Antes de decretar fim à pandemia do coronavírus, o
Brasil e o mundo desenham estratégias de reabertura. O risco de uma volta
antecipada é aprofundar a crise
Nos últimos dias, as imagens de crianças chinesas retornando às aulas em Pequim e Xangai, as duas maiores cidades da China, correram o mundo. A reabertura das escolas, após três meses de uma rígida quarentena, era o sinal que faltava para decretar oficialmente o fim do surto no país — ainda que a vigilância continue firme para evitar uma segunda onda de transmissões no país. No início de maio, após oito semanas seguidas em que pandemia atingiu seu pico, quase tudo voltou a operar na China: fábricas, shoppings, restaurantes, espaços públicos.
É esperado para o final do mês o encontro anual do Congresso Nacional do Povo, no qual 3.000 parlamentares vão se reunir pessoalmente. O retorno à quase normalidade da China contrasta com a realidade de boa parte do mundo ocidental, onde os países ainda lutam para reduzir as curvas de contaminação por covid-19. Mas, se em termos epidemiológicos impera a cautela em decretar o fim da pandemia, os governos não se furtaram em acelerar os planos de reabertura da economia, numa tentativa de conter o tamanho do desastre econômico que virá.
Itália e Espanha, os países europeus mais afetados, com mais de 200.000 contaminados cada um, já liberaram o retorno de parte das atividades produtivas, mesmo com regras duras de convívio social. A França, com 168.000 infectados, planeja a reabertura de lojas, restaurantes e praias no dia 11 de maio. A Nova Zelândia, país que emergiu como modelo de combate ao coronavírus, só anunciou medidas para aliviar a quarentena depois de 95% dos contaminados terem se curado. No Brasil, que ainda carece de uma estratégia nacional de combate ao coronavírus e mais de 100.000 pessoas foram contaminadas, estados e municípios traçam as coordenadas de reabertura mediante a pressão da população.
Em Santa Catarina, a retomada do comércio teve início em 13 de abril, quando o estado tinha registrado cerca de 770 casos e 24 mortes. Na fase 1 permitiram-se a abertura de lojas de rua e os serviços autônomos. Na segunda fase, iniciada em 22 de abril, foram abertos shoppings, academias e restaurantes. Em Blumenau, o shopping Neumarkt preparou uma recepção para os clientes, que se aglomeraram na entrada do centro comercial enquanto eram recebidos por vendedores, ao som de um saxofonista. Na cidade havia 71 casos quando o comércio reabriu. Passadas duas semanas, na terça-feira 28 de abril foram registrados 194 casos, uma alta de 173%.
O governador do estado de São Paulo, João Doria (PSDB), que previa um plano de relaxamento das medidas de isolamento em 11 de maio, ameaça postergar a retomada diante dos baixos índices de isolamento social, sobretudo na capital paulista. Campinas, no interior de São Paulo, também quer a reabertura do comércio quanto antes. O prefeito Jonas Donizette (PSB) havia proposto um plano de retomada do comércio local em 4 de maio. A data não foi aprovada pelo governo do estado — e uma nova data não foi divulgada até o fechamento desta edição da EXAME.
O projeto de Campinas permite na primeira fase a reabertura de, por exemplo, salões de beleza, academias e instituições religiosas com obrigatoriedade do uso de máscara, regras de distanciamento e lotação regulada. “Planejamos a reabertura levando em consideração a taxa de transmissibilidade, a ocupação dos leitos e a capacidade de testagem. Após 14 dias de execução, vamos avaliar os resultados e entender se podemos seguir para a próxima fase”, afirma o prefeito. No dia 30 de abril, Campinas contabilizava 347 casos e 20 mortes.
Mas, afinal, como deve ser o processo de reabertura da economia em meio ao avanço de uma doença ainda mal compreendida pela ciência e que já contaminou mais de 3,5 milhões de pessoas no mundo? Para além das muitas dúvidas, há algumas certezas: uma vacina, a solução definitiva para a covid-19, é esperada para daqui a um ano. É consenso também que o pior cenário é o que engloba uma reabertura precoce da economia seguida de uma nova aceleração da curva de contágio, resultando em aumento de internações e mortes e, consequentemente, levando a um novo fechamento das atividades — e a uma descrença nos governantes. “A reabertura da economia depende de três fatores: capacidade do sistema de saúde, testes em massa e redução da taxa de transmissibilidade dos infectados. Sem isso, reabrir significa provavelmente ter de fechar novamente”, diz o economista José Alexandre Scheinkman, da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos.
