quarta-feira, 13 de maio de 2020

ENTREVISTA - JUAN GUAIDÓ: O VÍRUS DA DITADURA



O líder da oposição alerta sobre a situação desesperadora da população da Venezuela e diz ter confiança em que a pressão interna vai tirar Maduro do poder

Com a economia em modo de terra arrasada, sem comida, sem remédio, dependendo de hospitais precários onde não há água nem sabão, a população da Venezuela já vivia em situação dramática quando a pandemia de Covid-19 desabou sobre o país. O governo comandado por Nicolás Maduro fala em 361 casos até agora e grandes avanços no combate ao novo coronavírus, com a ajuda da aliada China. Juan Guaidó, 36 anos, o líder oposicionista que se autoproclamou presidente interino, não só tem certeza de que o número de vítimas é muito maior como garante que a aliança com os chineses, uma das sustentações do regime chavista, está esgarçada. Isolado em um apartamento em Caracas com a mulher e a filha, de 2 anos, Guaidó lança mão de aplicativos para, quando a instável internet venezuelana permite, seguir angariando apoio em sua cruzada contra Maduro. Nesta entrevista por telefone a VEJA, ele explica que não há negociação possível com a ditadura e que os esforços da oposição são no sentido de atrair as autoridades e os militares que queiram passar “para o lado da Constituição”.

Os dados oficiais indicam 361 casos de contaminação e dez mortes na Venezuela em decorrência da pandemia, até terça-feira 5. Dá para acreditar?

Os números só servem para despistar a realidade. Não há fonte confiável no país, não só em questões de saúde mas também de inflação, recessão, segurança, pobreza. As autoridades se dedicam a ocultar informações.

O senhor acha certa a recente prorrogação do isolamento social da população?

Isolar é uma medida básica. Infelizmente, os venezuelanos não têm acesso a máscaras nem a álcool em gel, e em quase 90% das moradias não há água encanada. Nosso sistema de saúde entrou em colapso há anos. Falta água em 56% dos hospitais e 80% não têm sabão. Imagine o que significa isso no meio de uma pandemia. Há 84 respiradores artificiais na rede pública e pouco mais de 200 na particular. Fica difícil avaliar os efeitos da quarentena porque Maduro usa a crise planetária de escudo e persegue jornalistas que ousam informar sobre o novo coronavírus. Vivemos submetidos ao contágio de outro vírus ainda pior, o da ditadura fascista, que nos açoita há vinte anos.

A quarentena tem sido cumprida?

É difícil, porque mais de 50% dos trabalhadores venezuelanos são informais e não têm meios de fazer um estoque de mantimentos para não ter de sair de casa. É muito doloroso ver venezuelanos passar horas, até dias nas filas para comprar comida, correndo risco de contágio. Essa situação de vulnerabilidade afeta inclusive os países vizinhos, como Brasil e Colômbia. Mais de 264?000 refugiados foram recebidos pela Operação Acolhida do governo brasileiro, que, em meio à pandemia, continuou a abrigar mais venezuelanos. Mas o êxodo cria nas fronteiras uma emergência sanitária. A ditadura se transformou em uma ameaça para toda a região.

O que o senhor tem feito para aliviar o drama dos venezuelanos?

Meu maior empenho é fazer chegar ajuda humanitária à população. Conseguimos a liberação de 20 milhões de dólares de fundos da Venezuela, depositários de produtos da corrupção que estavam congelados no exterior, para fortalecer a ação da Caritas, da Cruz Vermelha e de outras entidades. Também me dedico a facilitar o registro de entidades não governamentais para atuar sob a orientação das Nações Unidas. Estou em contato com todos os países democráticos que possam colaborar nesta emergência. A interlocução internacional é nosso principal instrumento. Nada disso, porém, é suficiente. Neste momento em que estamos conversando, há três protestos em andamento no interior por falta de combustível para os produtores agrícolas. A ditadura destruiu nossas refinarias. No meio da pior crise mundial de saúde dos últimos 100 anos, não temos gasolina para o transporte de alimentos e para as ambulâncias.

A incidência do novo coronavírus agravou a situação dos presos políticos?

É sadismo manter presos políticos no meio de uma pandemia. Só a minha equipe tem mais de dez pessoas na clandestinidade e outras dezesseis presas ou exiladas. Tenho um tio que foi sequestrado pelo regime porque esteve comigo em uma viagem internacional. A namorada do meu assistente pessoal, Rafael Rico, foi sequestrada e a mãe dela, espancada, tudo para que dissessem onde ele se encontrava.

Tanto Jair Bolsonaro quanto o presidente americano Donald Trump, que o apoiam, demoraram a reconhecer a gravidade da pandemia. Foi uma falha deles?

