Richard Nixon certamente
não imaginou que sua decisão de instalar microfones para gravar secretamente as
conversas no Salão Oval da Casa Branca o deixaria marcado como o primeiro
presidente americano a renunciar ao mandato. Entre fevereiro de 1971 e julho de
1973 foram mais de 3.500 horas de registros que envolveram assuntos de Estado,
como a guerra do Vietnã, suas visitas à China e à União Soviética e, claro, o
escândalo que causou sua ruína: o caso Watergate.
A existência do sistema de escuta no gabinete presidencial foi revelada por um assessor perante a comissão do Senado que investigava o envolvimento de Nixon na instalação de grampos telefônicos ilegais no escritório do partido Democrata nas eleições de 1972. A partir daí seguiu-se uma intensa batalha judicial, com o presidente se recusando a entregar as fitas. Na sua defesa, Nixon alegava razões de segurança nacional e recorria ao princípio da separação de Poderes para manter o sigilo sobre as gravações.
O ministro Celso de Mello recorreu ao caso United States v. Nixon para embasar sua decisão de tornar públicos os vídeos da reunião ministerial realizada no Palácio do Planalto em 22/04/2020. Por meio do seu famoso sistema de negritos, sublinhados e itálicos, o decano do STF deu ênfase ao posicionamento da Suprema Corte americana, que determinou que as fitas de Nixon fossem entregues, pois o chefe do Poder Executivo não tem o privilégio absoluto de estar acima da lei e ficar imune à produção de provas num processo criminal.
Nas últimas décadas capítulos importantes da história brasileira vêm sendo contados por conversas telefônicas, escutas ambientes e vídeos obtidos ilegalmente ou com a autorização da Justiça. De nebulosas transações durante o processo de privatização no governo FHC às articulações entre Dilma e Lula para nomeá-lo ministro e evitar sua prisão, passando pelas propostas indecentes feitas pelo empresário Joesley Batista a Michel Temer, as vísceras da República brasileira vêm sendo expostas rotineiramente em alto e bom som.
Na sexta-feira passada o Brasil parou para assistir ao vídeo da reunião de Bolsonaro. A contar pela repercussão nas redes sociais, o resultado foi plenamente favorável ao presidente. A íntegra da gravação não revelou muito mais do que já circulava na imprensa a respeito da suposta interferência do chefe do Poder Executivo em investigações conduzidas pela Polícia Federal. Sem “bala de prata”, os apoiadores de Bolsonaro cantaram vitória contra o antigo aliado Sergio Moro e todos que torciam pelo aparecimento de evidências robustas contra seu clã.
Todavia, em meio às dezenas de palavrões proferidas na reunião, o vídeo apresentou ao público um rico panorama do funcionamento interno da cúpula governamental. Pudemos observar de camarote que há um racha na equipe ministerial em relação às medidas necessárias para reativar a economia após a crise da covid-19: Paulo Guedes criticou de sonhador e político o plano Pró-Brasil, elaborado por Braga Netto (Casa Civil) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional), comparando-o à agenda de Dilma e Lula. Em outro momento, a ministra Damares Alves chamou a atenção para os riscos de lavagem de dinheiro e classificou como “pacto com o diabo” a proposta de Marcelo Álvaro Antônio (Turismo) de atrair para o país empreendimentos que integrem hotéis e cassinos.
A gravação ainda revela Abraham Weintraub admitindo sua militância política no exercício do cargo e defendendo “botar esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”. Mais adiante, Paulo Guedes fez coro ao ministro da Educação, deixando clara sua visão sobre a articulação institucional do governo: “enquanto eles estiverem no trilho conosco, no caminho fazendo as reformas que nós prometemos, nós tamo junto. Na hora que o cara soltou a mão e passou pro lado de lá, a gente deixa o cara ir sozinho e vai procurar outra conversa, em outro lugar”.
A decisão do ministro Celso de Mello de liberar o acesso à reunião ministerial consistiu, para muitos, numa desnecessária intervenção do Poder Judiciário, expondo ao público discussões internas travadas entre o presidente e seus principais auxiliares em torno de medidas governamentais em estudo ou suas percepções sobre a situação política do país.
Em 1974, logo após a renúncia de Richard Nixon, o Congresso americano determinou que suas fitas secretas fossem colocadas em custódia, de forma a evitar a sua destruição. Posteriormente, em 1978, foi aprovado o Presidential Records Act, uma lei que estabeleceu que todas as gravações em áudio e vídeo realizadas pela autoridade máxima dos EUA fossem consideradas de propriedade pública, sendo colocadas à disposição de qualquer interessado ao final do mandato.
Não há dúvidas de que é de interesse geral da sociedade conhecer a posição do ministro da Economia sobre a privatização do Banco do Brasil ou a defesa do ministro do Meio Ambiente de aproveitar o momento de comoção causado pela epidemia de coronavírus para aprovar “de baciada” a desregulamentação das normas ambientais.
Numa reunião em que ministros e presidentes de bancos estatais criticaram duramente o controle externo realizado pelo Tribunal de Contas da União – sob o silêncio constrangedor do chefe da CGU – fica cada vez mais clara a importância de se submeter ao escrutínio da sociedade não apenas os documentos internos ou a agenda pública das autoridades, mas também o que elas discutem sob portas fechadas e longe dos holofotes da imprensa. Esse tipo de informação é fundamental, inclusive, para apurar se houve dolo ou erro grosseiro dos agentes públicos em suas decisões (vide MP nº 966/2020).
Assim como o Watergate aumentou a transparência no governo americano, o vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro deveria estimular a adoção de uma legislação mais abrangente de gravação e divulgação futura das reuniões governamentais. Afinal, é muito melhor conhecer a história do país de forma institucionalizada do que por meio de grampos, vazamentos à imprensa ou decisões judiciais esporádicas.
"O vídeo da reunião ministerial expôs o governo como ele é"
Por Bruno Carazza, no Valor Econômico
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