terça-feira, 10 de julho de 2018

O operador voltou


Condenado no mensalão e no petrolão, o ex-ministro José Dirceu estranhamente pediu que seus seguidores interrompessem os ataques ao Supremo três dias antes de ser beneficiado por um questionável habeas corpus. O chefão, agora solto, está cada vez mais ativo na articulação política e se prepara para ser um dos estrategistas da campanha petista ao Planalto

O prato principal era peixe. O almoço, na casa de um amigo de José Dirceu, tinha dois motivos. Acompanhar o jogo do Brasil contra o México pelas oitavas de final da Copa do Mundo e, principalmente, festejar a liberdade do chefão petista. À mesa estavam a presidente do PT, senadora Gleisi Hoffmann, seu marido, o ex-ministro Paulo Bernardo, e outros integrantes do partido. Dirceu não cabia em si de contentamento. Ele, que semanas antes havia voltado à Penitenciária da Papuda por ordem do juiz Sergio Moro, fora solto de novo graças à caneta amiga do ministro Dias Toffoli, seu ex-assessor e companheiro de partido. Ainda naquela tarde, após a vitória brasileira no campo, Dirceu deixaria Brasília rumo a Curitiba. Já que ficaria livre, o juiz Moro entendeu que ele teria que colocar novamente uma tornozeleira eletrônica. Na hora marcada, Dirceu saiu de casa, acompanhado por dois militantes que se revezariam ao volante. O trajeto de 1.400 quilômetros teria de ser feito por terra, porque Dirceu teme ser hostilizado a bordo de aviões comerciais – e jatinhos já não são mais convenientes para um condenado com dinheiro bloqueado.

Ele estava na estrada quando, por volta das 21 horas, foi avisado pelo celular de que o mesmo ministro Dias Toffoli havia cassado a decisão de Moro que ordenava a colocação da tornozeleira. Ele comemorou. Pôs-se a enviar mensagens no WhatsApp. Em uma delas, gravou um áudio: “Boas novas. Melhor assim. Voltaremos à luta”. Ele tinha acabado de ultrapassar a divisa entre Minas Gerais e São Paulo e decidiu ir para a capital paulista. Queria ver as filhas, que moram na cidade. Na última terça-feira, o chefe do mensalão e um dos protagonistas do petrolão, condenado a mais de 30 anos de prisão, voltou a Brasília. Livre para retomar a operação política no PT e pronto para assumir, segundo um integrante da cúpula do partido, um papel que já estava reservado a ele faz algum tempo. Dirceu, apesar de sua condição de condenado triplamente e preso em regime domiciliar, será uma espécie de consultor informal do PT na campanha presidencial.

O passado e o presente de Dirceu estão longe de ser um problema para o partido, que tem seu principal líder, também condenado por corrupção, recolhido numa cela especial na sede da Polícia Federal em Curitiba. Pelo mensalão, Dirceu ficou preso em regime fechado por um ano. Pelo petrolão, foram dez meses. A última temporada atrás das grades durou um mês, de maio a junho deste ano. Chamou a atenção a maneira como a ordem de soltura foi expedida pelo companheiro Dias Toffoli: de ofício, ou seja, sem que a defesa houvesse pedido. Acompanharam o voto os ministros Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Edson Fachin, o relator da Lava Jato na corte, ficou de novo isolado. Na imagem que ilustra a capa desta edição de Crusoé e a abertura desta reportagem, Dirceu, com uma garrafa de vinho à mão, chega sorridente para um almoço na casa da sogra no dia 27 de junho, horas depois de deixar a Papuda graças ao habeas corpus que conseguira no Supremo. O braço erguido e o punho cerrado lembram o gesto que ele fez quando foi preso por ordem do Supremo, em 2013.

