De Volta ao Passado - A
Realidade nas Trincheiras
Um relato do comandante da
Força Expedicionária Brasileira no conflito descreve como uma tropa sem preparo
e desacreditada alcançou a "glória imorredoura"
“Esta é a primeira e única versão oficial,
organizada e redigida sob a responsabilidade do comandante da Força
Expedicionária Brasileira (FEB). Seus termos são a expressão da verdade.”
Assim começava um relatório enviado em janeiro de
1946 ao Ministério da Guerra pelo general João Batista Mascarenhas de Moraes,
líder máximo da tropa brasileira despachada para lutar na Itália durante a
Segunda Guerra Mundial.
Com 666 páginas, o texto, conhecido apenas entre historiadores, estava prestes a ser exposto, pela primeira vez, ao grande público. Seria um dos destaques de uma exposição sobre os 75 anos da heroica conquista do Monte Castelo por soldados brasileiros que o Superior Tribunal Militar pretendia realizar neste mês em Brasília - isso antes do estouro da pandemia do novo coronavírus. O evento foi adiado e ainda não tem nova data, mas ÉPOCA teve acesso ao relato de Mascarenhas, que faz um retrato pormenorizado da participação brasileira - desde o processo de seleção feito no Brasil aos campos de batalha na Europa.
Com franqueza militar, o general descreve, a princípio, um quadro de “bagunça” e “falta de treinamento”. Para a cúpula das Forças Armadas, foi desafiador montar uma tropa para embarcar do Brasil para a Itália em pouco mais de um semestre - de outubro de 1943 a junho de 1944. Numa inspeção nos regimentos militares em Caçapava, São Paulo, São João Del Rey, Minas Gerais, e Duque de Caxias, Rio de Janeiro, em dezembro de 1943, a impressão inicial foi péssima: “Em todos eles foi constatado, de um modo geral, a balbúrdia ainda existente no que se referia à organização”.
Até preencher os postos de Engenharia era penoso. “As dificuldades da organização mostraram-se nessa fase insuperáveis. Onde encontrar para recrutar rádio-operadores, mecânicos em geral, estenógrafos, eletricistas, motoristas, carpinteiros de ponte, operadores de compressor de ar, operadores de martelete mecânico etc?. É uma unidade que não se pode improvisar”, anotou o general, com preocupação, observando que o Exército não possuía nenhum reservista sequer com essas especialidades. Mas a guerra corria. E o comandante escrevia: “O tempo avançava célere e nós estávamos ainda muito longe dos nossos objetivos”.
O governo brasileiro se valeu do que pôde. O então ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, que dali a um ano seria eleito presidente, ordenou diversas convocações de reservistas, à medida que a apresentação de voluntários fracassava. “Tudo indicava que se procurasse, em um voluntariado exigente, o contingente humano para formar a única divisão a atuar além-mar contra o fascismo.”
A realidade se provou mais complexa. “As juntas de inspeção começaram o seu penoso trabalho, constatando-se desde logo as maiores decepções, pela massa de homens, oficiais e praças, que nem sequer se classificavam na categoria de ‘normais’”, escreveu Mascarenhas. Em São João Del Rey, por exemplo, somente três homens foram classificados para a FEB.
Logo veio o remendo: “Tão calamitosa se apresentou a situação que a Diretoria de Saúde recebeu instruções para admitir, também, os homens da categoria ‘normal’”. “Houve casos de pessoas enviadas para a Itália como punição, por protestarem contra o governo Vargas. Isso é uma mostra da desorganização do Exército naquele tempo”, afirmou Luciano Meron, historiador da Universidade Federal da Bahia e autor da dissertação Memórias do front: Relatos de guerra de veteranos da FEB.
Fazia-se, antes mesmo das batalhas além-mar contra os nazifascistas, alguma vista grossa à seleção. Ou, como preferiu o comandante Mascarenhas: “Surgiu então uma certa benevolência na inspeção e algumas exigências, consideradas exageradas, foram abolidas. Isso traria, depois, amargos dissabores e pesados vexames”.
