O aparelho torna-se a
principal companhia dos dias de isolamento, aprofundando hábitos de dependência
que podem não ter volta depois da pandemia
“As imagens passam a ser nossos interlocutores, os parceiros na solidão à qual nos condenaram.” O pensamento parece contemporâneo, extraído do atual cenário de pandemia e isolamento social, em que o contato com o mundo exterior tem se estabelecido cada vez mais por meio de telas de aparelhos tecnológicos. Mas a frase data de 1985, escrita pelo filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser na obra O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. O autor, vítima de um acidente de trânsito em 1991, é tido como um visionário ao ter antecipado o aumento da relevância do que ele nomeia de “imagens técnicas” — as geradas pelos aparelhos, como os computadores — na rotina de todos nós.
Com a realidade da quarentena imposta a boa parte dos habitantes do planeta, as telas e os aplicativos de comunicação se tornaram, para muitos, a única interface de contato com o melhor amigo, o cônjuge, familiares e colegas de trabalho. Diante da impossibilidade de haver aglomerações, a essas maravilhas da tecnologia também recai o entretenimento disponível. Segundo a consultoria inglesa Kantar, em março o acesso ao WhatsApp registrou crescimento de 40% em todo o mundo. Já a FactSet, empresa americana de levantamento de dados financeiros, apontou que a Netflix já ganhou 15,77 milhões de novos assinantes — o dobro do que se esperava para o período. “Diante da necessidade de ficar em casa, as famílias recorrem ao que já se consolidava no dia a dia: fazer de tudo na internet”, avaliou o chefe de conteúdo da marca PlayKids, Fernando Collaço. Desenvolvido no Brasil e hoje presente em 180 países, o PlayKids é um dos aplicativos mais populares dentre os voltados ao público infantil. Desde o início da pandemia, registrou crescimento de 50% no tempo de uso do programa, que disponibiliza vídeos, jogos e livros digitais.
As plataformas digitais se fortalecem como ferramentas úteis para contatar parentes e amigos distantes, trabalhar e produzir mesmo longe do escritório, manter a rotina de exercícios físicos ou para simplesmente diminuir o tédio. Proliferam-se lives no Instagram que oferecem ioga, cursos de arte, atendimento terapêutico etc. Aplicativos de delivery, todos eles, anunciam crescimentos assombrosos em seus negócios — para atender à demanda, o Rappi aumentou em 300% a quantidade de entregadores disponíveis. A Squid, empresa de marketing especializada nos chamados “influenciadores digitais”, aponta acesso 90% maior a redes como Instagram e YouTube.
Entretanto, acende-se um sinal de alerta: recorrer com exagero às telas que nos cercam em casa pode trazer diversas consequências negativas — algumas, gravíssimas. “Esses aparelhos são úteis, excelentes alternativas na situação de quarentena. Só que é preciso lembrar que eles têm de estar aí para nos servir. O abuso pode levar a tecnologia a ocupar o espaço de outras drogas, como o cigarro, tornando-se um hábito que nos vicia, toma nosso tempo e acaba por prejudicar a vida”, pontuou o psiquiatra Cristiano Nabuco, do Grupo de Dependências Tecnológicas da Universidade de São Paulo (USP). Um típico dono de um smartphone clica no celular mais de 2.600 vezes por dia — quase duas vezes por minuto. Esse patamar já é tido como excessivo.
De acordo com um estudo publicado em 2017 por pesquisadores da Universidade de Seul, na Coreia do Sul, e que se estabeleceu como referência para cientistas, a dependência nessas telas é comparável ao vício em substâncias químicas. O abuso produz alterações no cérebro, com reações e síndromes de abstinência semelhantes aos efeitos de drogas como cocaína. Os sul-coreanos chegaram a essa conclusão ao analisar a atividade cerebral de jovens adictos de smartphones. O resultado: as alterações em neurotransmissores, responsáveis pelo funcionamento regular da mente, são similares às apresentadas por viciados em drogas usuais, daquelas que já existiam no mundo pré-internet.
Além do vício, outros danos à saúde mental de quem abusa das telas também são um risco. “Crianças que desde pequenas usam tablets e smartphones costumam, mais tarde, desenvolver dificuldade para interpretar pensamentos mais profundos e para compreender relações emocionais, que necessitam de empatia para com o outro”, avaliou Nabuco. “Adultos podem desenvolver uma gama de síndromes psicológicas. No momento da pandemia, isso pode ocorrer caso acessem constantemente, mais de duas vezes ao dia, redes sociais, repletas de informações que hoje em dia têm levado a sensações de tristeza.” Naquele estudo da Universidade de Seul, os diagnosticados como viciados em celular apresentaram níveis elevados de depressão, ansiedade, insônia e impulsividade.