Dias Toffoli correspondeu às expectativas. O ministro, nunca é demais lembrar, foi advogado do PT quando Dirceu dirigiu o partido nos anos 90 e, depois, foi subordinado a ele na Casa Civil durante o governo Lula. Crusoé apurou que três dias antes da decisão, quando ainda estava no cárcere na Papuda, Dirceu mandou um recado que soou estranho aos seus seguidores. Por meio de uma advogada que fora visitá-lo, ele pediu que os correligionários dessem uma trégua ao STF e parassem de torpedear os ministros do tribunal nas redes. Era uma espécie de cessar-fogo temporário. Parecia um contrassenso porque o passatempo predileto dos petistas é atacar o tribunal. O recado, mandado pelo chefão foi transmitido a militantes e parlamentares do PT. A quem pedia mais informações, os mensageiros limitavam-se a responder que não havia mais detalhes. Eles só entenderiam a ordem unida depois de receberem a notícia do habeas corpus concedido pela Segunda Turma a partir da decisão de Dias Toffoli. Dirceu tinha indicações de que seria solto.

Embora não esteja assegurado um longo período fora do cárcere, uma vez que os processos seguem correndo e outras investigações contra ele continuam, Dirceu ganhou a liberdade no momento em que o PT vive um dos maiores dilemas de sua história. O partido tenta buscar o melhor caminho para substituir a falácia da candidatura de Lula, impedido legalmente de disputar a eleição, e viabilizar a construção de um candidato elegível e uma política de alianças. A grande dúvida, neste momento, é se o partido deve desde agora escolher seu candidato ou carregar o factoide até o limite e apostar na capacidade de transferência de votos do ex-presidente mais adiante. Como se verá adiante, José Dirceu tem participado ativamente das discussões. Mesmo quando estava em prisão domiciliar (agora, pela decisão do Supremo, ele está tecnicamente em liberdade), Dirceu já operava politicamente, coordenava ações dos seus militantes e gastava tempo torpedeando a Lava Jato – ele já até declarou publicamente, em vídeo distribuído para seus admiradores, que o país vive uma “ditadura da toga”. Agora que está solto, o petista terá ainda mais liberdade para sambar na cara da Justiça.

Sem qualquer tentativa de dissimulação, Dirceu exerce o papel de articulador da estratégia do PT para as eleições deste ano. No almoço de segunda-feira e nas conversas que manteve nos últimos dias, ele mostrou, por exemplo, que tem a resposta na ponta da língua para o dilema em torno da candidatura de Lula. Defende que, no discurso do partido, Lula seja mantido como candidato até quando for possível. Também quer que o substituto, a ser definido no momento em que a Justiça formalmente der por encerradas as chances de Lula, seja alguém do Sudeste do país. Ele cita como opção o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad ou mesmo o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Amorim. E, para explicar a preferência por um nome do Sudeste, diz que o partido já tem o Nordeste fechado com qualquer candidato que Lula indicar. O escolhido, observa, deve ser alguém que puxe votos nos maiores colégios eleitorais, concentrados no Sudeste, região responsável por 43% dos eleitores do país. Além disso, Dirceu tem dito que, com um nome da região, a legenda é capaz de se reaproximar da classe média urbana intelectualizada, decepcionada com os inúmeros casos de corrupção da era petista.

Os crimes de Dirceu


Em mais uma prova de que está no jogo, o chefão defende que a sigla seja mais agressiva na política de alianças estaduais, sob pena de ficar isolada em boa parte dos estados. Até agora, há chances reais de que o isolamento ocorra em ao menos oito dos 27 estados. Alguns deles essenciais, como São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Paraná — o primeiro, terceiro, quinto e sexto maiores colégios eleitorais do país, respectivamente. Nesses lugares, o PT tem candidato próprio, mas não conseguiu se coligar até agora com nenhum partido. Dirceu faz a leitura de que palanques regionais fortes ajudarão a montar uma bancada consistente no Congresso na próxima legislatura.

Para além das articulações de bastidores, o ex-ministro se empenha pessoalmente na tarefa de manter viva a imagem de mito petista endeusado por seguidores. Ele próprio figura como animador-mor de um grupo de WhatsApp que serve como canal de difusão de informações sobre sua situação político-jurídica e, ao mesmo, para distribuir orientações aos militantes. Cada um dos integrantes do grupo se encarrega de passar adiante tudo o que é publicado ali. Por vezes, Dirceu transmite suas mensagens por meio de áudios. Tentando sempre se mostrar calmo, fala pausadamente e com voz grave. Parece pronunciar as palavras de caso pensado — ao contrário dos recados eletrônicos por escrito, que muitas vezes são curtos, abreviados e sem pontuação.