Os aliados americanos não tiveram a mesma complacência. Quando desembarcou em Nápoles, o 1º Escalão da Divisão de Infantaria Expedicionária (DIE), com 5.300 homens, passou logo por novos exames. “De acordo com os índices americanos de seleção, por exemplo, são feitas severas restrições aos homens que têm os dentes em mau estado.” O diagnóstico era “a necessidade de se executarem 20 mil extrações de dentes absolutamente imprestáveis e que ameaçavam o equilíbrio físico dos homens”. Os comandantes brasileiros ainda levaram uma “severa advertência” dos chefes americanos. Eles até tentaram retrucar, mas a realidade se impunha. “O resultado da nossa proverbial negligência era flagrante e não podia ser contestado: uma média de quatro extrações em cada homem, que poucos meses antes foram classificados na categoria ‘especial’”.
Se os especiais não eram perfeitos, o que dizer de um outro grupo? “Houve, mesmo, uma unidade que indicou para serem transferidos para a FEB soldados condenados cumprindo sentenças. Erro grave”, escreveu Mascarenhas, emendando: “Foram eles, certamente, os autores dos fatos escabrosos que nos envergonharam além-mar”. Não é possível saber que fatos escabrosos são esses, ou por quais crimes a FEB julgou 363 processos de sua tropa na Itália, sendo 63 de deserção sumária.
Mais do que a falta de treinamentos a contento, o general Mascarenhas traçava a psicologia do brasileiro, diagnosticando uma “deficiência moral”. Era o país no espelho da guerra. “Urge não esquecer esses fatos tristes que bem espelham a deficiência de nossa formação moral”, afirmou, e acrescentou: “O ambiente a que chegamos, com o descrédito que sempre demos ao que é nosso — e este é um mal do país e não exclusivo do Exército -, refletiu-se nocivamente na preparação militar da tropa”.
O relatório de Mascarenhas e os registros americanos deixam claro que os brasileiros que foram lutar na Itália eram a cara do Brasil real. Depois do conflito, livros de história trataram de popularizar uma versão um tanto laudatória de quem eram nossos combatentes e do papel que tiveram na guerra. Nas últimas quatro décadas, porém, houve um esforço de problematizar essa história. Em 1985, o jornalista William Waack vasculhou arquivos nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha e entrevistou soldados americanos e alemães que tiveram contato com os brasileiros. O resultado foi o livro As duas faces da glória, com descrições de falta de preparo e, num primeiro momento, de coragem, mas outras tantas também de conquistas. Novas gerações de historiadores seguiram a mesma trilha de desmitificar a FEB.
O embarque para a Itália, a partir de junho de 1944, foi cercado de sigilo. Havia ameaças de submarinos inimigos ao longo de toda a costa brasileira. Um grupo seguiu para o porto carioca em sete vagões de trem, sob a expressa ordem de manter as janelas fechadas. Na saída da Vila Militar, os cerca de 5 mil homens tinham sido comunicados de que fariam um exercício militar em Nova Iguaçu. Ao chegarem ao final da linha, viram o Porto do Rio de Janeiro e um imenso navio americano, o USS General W.A. Mann.
Antes da partida, uma visita ilustre. Por volta da meia-noite, um Cadillac preto estacionou junto ao cais acompanhado de batedores. Momentos depois, pelo alto-falante das cabines, a tropa brasileira ouvia a voz do presidente Getulio Vargas.
Até chegar àquele ponto, o governo brasileiro tinha percorrido um longo percurso. Um ano após o estouro da Segunda Guerra Mundial, Vargas tinha sido o primeiro brasileiro a aparecer na capa da revista Time, em 1940. A reportagem dizia que o presidente detestava o fato de ser descrito na imprensa americana como um fantoche do expansionismo nazifascista na América do Sul.
Autárquico e autoritário, Vargas tinha sido alvo de reportagens que revelavam suas simpatias pelas forças do Eixo - e de membros de seu governo também. Mas 1940 marcou o empréstimo americano para a construção da primeira siderúrgica no Brasil e o alinhamento do governo brasileiro contra o Terceiro Reich - isso mesmo antes de os Estados Unidos entrarem na guerra. Depois viriam outros acordos militares entre os dois países e a presença americana no Nordeste brasileiro.
No desembarque em solo italiano, em 16 de julho de 1944, os soldados brasileiros passaram ao relento a primeira noite “terrivelmente fria”, o que geraria uma explosão de resfriados. A confusão aconteceu porque era uma exigência americana que os brasileiros embarcassem sem barracas. Elas estariam disponíveis na chegada. Mas não estavam. “A surpresa foi geral”, registrou Mascarenhas. A bagunça também era americana.