Por isso, a esperança tem sido depositada na estratégia chamada de TTSI: na sigla em inglês, “testagem, rastreamento e isolamento social”. No geral, funciona assim: contida a curva mais acentuada de contágio, as pessoas com sintomas da doença são testadas de forma rápida. Os indivíduos com os quais o doente teve contato são mapeados, por meio de entrevista e uso de aplicativos, e colocados em quarentena preventiva.
Se o teste dá negativo, são liberados; se dá positivo, completam os 14 dias de isolamento. Dessa forma, novos surtos da doença são contidos no nascedouro. A Fundação Rockefeller, nos Estados Unidos, criou um plano para elevar radicalmente o nível de diagnóstico na população americana, que está hoje em 0,3%, patamar estacionado desde fevereiro. Com 330 milhões de habitantes e 1,2 milhão de infectados, o país pretende elevar imediatamente a capacidade semanal para 1 milhão de testes e, nas oito semanas seguintes, expandi-la para 3 milhões de exames, o que equivale a quase 1% da população.
Junto com isso, é desenhado um plano de contratação de profissionais de saúde para implementar o diagnóstico e o monitoramento posterior dos infectados, apoiado por uma plataforma digital unificada de informações. Sim, custa caro um plano desses. Seriam 100 bilhões de dólares ao longo de um ano, mas o custo mensal da quarentena na economia americana é de 400 bilhões de dólares.
A Universidade Harvard reuniu um time de 23 especialistas, entre infectologistas e economistas, que lançou um documento de como seria uma nova economia resiliente a pandemias. O plano foi pensado para os Estados Unidos, mas suas diretrizes podem ser aplicadas em outros países ricos e exigiriam ajustes de escala para a realidade de países de renda média, como o Brasil. Também é baseado num plano agressivo de testagem que permite a liberação das atividades econômicas e o retorno dos trabalhadores em quatro fases.
Se num extremo 40% dos trabalhadores não param durante uma pandemia, pois estão alocados em setores considerados essenciais, como o de saúde, alimentação e logística; no outro estão 20% dos profissionais que conseguem desempenhar suas funções remotamente e devem ser os últimos a retomar a rotina presencial. No meio disso, segmentos da economia e trabalhadores são autorizados a voltar às suas atividades à medida que o surto é contido. “Nenhum lugar controlou a doença depois de ter chegado ao nível de penetração que chegou nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil. Mas todo país que controlou a doença o fez usando estratégias de TTSI”, diz Glen Weyl, pesquisador da Microsoft e um dos coordenadores do plano.
O caso mais emblemático de sucesso, entre os países inicialmente mais afetados, é a Coreia do Sul, onde, devido ao trauma de pandemias passadas, como a sars em 2003, já havia um aparato pronto para ser mobilizado. Lá, foram 11.000 testes por milhão de habitantes. A Alemanha, que conseguiu rastrear a evolução da epidemia a partir dos 16 primeiros contaminados no país, chegou a aplicar quase 25.000 testes por milhão de habitantes. Já o Brasil navega às cegas, como o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, já declarou.
O país testa muito pouco: são 1.500 exames do tipo PCR por milhão de habitantes, teste de biologia molecular que detecta a presença do vírus (os testes rápidos têm baixa confiabilidade e servem para identificar quem desenvolveu imunidade ao vírus). Tão emergentes quanto o Brasil, Turquia e Rússia testam por PCR, respectivamente, sete e 13 vezes mais. O problema por aqui é agravado pela taxa de transmissão local, de 2,81, segundo cálculos da universidade Imperial College, do Reino Unido. Isso significa que cada brasileiro passa a doença para outros três, o ritmo mais alto do mundo. Para uma queda efetiva de casos, a taxa de transmissão precisa estar abaixo de 1.
O governo do estado de São Paulo anunciou que pretende chegar a 27.000 testes por milhão, patamar semelhante ao de países como Itália e Espanha. A Fundação Oswaldo Cruz passará de uma produção de 60.000 exames, em março, para 2,4 milhões, em maio. O Ministério da Saúde encomendou 11 milhões de unidades, que serão entregues até setembro, mas uma logística eficiente precisa estar colocada para que testes sejam aplicados, enviados ao laboratório e tenham o resultado divulgado. “Quanto mais demora essa fase, mais gente do que o necessário está sendo isolada preventivamente”, diz Paulo Chapchap, diretor-geral do Hospital Sírio-Libanês.