É preciso impor (a si mesmo ou a outros, como filhos) cuidados e limites no uso das tecnologias do século XXI. Trata-se não só de evitar doenças ligadas à depressão, mas também abalos no bolso e na segurança das informações privadas armazenadas on-line. O excesso de tempo passado no ambiente virtual e a necessidade de usar esse meio para compras e qualquer outra atividade, em razão das restrições ligadas ao isolamento, podem fazer com que os cuidados com a movimentação de dados sejam preteridos. Uma sugestão já comezinha é não clicar em links suspeitos, nem expor dados privados e realizar transações financeiras via WhatsApp. Segundo a empresa de cibersegurança Kaspersky, líder em seu setor, na quarentena já se identifica alta de 124% na quantidade de golpes de hackers a dispositivos móveis, principalmente smartphones, desde o início da pandemia. Com menos pessoas nas ruas, os criminosos migraram para a internet.
Aplicativos, sites e smartphones são desenhados para atrair nossa atenção e nos tornar dependentes. No livro No enxame — Perspectivas do digital, publicado em 2018, e que incrementa as reflexões iniciadas por Vilém Flusser na década de 1980, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han define desta forma o perigo à espreita: “A atrofia digital da mão faria com que o próprio pensamento atrofiasse”. Assim o ser humano corre risco, segundo Han, de se transformar em um “fantasma digital” dentro de um enxame que “arruína o mundo”. Como evitar esse destino? A receita é tradicional: use com moderação. Como fazia, por exemplo, Steve Jobs (1955-2011), fundador da Apple, que assim respondeu quando questionado, no ano de 2010, em entrevista ao jornal The New York Times, sobre como era a relação de seus filhos com duas de suas invenções, o iPhone e o iPad: “Eu limito a quantidade de tecnologia a que eles têm acesso”. É certo que quem vende o produto sabe dos perigos do mesmo.
“As imagens passam a ser nossos interlocutores, os parceiros na solidão à qual nos condenaram.” O pensamento parece contemporâneo, extraído do atual cenário de pandemia e isolamento social, em que o contato com o mundo exterior tem se estabelecido cada vez mais por meio de telas de aparelhos tecnológicos. Mas a frase data de 1985, escrita pelo filósofo tcheco-brasileiro Vilém Flusser na obra O universo das imagens técnicas: elogio da superficialidade. O autor, vítima de um acidente de trânsito em 1991, é tido como um visionário ao ter antecipado o aumento da relevância do que ele nomeia de “imagens técnicas” — as geradas pelos aparelhos, como os computadores — na rotina de todos nós.
Com a realidade da quarentena imposta a boa parte dos habitantes do planeta, as telas e os aplicativos de comunicação se tornaram, para muitos, a única interface de contato com o melhor amigo, o cônjuge, familiares e colegas de trabalho. Diante da impossibilidade de haver aglomerações, a essas maravilhas da tecnologia também recai o entretenimento disponível. Segundo a consultoria inglesa Kantar, em março o acesso ao WhatsApp registrou crescimento de 40% em todo o mundo. Já a FactSet, empresa americana de levantamento de dados financeiros, apontou que a Netflix já ganhou 15,77 milhões de novos assinantes — o dobro do que se esperava para o período. “Diante da necessidade de ficar em casa, as famílias recorrem ao que já se consolidava no dia a dia: fazer de tudo na internet”, avaliou o chefe de conteúdo da marca PlayKids, Fernando Collaço. Desenvolvido no Brasil e hoje presente em 180 países, o PlayKids é um dos aplicativos mais populares dentre os voltados ao público infantil. Desde o início da pandemia, registrou crescimento de 50% no tempo de uso do programa, que disponibiliza vídeos, jogos e livros digitais.
As plataformas digitais se fortalecem como ferramentas úteis para contatar parentes e amigos distantes, trabalhar e produzir mesmo longe do escritório, manter a rotina de exercícios físicos ou para simplesmente diminuir o tédio. Proliferam-se lives no Instagram que oferecem ioga, cursos de arte, atendimento terapêutico etc. Aplicativos de delivery, todos eles, anunciam crescimentos assombrosos em seus negócios — para atender à demanda, o Rappi aumentou em 300% a quantidade de entregadores disponíveis. A Squid, empresa de marketing especializada nos chamados “influenciadores digitais”, aponta acesso 90% maior a redes como Instagram e YouTube.
