quarta-feira, 18 de julho de 2018

O dono da caneta salvadora


Depois da fracassada tentativa de tirar o ex-presidente Lula da cadeia com a escandalosa liminar de um desembargador militante, o PT aposta em Dias Toffoli para ver seu comandante máximo nas ruas de novo
Foi tudo de caso pensado. O trio de deputados petistas Paulo Pimenta, Wadih Damous e Paulo Teixeira tentou soltar o ex-presidente Lula no último domingo com a ajuda de um velho amigo do PT: o desembargador do Tribunal Regional Federal da 4ª Região Rogério Favreto, filiado ao partido por 20 anos antes de ser indicado ao cargo em 2011 pela ex-presidente Dilma Rousseff. A manobra não deu certo, mas eles não desistiram. A legenda agora deposita sua esperança em outro antigo aliado: o ministro Dias Toffoli, ex-advogado do PT, ex-assessor do Palácio do Planalto durante os anos Lula e nomeado pelo petista para o Supremo Tribunal Federal em 2009. São dois os caminhos possíveis que enchem Lula e seu séquito de esperança. Um deles, mais curto, repetiria em Brasília o estratagema adotado em Curitiba. A ideia é não deixar passar a oportunidade caso Dias Toffoli assuma o plantão do Supremo ainda neste mês, quando, em meio ao recesso judiciário, a presidente Cármen Lúcia pode ter de assumir a cadeira de Michel Temer, que tem três viagens previstas ao exterior. Nesse caso, Dias Toffoli, como vice-presidente da corte, ficaria responsável por julgar todos pedidos protocolados, incluindo o de um eventual habeas corpus para Lula. A outra opção é aguardar que Toffoli assuma em definitivo o lugar de Cármen, em setembro, o que abriria caminho para o plenário finalmente rediscutir a questão da prisão em segunda instância, algo que, até agora, a ministra bravamente tem resistido a fazer.

Nos dois casos, Dias Toffoli é fiel depositário das melhores expectativas dos petistas. Abertamente, são raros os líderes do partido que falam sobre o assunto. Mas, em privado, eles nutrem a confiança de que, com Toffoli na mais importante cadeira do Supremo, tudo ficará mais fácil. Depois de o PT perder nas mais diferentes frentes o poder que experimentou durante treze anos à frente do Planalto, há até quem veja na chegada do ex-companheiro ao posto de presidente do Supremo, do outro lado da Praça dos Três Poderes, a oportunidade de restaurar em parte a influência perdida no tabuleiro de Brasília. Nem que para isso seja preciso radicalizar. Não por outra razão, petistas de proa já fazem circular que Dias Toffoli levaria para compor seu staff no Supremo alguns dos mais empedernidos auxiliares de Lula no Planalto. É o caso, por exemplo, de Franklin Martins, que, segundo gente próxima da cúpula do partido, teria sido convidado por Toffoli para assumir a seção de comunicação do tribunal. Franklin, não custa lembrar, é até hoje um dos mais próximos conselheiros de Lula. Essa, porém, é a parte menos relevante da história. O essencial, dizem, é conseguir tirar Lula da prisão. Nos bastidores, o comando petista já analisa até mesmo qual seria o melhor momento para que isso ocorra. “Talvez seja melhor não desgastá-lo agora e esperar para ele pautar as ADCs (contra a prisão em segunda instância)”, diz o deputado petista Vicente Cândido, amigo do peito de Lula e um dos baluartes da “ala jurídica” do PT, que conta ainda com o trio Damous-Pimenta-Teixeira. Vicente Cândido não descarta, porém, a possibilidade de encurtar o caminho. Diz que, entre as opções, está sobre a mesa a ideia de recorrer a “um atalho ainda durante a presidência da ministra Cármen”. Ele se recusa a explicar qual seria esse atalho, mas a resposta passa necessariamente pela caneta de Dias Toffoli.