Na discussão sobre a reabertura da economia, emergiu uma ideia polêmica: a emissão de “passaportes de imunidade” para quem já teve a doença. Reino Unido, Estados Unidos, Espanha e outros países discutem como implementar a medida — plano que o ministro da Economia, Paulo Guedes, também já cogitou aplicar no Brasil. A estratégia precisa de comprovação, porque ainda não há confirmação científica de que só se contrai a covid-19 uma vez, como ocorre com outras gripes. A ideia também esbarra em problemas éticos, podendo criar um incentivo para as pessoas se contaminarem deliberadamente para ir trabalhar.
A reabertura da economia, porém, não garante a retomada do consumo. A escolha de onde e como gastar é influenciada diretamente pela confiança no futuro. Durante a quarentena, 78% das pessoas saem de casa apenas para comprar itens necessários, como alimentos e remédios, segundo um levantamento da empresa de pesquisas Kantar. Fatores como medo da recessão e falta de dinheiro, obviamente, influenciam nas decisões. Em abril, o índice de endividamento atingiu cerca de 66% das famílias brasileiras, o maior desde 2010.
“Mais do que fazer previsões, este é o momento de entender as incertezas da população. Não podemos esperar que o comércio no Brasil automaticamente volte aos padrões de antes”, diz Marcos Calliari, presidente da empresa de pesquisa Ipsos. O auxílio emergencial do governo distribuiu 31,3 bilhões de reais para 44,3 milhões de brasileiros na primeira etapa. Mulheres chefes de família podem receber 1.200 reais de uma vez.
“Em algumas regiões poderá haver um consumo crescente além do esperado, como reflexo do benefício”, diz Mauricio de Almeida Prado, diretor executivo da Plano CDE. Em abril, o país contabilizou 36,8 milhões de informais e 12,9 milhões de desempregados. São essas as pessoas que mais vão sentir dificuldade na recuperação gradual do comércio. “O que pesa é a impossibilidade de estender sua banca em uma rua com alta circulação de pessoas”, diz Prado.
Outro agravante para o consumo no Brasil é a suspensão ou redução dos contratos de trabalho e dos salários por até três meses, medida implementada emergencialmente na crise. Até o dia 1o de maio, 4,8 milhões de trabalhadores brasileiros haviam sido impactados pela medida. A meta do governo é que, com o programa, cerca de 24,5 milhões de postos de trabalho formais no país não sejam fechados. Isso significa que muitas pessoas ainda estarão com a renda drasticamente afetada e sem confiança para comprar bens de maior valor ou assumir dívidas. O Índice de Confiança do Consumidor da Fundação Getulio Vargas caiu 22 pontos em abril, para 58,2 pontos, o menor nível da série histórica iniciada em setembro de 2005.
Nesse momento, caberá também às empresas a tarefa de transmitir segurança aos clientes na retomada das atividades. Os shoppings planejam medir a temperatura dos consumidores na entrada das unidades, além de disponibilizar álcool em gel para a limpeza das mãos. Cinemas e teatros devem permanecer fechados. As redes BRMalls e Multiplan estudam reduzir o número de vagas no estacionamento. A BRMalls também vai usar uma tecnologia que mede a concentração de pessoas por meio de rede Wi-Fi.
Caso seja identificado um local com muitas pessoas, a equipe de segurança poderá agir para garantir o distanciamento. “Com isso conseguiremos oferecer um ambiente organizado, com concentração até menor do que nos supermercados”, afirma o presidente da BRMalls, Ruy Kameyama. A Multiplan planeja aplicar testes de covid-19 nos clientes em pelo menos uma unidade, em Brasília. A companhia encomendou 25.000 testes rápidos. “Temos de mostrar que o shopping é um ambiente seguro e um aliado nas campanhas de saúde pública”, diz José Isaac Peres, presidente da Multiplan.
No setor de educação, um grande desafio será manter o distanciamento social entre os alunos. As escolas da Saber, braço de educação básica da Cogna, estudam criar um sistema de rodízio, com dias de aulas presenciais e dias de aulas em casa. Assim as salas ficariam mais vazias e seguras. A companhia tem 52 unidades e 32.000 alunos no ensino básico. A retomada das atividades ocorrerá em um ritmo mais lento do que as empresas gostariam. “Diferentemente da migração para o home office, que foi rápida e intensa, a volta para as atividades presenciais é complexa e vai levar em conta muitas variáveis”, afirma Alfredo Pinto, diretor da consultoria Bain Company na América do Sul.