Nos primeiros 15 dias na Itália, 250 brasileiros já haviam sido enviados para hospitais. Isso antes de trocarem tiros com os alemães. Aliás, seria impossível dar um tiro, por algum tempo. “O primeiro mês passado na Itália se caracterizou pela falta absoluta de armamento e de material de instrução.” Quando as armas chegaram, o chefe escreveu que “o nosso soldado é pouco cuidadoso” e reproduziu o relato de um inspetor: “Os brasileiros não gostavam ou não sabiam limpar os seus fuzis!”. Além de tudo, o uniforme dos brasileiros não era preparado para o rigoroso inverno europeu.
Apesar da dureza da guerra, os pracinhas da FEB também tiveram alguns hiatos para espairecer. Um grupamento de 22 praças e um oficial, batizado de Serviço Especial, foi montado só para “atender a tropa em tudo o que afete o seu moral”. Em termos concretos: revistas do Zé Carioca, cerveja, chocolate, jogos, música e livros. A doação de pessoas e entidades foi crucial para colocar de pé o Serviço Especial. “Foram realizados jogos de futebol contra esquadrões civis e militares em que fomos sempre vencedores”, anotou Mascarenhas, uma década antes de Pelé e companhia ganharem a primeira Copa do Mundo. Brasileiros e americanos se juntaram para tocar jazz. E também eram servidas bebidas para aliviar a “tensão exaustiva do combate e intensíssimo fogo”.
“A distribuição de cerveja, Coca-Cola e chocolate, sob intenso bombardeio, em Montese, Ranocchio, Rocca Pitigliana e outros pontos foi fator decisivo na conservação de um alto moral na tropa”, registrou o relatório. Os militares, contudo, reclamavam dos cigarros brasileiros. “A tropa se acostumou ao cigarro americano, de muito boa qualidade e de preço reduzido, não aceitando determinadas marcas brasileiras de qualidade alarmantemente inferior.” A insatisfação chegou a tal ponto que o comando da FEB mandou comprar cigarros fabricados nos Estados Unidos.
O mote da campanha brasileira na Segunda Guerra Mundial, “a cobra está fumando”, surgiu ao acaso, no meio da tropa, às vésperas do embarque para a Itália. O slogan cruzou o Atlântico e pegou. “Era comum a tropa exclamar, quando o inimigo se revelava com seus fogos ‘a cobra está fumando’.” Os locais mais perigosos na batalha, nessa mesma lógica, eram designados de “ninho da cobra”. Em visita a um batalhão na Itália, o então ministro Eurico Gaspar Dutra gostou da história e incentivou a criação de um distintivo da tropa, que até então era apenas “Brasil”.
Finalmente, chegou o momento da vitória. O ápice é a tomada de Monte Castelo, em 21 de fevereiro de 1945. Neste ponto, o depoimento de Mascarenhas fica eufórico. Depois de três meses de tentativas, os brasileiros, com o time completo de três regimentos de infantaria, conseguiram alcançar o cume do monte e derrubar a fortaleza alemã.
No relatório, Mascarenhas ressalta o valor da tropa, composta de jovens humildes que foram lutar uma guerra distante de seus lares (o Brasil foi o único país da América Latina a enviar soldados para a batalha). “Sua capacidade combativa se revela na aprendizagem rápida, diante do inimigo, das artimanhas da guerra; e, à proporção que ia adquirindo essa experiência, tornou-se mais e mais consciente do seu valor, aprimorando, assim, suas inegáveis qualidades de combatente.”
A infantaria da FEB, que representou 94,5% das 465 mortes de brasileiros, mereceu especial carinho do comandante Mascarenhas, que considerou o “sacrifício” dos pracinhas em todos os setores. “Mas a Infantaria brasileira, continuadora da glória imorredoura de Sampaio foi de todas as armas a mais sacrificada. Foi a ela que coube em arrancadas fulminantes, pelo fogo ou pela baioneta, desalojar o inimigo de suas posições dominantes e poderosas, quebrar-lhe a fúria selvagem, tomar-lhe o terreno, aprisioná-lo e persegui-lo. A pé, de arma na mão, abnegado e estoico, arrastando-se na lama ou no gelo, ascendendo penhascos agrestes ou através de vales profundos, indiferente às minas e aos fogos traiçoeiros, a um só tempo marchando e lutando, superior às intempéries e à fadiga, vai o infante brasileiro, em busca ao inimigo onde quer que ele esteja.”