As mensagens, que começam sem falhar com um “bom dia”, têm como assunto principal as eleições. O esforço é para manter a tropa empenhada em torno do nome de Lula. “Ele está em primeiro lugar. Nós temos tempo. Tem que ter calma”, disse numa gravação há duas semanas. Embora se saiba que sua relação com Lula não é lá das melhores (o próprio Dirceu entende que foi escanteado pelo companheiro quando se viu em meio às primeiras agruras do mensalão), publicamente ele tenta se mostrar entrosado com o ex-presidente. A ponte entre os dois é feita por José Ferreira da Silva, o Frei Chico, irmão de Lula. Na semana passada, Frei Chico disse a Dirceu que o companheiro está passando por sua pior temporada desde que chegou a Curitiba, há três meses. Recém-chegado da capital paranaense, ele relatou que achou o irmão desanimado e combalido fisicamente. Dirceu e Frei Chico costumam trocar impressões sobre os caminhos que poderiam tirar Lula da cadeia. E sonham. Compartilham a visão de que só uma grande mobilização popular — algo que, como a realidade mostra, não passa de devaneio de ambos — tirará Lula da prisão.

Em outra frente de sua atuação, José Dirceu se dedica a atacar frontalmente os seus algozes da Lava Jato. Até pouco antes de ser novamente preso, publicava em blogs companheiros vídeos com ataques à operação. A cantilena é sempre a mesma: ele se diz um perseguido político, assim como Lula e outros petistas. “Todos sabemos que não há provas, que Lula é inocente, e que se trata do pior uso da Justiça para cometer uma injustiça histórica: retirar da lista de candidatos em 2018 o candidato que vencerá as eleições, o presidente que o povo quer de volta, porque tem um legado”, afirmou em uma das ocasiões. Em outro vídeo, ele sugeriu a existência de uma grande maquinação para impedir que Lula volte: “Nos porões do Planalto, no Congresso Nacional e mesmo na Suprema Corte tentam afastar o povo da decisão de eleger seu presidente. Por quê? Por que eles temem o povo?”. E ainda: “A luta mais importante hoje é pela democracia, na defesa do Estado democrático de direito, contra a ditadura da toga, do aparato policial judicial”.

Fora da militância petista, as palavras de Dirceu pouco reverberam. Mas, internamente, elas têm efeito. Embora a cadeia tenha deixado o ex-ministro distante da vida orgânica do PT, correligionários defendem que, agora, com Lula preso, o chefão entra em uma nova fase na relação com o partido que ajudou a fundar. Quando foi formalmente dirigente partidário, entre 1995 e 2002, período em que conduziu com mão de ferro a sigla, Dirceu foi o artífice da flexibilização do virulento discurso petista. A mudança propiciou a realização de uma política de alianças mais liberal — lembre-se que o vice de Lula era o empresário José Alencar — e um programa de governo mais palatável ao setor produtivo e ao mercado financeiro. Em razão do resultado dessa guinada, ele viveu o auge com a eleição de Lula e virou o superministro da Casa Civil. Durou pouco. Logo viriam os primeiros escândalos.

Condenado em 2013 pelo Supremo, ele se tornaria um mártir para a militância. Mas logo depois, a situação começaria a mudar. Inelegível e impedido de assumir cargos públicos, passou a dar consultorias a empresas interessadas em obter facilidades junto ao governo petista. A carreira de lobista de luxo acabou fazendo com que ele fosse colhido de novo pela Justiça. Quando foi preso pela primeira vez pela Lava Jato, ainda cumpria em regime aberto a pena a que foi condenado pelo mensalão. A operação descobrira que, enquanto pagava a pena, ele praticava outros crimes (veja nesta reportagem a lista de acusações). E vinha à luz, assim, uma outra face de Dirceu: a do companheiro que enriqueceu à custa de sua influência no partido. A diferença com que a militância o tratou nos dois escândalos revela um aspecto importante do ethos petista. No mensalão, em que recursos públicos foram desviados em prol do partido — no caso, a construção de uma base parlamentar para Lula –, Dirceu foi perdoado. No petrolão, como ficou demonstrado que ele enriqueceu pessoalmente, virou pária.