“Toffoli certamente conduzirá o STF na defesa da Constituição e do estado democrático de direito”, disse a Crusoé o deputado Paulo Teixeira, em mais uma demonstração explícita de que a perspectiva de ascensão do ex-companheiro ao comando da Suprema Corte tem animado os petistas. Por um bom tempo, a relação do ministro com o partido e a sua militância andou prejudicada. Especialmente a partir do julgamento do mensalão, quando Toffoli surpreendeu ao votar pela condenação de antigos dirigentes petistas, como José Genoino e Delúbio Soares. Nos últimos anos, o clima piorou ainda mais devido à aproximação do ministro com o colega Gilmar Mendes, um velho desafeto do PT. Mais recentemente, como ambos passaram a ser críticos ferrenhos da Lava Jato e a fazer na Segunda Turma da corte dobradinhas que têm causado danos à operação, o sentimento começou a mudar. A recente decisão de soltar José Dirceu com um habeas corpus de ofício, sem que a defesa do chefão tivesse sequer feito o pedido, proporcionou a reaproximação. O bom e velho Dias Toffoli de alma petista receberia a indulgência plena dos antigos companheiros logo na sequência, ao atropelar o juiz Sergio Moro para permitir que Dirceu, além de seguir livre, pudesse viver sem as agruras de uma tornozeleira eletrônica.

Mesmo diante de tantos sinais, quem conhece o ministro acredita que a ajuda que ele poderá dar a Lula não será tão explícita. À diferença do desembargador Favreto, Dias Toffoli é visto como alguém mais pragmático, que não se disporia a colocar em xeque os 25 anos que lhe restam no Supremo (ele tem 50 e pode ser ministro da corte até os 75) para salvar a pele de Lula. Assim como Favreto, o ministro tem uma longa trajetória de serviços prestados ao PT desde a década de 1990, quando ingressou no grupo de advogados que passou a defender o partido nos tribunais. Mas, assim como foi cauteloso no julgamento do mensalão, ele pode repetir a dose agora. Não significa que vá agir com independência em relação ao chefão petista, claro. A questão é que ele procuraria fazer tudo de maneira mais calculada, de modo a se preservar. Entre os que o conhecem bem, a aposta é que Dias Toffoli resistiria a assumir sozinho o ônus de soltar Lula. Mas, evidentemente, isso depende de outros fatores — como a pressão que os petistas são capazes de fazer sobre ele, usando todo o histórico de convivência de décadas a fio e os segredos que derivam dessa relação.

No jogo pesado da política, é natural que nas horas de aperto ocorram jogadas controversas. Recentemente, Crusoé ouviu de fonte primária, sem intermediários, uma conversa que dá a exata dimensão de como funcionam esses subterrâneos. José Dirceu ainda estava preso quando duas pessoas de sua intimidade, em um encontro de trabalho, se puseram a pensar sobre formas de convencer Dias Toffoli a ajudar o ex-ministro da Casa Civil. Uma delas lembrou que, em meio às chantagens que marcaram o auge do mensalão, o ex-aliado Roberto Jefferson chamou uma pessoa do círculo de Dirceu para uma conversa reservada. Durante o encontro, segundo esse relato, ele teria sacado uma série de imagens que comprometeriam gente importante do PT. Era um recado para o ministro da Casa Civil de Lula. Em uma dessas imagens, ainda de acordo com essa mesma fonte petista, o então desconhecido Dias Toffoli aparecia exposto a uma situação controversa, juntamente com Antonio Palocci. O assunto foi levado às instâncias superiores do partido e do governo. Chegou a Lula, inclusive. Era 2005. No drama petista de 2018, treze anos depois, o episódio voltou à tona no momento em que se tentou puxar pela memória histórias que pudessem constranger Dias Toffoli. Ameaças desse tipo dificilmente falham, mas ao que tudo indica nem foi preciso usar o enredo das fotografias: Toffoli, voluntariamente, se dispôs a lançar a corda para o ex-chefe Dirceu.

No caso de Lula, se de fato não vingar a ideia de obter um habeas corpus ainda durante este recesso de julho, aproveitando a possível ausência de Cármen Lúcia, gente próxima a Dias Toffoli dá como certo que a partir de setembro, assumindo de vez a presidência do tribunal, virá uma solução que, além de ajudar o comandante petista, terá grande valor também para outros investigados da Lava Jato. A expectativa é de que, nos dias subsequentes à posse de Dias Toffoli, o ministro Marco Aurélio Mello peça para que sejam levadas ao plenário as ações declaratórias de constitucionalidade que tentam reverter o entendimento da corte sobre a execução imediata de prisão após condenação em segunda instância. Como o plenário hoje tende acolher o pleito, Lula conseguiria sair da prisão e, ainda que não consiga viabilizar sua candidatura, o PT já se daria por satisfeito com a possibilidade de ele gravar o horário gratuito de TV e rodar o país ao lado do candidato a ser escolhido pelo partido.