Aqueles soldados com falhas de caráter e condenados pela Justiça Militar haviam se transformado, na visão do comandante. Mascarenhas agora estava “proclamando a coragem e a bravura do nosso soldado, a consciência profissional dos nossos quadros, o patriotismo e o equilíbrio dos nossos chefes”. Investigações feitas posteriormente comprovaram essa passagem do relatório. Após a vitória, também houve elogios aos brasileiros por tratarem prisioneiros com dignidade.
Com 666 páginas, o texto, conhecido apenas entre historiadores, estava prestes a ser exposto, pela primeira vez, ao grande público. Seria um dos destaques de uma exposição sobre os 75 anos da heroica conquista do Monte Castelo por soldados brasileiros que o Superior Tribunal Militar pretendia realizar neste mês em Brasília - isso antes do estouro da pandemia do novo coronavírus. O evento foi adiado e ainda não tem nova data, mas ÉPOCA teve acesso ao relato de Mascarenhas, que faz um retrato pormenorizado da participação brasileira - desde o processo de seleção feito no Brasil aos campos de batalha na Europa.
Com franqueza militar, o general descreve, a princípio, um quadro de “bagunça” e “falta de treinamento”. Para a cúpula das Forças Armadas, foi desafiador montar uma tropa para embarcar do Brasil para a Itália em pouco mais de um semestre - de outubro de 1943 a junho de 1944. Numa inspeção nos regimentos militares em Caçapava, São Paulo, São João Del Rey, Minas Gerais, e Duque de Caxias, Rio de Janeiro, em dezembro de 1943, a impressão inicial foi péssima: “Em todos eles foi constatado, de um modo geral, a balbúrdia ainda existente no que se referia à organização”.
Até preencher os postos de Engenharia era penoso. “As dificuldades da organização mostraram-se nessa fase insuperáveis. Onde encontrar para recrutar rádio-operadores, mecânicos em geral, estenógrafos, eletricistas, motoristas, carpinteiros de ponte, operadores de compressor de ar, operadores de martelete mecânico etc?. É uma unidade que não se pode improvisar”, anotou o general, com preocupação, observando que o Exército não possuía nenhum reservista sequer com essas especialidades. Mas a guerra corria. E o comandante escrevia: “O tempo avançava célere e nós estávamos ainda muito longe dos nossos objetivos”.
O governo brasileiro se valeu do que pôde. O então ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, que dali a um ano seria eleito presidente, ordenou diversas convocações de reservistas, à medida que a apresentação de voluntários fracassava. “Tudo indicava que se procurasse, em um voluntariado exigente, o contingente humano para formar a única divisão a atuar além-mar contra o fascismo.”
A realidade se provou mais complexa. “As juntas de inspeção começaram o seu penoso trabalho, constatando-se desde logo as maiores decepções, pela massa de homens, oficiais e praças, que nem sequer se classificavam na categoria de ‘normais’”, escreveu Mascarenhas. Em São João Del Rey, por exemplo, somente três homens foram classificados para a FEB.
Logo veio o remendo: “Tão calamitosa se apresentou a situação que a Diretoria de Saúde recebeu instruções para admitir, também, os homens da categoria ‘normal’”. “Houve casos de pessoas enviadas para a Itália como punição, por protestarem contra o governo Vargas. Isso é uma mostra da desorganização do Exército naquele tempo”, afirmou Luciano Meron, historiador da Universidade Federal da Bahia e autor da dissertação Memórias do front: Relatos de guerra de veteranos da FEB.
Fazia-se, antes mesmo das batalhas além-mar contra os nazifascistas, alguma vista grossa à seleção. Ou, como preferiu o comandante Mascarenhas: “Surgiu então uma certa benevolência na inspeção e algumas exigências, consideradas exageradas, foram abolidas. Isso traria, depois, amargos dissabores e pesados vexames”.
Os aliados americanos não tiveram a mesma complacência. Quando desembarcou em Nápoles, o 1º Escalão da Divisão de Infantaria Expedicionária (DIE), com 5.300 homens, passou logo por novos exames. “De acordo com os índices americanos de seleção, por exemplo, são feitas severas restrições aos homens que têm os dentes em mau estado.” O diagnóstico era “a necessidade de se executarem 20 mil extrações de dentes absolutamente imprestáveis e que ameaçavam o equilíbrio físico dos homens”. Os comandantes brasileiros ainda levaram uma “severa advertência” dos chefes americanos. Eles até tentaram retrucar, mas a realidade se impunha. “O resultado da nossa proverbial negligência era flagrante e não podia ser contestado: uma média de quatro extrações em cada homem, que poucos meses antes foram classificados na categoria ‘especial’”.
