carrega uma mutação que, aparentemente, evita o surgimento de Alzheimer. “Se houvesse uma amostra populacional maior, poderíamos comparar os dados com os de outras pessoas que carregam a mesma mutação e pesquisar novas aplicações”, diz Mayana. O problema é que falta financiamento para esse tipo de iniciativa no Brasil. As amostras dos genes dos brasileiros foram enviadas a San Diego, na Califórnia, e a tarefa foi feita pela empresa Human Longevity (HLI), fundada pelo bioquímico americano Craig Venter, um dos pioneiros no tema. Em troca do sequenciamento das amostras brasileiras, cujo custo estimado era de 2 milhões de dólares, os americanos receberam os dados dos idosos de São Paulo para fazer os próprios estudos.
Se para os cientistas não há dúvida de que as informações contidas nos genes de milhões de pessoas permitirão desvendar muitos mistérios da medicina, questões éticas estão sendo colocadas. A principal é: como fica a privacidade se dados genéticos forem compartilhados com empresas, como seguradoras e operadoras de saúde? “Essas companhias têm todo o interesse em saber qual cliente carrega nos genes mutações que podem acarretar doenças de alto custo. É justo cobrar do paciente pelo DNA que ele tem?”, diz Mayana. A resposta tem sido um uníssono não. A nova regulação de proteção de dados da Europa, aprovada em abril, dá poder ao cidadão no controle de suas informações digitais e de seu prontuário médico, o que inclui qualquer dado genético. Nos Estados Unidos, a lei proíbe qualquer compartilhamento dos laboratórios com outras entidades sem o consentimento expresso do paciente. No Brasil, ainda não há legislação específica, mas os cientistas têm seguido o padrão americano. No entanto, esse é apenas o início de uma realidade em que boa parte dos cidadãos terá as informações genéticas trabalhando em favor de sua saúde. Um futuro em que o sequenciamento genético será tão comum quanto o teste do pezinho, hoje aplicado nos recém-nascidos — para fazê–los viver mais e melhor.
A FARMACÊUTICA QUE CAÇA O ERRO
A empresa canadense Deep Genomics utiliza inteligência artificial para criar remédios mais eficazes e com menos efeitos colaterais
Com quase 50 anos de idade, o pesquisador canadense Brendan Frey é um dos mais renomados especialistas em deep learning, uma técnica de inteligência artificial. A fama surgiu no início dos anos 2000, quando ele ainda trabalhava como professor de computação na Universidade de Toronto. Os resultados de seus estudos foram publicados sucessivamente nos principais periódicos científicos do mundo. “Ter um artigo na Nature e na Science é algo incrível, mas não é realmente do que o paciente precisa”, diz Frey. “Percebi que criar uma startup seria a melhor forma de atender às necessidades dos pacientes.”
E, assim, em 2015 surgiu a Deep Genomics, empresa que tem como meta utilizar uma abordagem computacional para encontrar a cura para doenças neurodegenerativas, neuromusculares e metabólicas — como Parkinson, distrofia de Duchenne e porfiria — que se originam de erros no código genético dos pacientes.
Vestido com uma camiseta da banda de rock AC/DC, em seu escritório em Toronto, Frey explica a EXAME que o uso de inteligência artificial é a melhor saída para entender o DNA, um longo e extenso código que regula como as células de nosso corpo funcionam. O ser humano é bom para entender a linguagem escrita e verbal, mas as máquinas oferecem a melhor opção quando se trata de um código como o DNA, que tem inúmeras variações, que podem ser ligadas ou desligadas de acordo com interações com o ambiente, como alimentação, estresse e nível de poluição. Somente os algoritmos, apoiados em computadores superpotentes, podem lidar com tantos cenários. “Nosso objetivo é tornar o desenvolvimento de remédios um esforço de engenharia e de certeza. É o oposto do que ocorre hoje na indústria farmacêutica, que trabalha muito com tentativa e erro”, diz Frey.
Pesquisadores da área de inteligência artificial costumam usar a imagem de uma árvore frutífera para explicar como a ciência da computação pode ajudar no desenvolvimento de remédios. As atuais drogas mais eficazes do mundo e com os menores efeitos colaterais seriam as frutas maduras que já foram colhidas pela ciência apenas porque estariam ao alcance das mãos, ou seja, mero golpe de sorte. Os outros frutos que sobraram nos galhos mais baixos não são bons e representam os remédios com eficácia menor e com muitos efeitos colaterais, algo que aumenta os custos de desenvolvimento e a necessidade de mais testes clínicos antes de ser aprovados pelas agências reguladoras. A inteligência artificial seria, portanto, uma maneira de construir uma escada até os galhos mais altos dessa mesma árvore, onde estariam outras frutas maduras — é a engenharia em prol de remédios melhores. A computação pode ser usada para simular a estrutura e a interação de moléculas de um remédio com o corpo humano antes mesmo de o medicamento ser criado em laboratório. A inteligência artificial também pode ser empregada para descobrir outros padrões de erros no DNA e, no limite, encontrar doenças que ainda nem foram descritas pela medicina.
“Ao conhecermos a mutação de um paciente, ficamos sabendo também o que está errado em suas células. É isso que possibilita o caminho para que possamos criar o remédio exato”, afirma Frey. O DNA também apresenta outra vantagem para essa abordagem de inteligência artificial: é um dado estruturado, com um padrão claro de construção, como o biólogo americano James Watson e o biofísico inglês Francis Crick descreveram nos anos 50, com o famoso modelo da dupla hélice. Utilizar dados disponíveis de relatos de doenças e de efeitos colaterais em testes clínicos não seria uma boa opção, uma vez que as informações podem variar entre diferentes médicos e dentro da indústria farmacêutica — pois, afinal, não há um padrão para preencher relatórios e muitas vezes uma informação sobre um efeito colateral não é descrita. “O que o deep learning faz é uma generalização a partir do DNA. E o sistema pode crescer a cada nova inserção ou descoberta feita.”
Segundo Frey, a empresa já conseguiu descobrir prováveis curas utilizando esse método. A Deep Genomics espera realizar testes clínicos nos próximos três anos, embora não divulgue para quais doenças. Se comprovada a eficácia de sua técnica, a empresa poderá realizar o licenciamento da fórmula do medicamento para a indústria farmacêutica. Frey também espera mudar a abordagem das agências reguladoras, que assumem desde o início que os novos remédios não vão funcionar bem — para ter uma ideia, um medicamento para psoríase comum nos Estados Unidos e no Canadá gasta metade do tempo de seu comercial de 30 segundos explicando sobre os efeitos colaterais, que vão desde diarreia até depressão. A aposta na Deep Genomics é tão alta que a startup já recebeu mais de 16?milhões de dólares em duas rodadas de investimento. Nada mau para um ex-professor que queria mais do que publicar artigos científicos.
Por Flávia Furlan, Leo Branco, CRISTIANE BARBIERI,
Filipe Serrano, Letícia Toledo, Eduardo Salgado, FABI, na Revista Exame