Seja concedendo um habeas corpus no recesso, seja pautando a discussão sobre prisão em segunda instância mais adiante, os próximos passos de Dias Toffoli têm sido medidos com régua e compasso na corte. Ante a possibilidade de o ministro assumir o plantão nas próximas semanas, Cármen Lúcia se recusa a dizer se, com a confirmação das viagens de Michel Temer para Cabo Verde, México e África do Sul, poderia acumular a Presidência da República com a presidência do Supremo. Essa é uma possibilidade que a lei dá à presidente do corte, caso ela queira evitar o risco de deixar a caneta nas mãos de Dias Toffoli e enfrentar os danos de uma possível liminar para soltar Lula. Perguntada por Crusoé sobre o que Cármen pretende fazer diante do dilema, a assessoria da ministra diz que ela ainda não tem a resposta porque Temer nem sequer confirmou oficialmente, até o momento, que fará as viagens. Uma outra opção, para evitar o furdúncio que uma repentina soltura de Lula poderia causar, está nas mãos do próprio Michel Temer: ele pode desistir das viagens. Assim, Cármen Lúcia seguiria como responsável pelo plantão e Dias Toffoli, em férias, sem chances de ter a caneta. Por ora, de parte a parte, o que há é suspense. A resposta virá nos próximos dias – a primeira viagem de Temer está agendada já para a semana que vem. Seja como for, neste momento Dias Toffoli repõe as energias na Europa, juntamente com a sua mulher. O roteiro do casal incluiu uma visita à Escócia, na companhia da ex-ministra do TSE Luciana Lóssio e do advogado Técio Lins e Silva — autor de uma das ações de constitucionalide que tentam mudar o entendimento do Supremo sobre prisões a partir de condenação em segunda instância. Recentemente, com um discurso incisivo contra a Operação Lava Jato, Lins e Silva defendeu no plenário da corte o fim das conduções coercitivas.

É certo que a gestão Dias Toffoli será bem diferente da de Cármen Lúcia. Há pressão de ministros do Supremo para organizar a pauta de maneira que ela seja mais previsível e consensual. Hoje, Toffoli gosta de cultivar a discrição e se vangloria de ter, administrativamente, um gabinete bem gerido e moderno. São duas características que ele diz pretender levar à presidência. Enquanto Cármen Lúcia mostra preocupação com a repercussão dos casos, na sociedade e na imprensa, Toffoli deverá ser um presidente intramuros, dizem os amigos. Assim, pautas como a prisão em segunda instância e até reajustes salariais para ministros e juízes devem voltar à discussão.

Quando entrou no Supremo, Dias Toffoli atraiu para si todos os tipos de desconfiança. Àquela altura, ele ostentava uma (justa) fama de bon vivant. Ao longo dos anos, foi tentando se repaginar. Optou por um comportamento mais low profile e aproximou-se de dois dos mais influentes ministros do Supremo: Teori Zavascki, morto em 2017, e do já citado Gilmar Mendes. Embora de estilos diferentes, Teori e Gilmar tinham em comum a capacidade de articulação e diálogo nos bastidores, algo que Toffoli também tenta cultivar. O ministro foi empossado em 2009, com 41 anos, por escolha do então presidente Lula. A vaga foi aberta depois da morte de Carlos Alberto Menezes Direito. Para além de ser um dos ministros mais jovens a chegar ao Supremo desde a criação do tribunal, ele recebeu críticas pelos laços com o PT e por seu currículo pífio. Não tinha livros escritos, tampouco fez pós-graduação, mestrado ou doutorado — uma ficha de apresentação que o fazia destoar dos colegas. Para piorar, foi reprovado duas vezes em concurso para juiz nos anos 1990. Toffoli trabalhou para a liderança do PT na Câmara, para a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e advogou nas três campanhas de Lula à Presidência. No governo do petista, assessorou o Palácio do Planalto como subchefe de assuntos jurídicos da Casa Civil, subordinado a José Dirceu. Em seguida, foi nomeado advogado-geral da União. De lá, foi guindado ao STF. A inesperada promoção foi festejada à exaustão em Brasília, mas também em Marília, no interior de São Paulo, sua terra natal. Em uma das comemorações, amigos, familiares e o próprio ministro vestiam camisas produzidas sob medida para a ocasião, onde era possível ler, à frente da sigla STF, os dizeres “Somos Todos Família”. É justamente a ideia que o PT repete, esperançoso com o que há de vir da caneta do ex-companheiro: “Somos Todos Família”.

Por Eduardo Barreto e Igor Gadelha, na Revista Crusoé

Teatro completo