Não faço comentários sobre atitudes de outros países, sobretudo diante da magnitude da emergência na Venezuela. Eu agradeço a ajuda que o Brasil está dando aos refugiados venezuelanos e o respaldo do presidente Trump a nossa causa democrática. Cada um tem seu sistema e age conforme sua necessidade. Alerto, no entanto, sobre o problema da migração nunca vista na região, que se tornou uma questão de segurança hemisférica. São 5 milhões de imigrantes venezuelanos, número equivalente aos da Síria, em guerra civil. A guerra aqui é pela liberdade de expressão, pelo direito à propriedade privada. Não escutamos bombas, ouvimos o lamento das pessoas.

O ex-presidente Lula o chamou de farsante, que deveria estar preso. Qual a sua resposta a isso?

Ao longo da minha carreira, fui candidato e sempre me elegi. Já Lula, condenado por corrupção no Brasil, tem responsabilidade pelo que está acontecendo na Venezuela. Ele ajudou Hugo Chávez e Maduro a instaurar a ditadura.

Tendo de enfrentar a pandemia, a economia esfacelada, a brusca queda do preço do petróleo e as sanções americanas, até quando Maduro vai resistir?

Não sei. Só sei que já foi longe demais.

Qual o papel da China e da Rússia na manutenção de Maduro no poder?

A China não emprestou 1 dólar à Venezuela nos últimos cinco anos e só continua a comprar seu petróleo, por meio de terceiros. A maior empresa petrolífera russa, a Rosneft, acaba de vender seus ativos e sair do país. Maduro está cada vez mais sozinho e controla apenas o desastre que criou. A única alternativa é a transição democrática.

Por que os militares continuam leais a ele?

Na verdade, no alto-comando militar cada um é fiel a si mesmo, e os quadros médios e baixos estão desesperados. Um tenente-coronel ganha de 12 a 15 dólares por mês e recebe uma cesta básica que virou uma ferramenta para controlar insatisfações. Maduro não tem militantes e seguidores, tem cúmplices. Por isso, nosso plano de transição prevê preservar os militares em seus cargos, para garantir a estabilidade.

Os Estados Unidos despacharam uma frota para o Caribe. Há risco de intervenção militar?

A presença dos navios é para coibir o narcotráfico e o terrorismo. Preferimos falar em cooperação conjunta. Se há uma intervenção hoje na Venezuela, ela vem de Cuba, que se envolve nos assuntos das Forças Armadas e toma parte de decisões importantes. Maduro nomeou recentemente o embaixador cubano Dagoberto Rodríguez para o seu conselho de ministros. Isso, sim, é motivo de alarme.

O regime chavista o acusou de estar por trás de uma suposta invasão de mercenários, vindos da Colômbia em lanchas, com o objetivo de matar Maduro. O senhor tem algo a ver com o incidente?

Ninguém sabe ainda quem são os oito mortos exibidos como supostos membros dessa operação. As forças de segurança os esperavam para massacrá-los, e isso indica que havia agentes do regime infiltrados. Nem eu nem a oposição em geral temos nada a ver com isso. Mas eles insistem em mentir.

Maduro rejeitou o plano de transição democrática que sua equipe montou e o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, divulgou em março. Ainda há negociação possível?

Ele não quer negociar, e nós não contamos com ele. Contamos com a pressão da sociedade e da comunidade internacional para alcançar uma transição ordenada, que apresente soluções para a crise na saúde e convoque eleições livres. Precisamos formar um governo de emergência nacional, centrado em um Conselho de Estado. Maduro não aceitar esse plano não quer dizer nada. Ele não tem respaldo popular, nem o respeito dos vizinhos e do resto do mundo, ainda mais agora que a Justiça americana o está processando por narcotráfico e terrorismo.

O senhor vê chance de que ele renuncie?

Maduro não quer deixar o poder, é claro, porque é um ditador. Mas não tem alternativa. Vamos continuar a oferecer garantias de não retaliação contra as Forças Armadas e a buscar alianças e opções na comunidade internacional. Estamos em contato com autoridades, insistindo para que passem para o lado da Constituição. Vou permanecer nesse caminho, usando todos os instrumentos democráticos e constitucionais de que dispomos, para fazer a vontade dos venezuelanos e empreender uma transição ordenada.

A seu ver, quais as primeiras providências a ser tomadas por um governo eleito?

Antes de tudo, é preciso combater a pandemia e trabalhar intensamente na assistência direta à população. Em seguida, necessitamos de ações para recuperar a confiança no país e a segurança jurídica. É claro que teremos de recorrer a empréstimos de organismos multilaterais para reativar o setor de serviços. Temos planos bem detalhados para reerguer o país, institucional e economicamente. Mais preocupante é o desarmamento dos grupos armados. As Farc e o ELN, da Colômbia, estão presentes em doze estados venezuelanos e vamos precisar de poderio para enfrentá-los. Os coletivos chavistas são paramilitares urbanos que atuam com a cumplicidade do Estado, mas eles podem ser controlados em curtíssimo prazo, através de uma ação efetiva das forças de segurança.

Quando o senhor assumiu a Presidência interina, disse que não seria candidato. Isso continua valendo?

Veremos no momento certo.

Por Denise Chrispim Marin, na Revista Veja






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