Se os especiais não eram perfeitos, o que dizer de um outro grupo? “Houve, mesmo, uma unidade que indicou para serem transferidos para a FEB soldados condenados cumprindo sentenças. Erro grave”, escreveu Mascarenhas, emendando: “Foram eles, certamente, os autores dos fatos escabrosos que nos envergonharam além-mar”. Não é possível saber que fatos escabrosos são esses, ou por quais crimes a FEB julgou 363 processos de sua tropa na Itália, sendo 63 de deserção sumária.
Mais do que a falta de treinamentos a contento, o general Mascarenhas traçava a psicologia do brasileiro, diagnosticando uma “deficiência moral”. Era o país no espelho da guerra. “Urge não esquecer esses fatos tristes que bem espelham a deficiência de nossa formação moral”, afirmou, e acrescentou: “O ambiente a que chegamos, com o descrédito que sempre demos ao que é nosso — e este é um mal do país e não exclusivo do Exército -, refletiu-se nocivamente na preparação militar da tropa”.
O relatório de Mascarenhas e os registros americanos deixam claro que os brasileiros que foram lutar na Itália eram a cara do Brasil real. Depois do conflito, livros de história trataram de popularizar uma versão um tanto laudatória de quem eram nossos combatentes e do papel que tiveram na guerra. Nas últimas quatro décadas, porém, houve um esforço de problematizar essa história. Em 1985, o jornalista William Waack vasculhou arquivos nos Estados Unidos, na Inglaterra e na Alemanha e entrevistou soldados americanos e alemães que tiveram contato com os brasileiros. O resultado foi o livro As duas faces da glória, com descrições de falta de preparo e, num primeiro momento, de coragem, mas outras tantas também de conquistas. Novas gerações de historiadores seguiram a mesma trilha de desmitificar a FEB.
O embarque para a Itália, a partir de junho de 1944, foi cercado de sigilo. Havia ameaças de submarinos inimigos ao longo de toda a costa brasileira. Um grupo seguiu para o porto carioca em sete vagões de trem, sob a expressa ordem de manter as janelas fechadas. Na saída da Vila Militar, os cerca de 5 mil homens tinham sido comunicados de que fariam um exercício militar em Nova Iguaçu. Ao chegarem ao final da linha, viram o Porto do Rio de Janeiro e um imenso navio americano, o USS General W.A. Mann.
Antes da partida, uma visita ilustre. Por volta da meia-noite, um Cadillac preto estacionou junto ao cais acompanhado de batedores. Momentos depois, pelo alto-falante das cabines, a tropa brasileira ouvia a voz do presidente Getulio Vargas.
Até chegar àquele ponto, o governo brasileiro tinha percorrido um longo percurso. Um ano após o estouro da Segunda Guerra Mundial, Vargas tinha sido o primeiro brasileiro a aparecer na capa da revista Time, em 1940. A reportagem dizia que o presidente detestava o fato de ser descrito na imprensa americana como um fantoche do expansionismo nazifascista na América do Sul.
Autárquico e autoritário, Vargas tinha sido alvo de reportagens que revelavam suas simpatias pelas forças do Eixo - e de membros de seu governo também. Mas 1940 marcou o empréstimo americano para a construção da primeira siderúrgica no Brasil e o alinhamento do governo brasileiro contra o Terceiro Reich - isso mesmo antes de os Estados Unidos entrarem na guerra. Depois viriam outros acordos militares entre os dois países e a presença americana no Nordeste brasileiro.
No desembarque em solo italiano, em 16 de julho de 1944, os soldados brasileiros passaram ao relento a primeira noite “terrivelmente fria”, o que geraria uma explosão de resfriados. A confusão aconteceu porque era uma exigência americana que os brasileiros embarcassem sem barracas. Elas estariam disponíveis na chegada. Mas não estavam. “A surpresa foi geral”, registrou Mascarenhas. A bagunça também era americana.
Nos primeiros 15 dias na Itália, 250 brasileiros já haviam sido enviados para hospitais. Isso antes de trocarem tiros com os alemães. Aliás, seria impossível dar um tiro, por algum tempo. “O primeiro mês passado na Itália se caracterizou pela falta absoluta de armamento e de material de instrução.” Quando as armas chegaram, o chefe escreveu que “o nosso soldado é pouco cuidadoso” e reproduziu o relato de um inspetor: “Os brasileiros não gostavam ou não sabiam limpar os seus fuzis!”. Além de tudo, o uniforme dos brasileiros não era preparado para o rigoroso inverno europeu.