Afora a lealdade de antigos correligionários e admiradores, ele amargou um período de abandono. Mas dois fatores o ajudaram a voltar para o tabuleiro da política interna. Um deles é que, à diferença do ex-companheiro Antonio Palocci, ele não abriu a boca e rejeitou enfaticamente a possibilidade de fazer um acordo de delação premiada. O outro é que com Lula igualmente pilhado recebendo dinheiro para si mesmo, e igualmente preso e condenado, o discurso de perseguição do Judiciário pôde ser incorporado pelo ex-ministro. Esses dois elementos associados ao momento de desorientação política que o PT vive formaram o cenário perfeito para que Dirceu voltasse. “O Zé fala que quer desmontar a maior farsa que já montaram contra ele em toda a vida, que são esses julgamentos”, diz o deputado distrital Chico Vigilante, do PT, habitué do apartamento de Dirceu em um bairro nobre de Brasília. Além dele, os deputados federais Wadih Damous e Paulo Teixeira, também petistas, são presença constante nas conversas. Tratativas mais reservadas são deixadas para um escritório jurídico sem fachada no Lago Sul, outro bairro nobre de Brasília.

No prédio onde mora, José Dirceu costuma fazer exercícios e tomar sol na cobertura, onde tem à sua disposição academia, ofurô, piscina, salão de jogos e sala gourmet com forno a lenha, churrasqueira e vista para o Parque da Cidade, o maior da capital. O salão de jogos, que abriga mesa de sinuca e de tênis de mesa, é usado às vezes pelo petista para pequenas reuniões, segundo vizinhos. Em agosto, o ex-ministro pretende lançar o primeiro volume de suas memórias, escritas durante as temporadas na cadeia. O livro, que o próprio anuncia como “o mais polêmico de 2018”, contará histórias que se passaram até 2006, quando foi processado no mensalão. Dirceu tem dito que não poupará companheiros de críticas, especialmente quem “deixou o poder subir à cabeça”.

Dirceu espera fazer uma grande festa em Brasília para divulgar a obra. Depois, quer rodar o país. O pretexto será propagandear livro, mas a ideia é fazer política e ajudar o PT na campanha. Em sua vida pessoal, ele está longe do fausto de outros tempos, mas sempre que pode tenta manter alguns hábitos antigos. Para conservar a militância unida, ele organiza convescotes frequentes — bem mais modestos, claro. Recentemente, um dos encontros da tropa foi movido a feijoada, preparada pela cozinheira Maria de Jesus Oliveira, a Tia Zélia, uma velha conhecida do próprio Dirceu e de Lula. “Independentemente dos problemas, o Zé é uma pessoa muito simpática. No aniversário dele, pediram feijoada para 70 pessoas, mas cozinhei para 120”, diz ela. Uma vaquinha bancou o almoço em homenagem ao homem que, até outro dia, posava de milionário.

Até para realçar as dificuldades que diz estar passando desde que começou a ser “perseguido” pela Justiça, Dirceu gosta de espalhar que sua situação financeira não está tranquila. Apesar de morar em um apartamento confortável, registrado em nome de sua sogra, ele diz que tem contado com a ajuda de familiares e amigos (amigos que lhe devem muito) para pagar as próprias contas. A mensalidade da escola da filha de sete anos, por exemplo, é atribuição do filho mais velho, o deputado Zeca Dirceu, do PT do Paraná. Tempos atrás, a mulher do ex-ministro anunciou a pessoas próximas que passaria a vender azeites portugueses para incrementar a renda familiar. Como ex-deputado, o petista recebe aposentadoria de 9.600 reais da Câmara. Seus bens, avaliados em 11 milhões de reais, seguem bloqueados pela Lava Jato. Embora pendurado, Dirceu está de volta ao jogo. É o que basta para ele rir da cara da Justiça.
Por EDUARDO BARRETTO, na Revista Crusoé




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