Entretanto, acende-se um sinal de alerta: recorrer com exagero às telas que nos cercam em casa pode trazer diversas consequências negativas — algumas, gravíssimas. “Esses aparelhos são úteis, excelentes alternativas na situação de quarentena. Só que é preciso lembrar que eles têm de estar aí para nos servir. O abuso pode levar a tecnologia a ocupar o espaço de outras drogas, como o cigarro, tornando-se um hábito que nos vicia, toma nosso tempo e acaba por prejudicar a vida”, pontuou o psiquiatra Cristiano Nabuco, do Grupo de Dependências Tecnológicas da Universidade de São Paulo (USP). Um típico dono de um smartphone clica no celular mais de 2.600 vezes por dia — quase duas vezes por minuto. Esse patamar já é tido como excessivo.
De acordo com um estudo publicado em 2017 por pesquisadores da Universidade de Seul, na Coreia do Sul, e que se estabeleceu como referência para cientistas, a dependência nessas telas é comparável ao vício em substâncias químicas. O abuso produz alterações no cérebro, com reações e síndromes de abstinência semelhantes aos efeitos de drogas como cocaína. Os sul-coreanos chegaram a essa conclusão ao analisar a atividade cerebral de jovens adictos de smartphones. O resultado: as alterações em neurotransmissores, responsáveis pelo funcionamento regular da mente, são similares às apresentadas por viciados em drogas usuais, daquelas que já existiam no mundo pré-internet.
Além do vício, outros danos à saúde mental de quem abusa das telas também são um risco. “Crianças que desde pequenas usam tablets e smartphones costumam, mais tarde, desenvolver dificuldade para interpretar pensamentos mais profundos e para compreender relações emocionais, que necessitam de empatia para com o outro”, avaliou Nabuco. “Adultos podem desenvolver uma gama de síndromes psicológicas. No momento da pandemia, isso pode ocorrer caso acessem constantemente, mais de duas vezes ao dia, redes sociais, repletas de informações que hoje em dia têm levado a sensações de tristeza.” Naquele estudo da Universidade de Seul, os diagnosticados como viciados em celular apresentaram níveis elevados de depressão, ansiedade, insônia e impulsividade.
É preciso impor (a si mesmo ou a outros, como filhos) cuidados e limites no uso das tecnologias do século XXI. Trata-se não só de evitar doenças ligadas à depressão, mas também abalos no bolso e na segurança das informações privadas armazenadas on-line. O excesso de tempo passado no ambiente virtual e a necessidade de usar esse meio para compras e qualquer outra atividade, em razão das restrições ligadas ao isolamento, podem fazer com que os cuidados com a movimentação de dados sejam preteridos. Uma sugestão já comezinha é não clicar em links suspeitos, nem expor dados privados e realizar transações financeiras via WhatsApp. Segundo a empresa de cibersegurança Kaspersky, líder em seu setor, na quarentena já se identifica alta de 124% na quantidade de golpes de hackers a dispositivos móveis, principalmente smartphones, desde o início da pandemia. Com menos pessoas nas ruas, os criminosos migraram para a internet.
Aplicativos, sites e smartphones são desenhados para atrair nossa atenção e nos tornar dependentes. No livro No enxame — Perspectivas do digital, publicado em 2018, e que incrementa as reflexões iniciadas por Vilém Flusser na década de 1980, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han define desta forma o perigo à espreita: “A atrofia digital da mão faria com que o próprio pensamento atrofiasse”. Assim o ser humano corre risco, segundo Han, de se transformar em um “fantasma digital” dentro de um enxame que “arruína o mundo”. Como evitar esse destino? A receita é tradicional: use com moderação. Como fazia, por exemplo, Steve Jobs (1955-2011), fundador da Apple, que assim respondeu quando questionado, no ano de 2010, em entrevista ao jornal The New York Times, sobre como era a relação de seus filhos com duas de suas invenções, o iPhone e o iPad: “Eu limito a quantidade de tecnologia a que eles têm acesso”. É certo que quem vende o produto sabe dos perigos do mesmo.
Por Filipe Vilicic, na
Revista Época
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