Apesar da dureza da guerra, os pracinhas da FEB também tiveram alguns hiatos para espairecer. Um grupamento de 22 praças e um oficial, batizado de Serviço Especial, foi montado só para “atender a tropa em tudo o que afete o seu moral”. Em termos concretos: revistas do Zé Carioca, cerveja, chocolate, jogos, música e livros. A doação de pessoas e entidades foi crucial para colocar de pé o Serviço Especial. “Foram realizados jogos de futebol contra esquadrões civis e militares em que fomos sempre vencedores”, anotou Mascarenhas, uma década antes de Pelé e companhia ganharem a primeira Copa do Mundo. Brasileiros e americanos se juntaram para tocar jazz. E também eram servidas bebidas para aliviar a “tensão exaustiva do combate e intensíssimo fogo”.
“A distribuição de cerveja, Coca-Cola e chocolate, sob intenso bombardeio, em Montese, Ranocchio, Rocca Pitigliana e outros pontos foi fator decisivo na conservação de um alto moral na tropa”, registrou o relatório. Os militares, contudo, reclamavam dos cigarros brasileiros. “A tropa se acostumou ao cigarro americano, de muito boa qualidade e de preço reduzido, não aceitando determinadas marcas brasileiras de qualidade alarmantemente inferior.” A insatisfação chegou a tal ponto que o comando da FEB mandou comprar cigarros fabricados nos Estados Unidos.
O mote da campanha brasileira na Segunda Guerra Mundial, “a cobra está fumando”, surgiu ao acaso, no meio da tropa, às vésperas do embarque para a Itália. O slogan cruzou o Atlântico e pegou. “Era comum a tropa exclamar, quando o inimigo se revelava com seus fogos ‘a cobra está fumando’.” Os locais mais perigosos na batalha, nessa mesma lógica, eram designados de “ninho da cobra”. Em visita a um batalhão na Itália, o então ministro Eurico Gaspar Dutra gostou da história e incentivou a criação de um distintivo da tropa, que até então era apenas “Brasil”.
Finalmente, chegou o momento da vitória. O ápice é a tomada de Monte Castelo, em 21 de fevereiro de 1945. Neste ponto, o depoimento de Mascarenhas fica eufórico. Depois de três meses de tentativas, os brasileiros, com o time completo de três regimentos de infantaria, conseguiram alcançar o cume do monte e derrubar a fortaleza alemã.
No relatório, Mascarenhas ressalta o valor da tropa, composta de jovens humildes que foram lutar uma guerra distante de seus lares (o Brasil foi o único país da América Latina a enviar soldados para a batalha). “Sua capacidade combativa se revela na aprendizagem rápida, diante do inimigo, das artimanhas da guerra; e, à proporção que ia adquirindo essa experiência, tornou-se mais e mais consciente do seu valor, aprimorando, assim, suas inegáveis qualidades de combatente.”
A infantaria da FEB, que representou 94,5% das 465 mortes de brasileiros, mereceu especial carinho do comandante Mascarenhas, que considerou o “sacrifício” dos pracinhas em todos os setores. “Mas a Infantaria brasileira, continuadora da glória imorredoura de Sampaio foi de todas as armas a mais sacrificada. Foi a ela que coube em arrancadas fulminantes, pelo fogo ou pela baioneta, desalojar o inimigo de suas posições dominantes e poderosas, quebrar-lhe a fúria selvagem, tomar-lhe o terreno, aprisioná-lo e persegui-lo. A pé, de arma na mão, abnegado e estoico, arrastando-se na lama ou no gelo, ascendendo penhascos agrestes ou através de vales profundos, indiferente às minas e aos fogos traiçoeiros, a um só tempo marchando e lutando, superior às intempéries e à fadiga, vai o infante brasileiro, em busca ao inimigo onde quer que ele esteja.”
Aqueles soldados com falhas de caráter e condenados pela Justiça Militar haviam se transformado, na visão do comandante. Mascarenhas agora estava “proclamando a coragem e a bravura do nosso soldado, a consciência profissional dos nossos quadros, o patriotismo e o equilíbrio dos nossos chefes”. Investigações feitas posteriormente comprovaram essa passagem do relatório. Após a vitória, também houve elogios aos brasileiros por tratarem prisioneiros com dignidade.
Por GUILHERME AMADO, na Revista Época
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