Mas os novos hábitos adquiridos no período de distanciamento social vão perdurar? Em meados da década de 1960, o cirurgião plástico Maxwell Maltz observou, com base em técnicas de psicologia, que seus pacientes levavam 21 dias para se acostumar com a nova imagem. A teoria foi amplamente difundida e passou a ser utilizada também no entendimento da criação de novos hábitos, incluindo os de consumo. “Não sabemos ainda se as pessoas que percebem a economia ao se alimentar e se exercitar em casa vão querer, no futuro, ter esse custo fora”, diz Alison Angus, diretora de estilo de vida na consultoria Euromonitor.
A dificuldade de previsão se deve também a diferenças no comportamento humano. Segundo uma pesquisa global da consultoria EY, 25% das pessoas querem ampliar os gastos com saúde — o que é compreensível num momento de pandemia. Mas apenas um terço dos entrevistados não espera que a crise tenha mudado sua vida em nenhuma dimensão. “As pessoas estão tendo a oportunidade de perceber o que precisam ou não consumir, mas só o tempo dirá se essa ideia será esquecida conforme voltarmos à normalidade”, diz Kristina Rogers, líder de consumo global da EY.
Quanto tempo levará para a sonhada normalidade chegar não está claro, sobretudo porque é preciso saber ainda o tamanho do tombo e a velocidade de recuperação pós-pandemia. A esperança de uma recuperação em “V”, que ilustra uma rápida queda e uma retomada igualmente acelerada, tem perdido espaço. A aposta predominante hoje é de uma volta em “U”, com um período de baixa maior seguido por uma recuperação mais lenta. O risco de uma resposta descalibrada, com otimismo excessivo e retirada abrupta de estímulos, levaria ao cenário em “W”, com mais de um ciclo de tombo e retomada, como ocorreu durante a crise do euro em 2012.
Um estudo de pesquisadores da Universidade Renmin, da China, e do Fundo Monetário Internacional analisou 151 episódios de recessão nos últimos 30 anos e concluiu que 70% deles não passam de um ano. A maioria acaba no ano seguinte. Pouquíssimas recessões se arrastaram por mais de dois anos. É o caso da Grécia, por exemplo, que perdeu um quarto de seu PIB durante uma década de contrações quase ininterruptas, intercaladas por breves soluços de recuperação. A Argentina também chegou a ter quatro anos seguidos de PIB negativo, entre 1999 e 2002, e já caminhava para seu terceiro ano de recessão mesmo antes de nova crise.
O presidente Alberto Fernández, que assumiu em dezembro, viu na crise do coronavírus uma oportunidade: a atuação rápida, dura e bem-sucedida conteve o número de infectados no país, cerca de 4.800 no início de maio. “Já era certo que haveria recessão, mas agora ele tem uma boa explicação, porque o mundo inteiro terá, e ninguém poderá dizer que é culpa dele”, diz o embaixador Rubens Ricupero.
De fato, esta é uma crise sem paralelos. Há simultaneamente um choque de oferta, por meio da quebra de cadeias de valor, e de demanda, com todos os consumidores parando de consumir juntos ao redor do mundo, o que desnorteou governos e empresas. Por ora, a expectativa é que haja uma recessão global de quase 4% no mundo, número em grande parte aliviado pelo crescimento da China, estimado em 1,2% (na perspectiva dos chineses, é o mesmo que estar em recessão). A Organização Internacional do Trabalho calcula uma destruição de horas trabalhadas equivalente a 315 milhões de empregos. A diferença entre o cenário otimista e o pessimista para o comércio internacional, por exemplo, é de 8 trilhões de dólares — o equivalente a tudo que se injetou até agora em estímulos fiscais pelos governos na pandemia.
É quase 10% do PIB global. No Japão, o pacote ultrapassa um quinto da economia. A ajuda, por enquanto, tem sido voltada para dar liquidez às empresas para que consigam fazer a travessia sem quebrar e mantenham a renda de quem não pode trabalhar. No Brasil, o gasto previsto da União é de 253 bilhões de reais em novas medidas fiscais, cerca de 4,8% do PIB, dos quais aproximadamente 60 bilhões já estão empenhados. Enquanto o governo vê como pior cenário para o Brasil uma recessão de 5%, o banco suíço UBS prevê que, numa crise prolongada, a economia brasileira poderá encolher 10%.
As dúvidas no Brasil são agravadas pelo cenário político, com o presidente Jair Bolsonaro dedicado durante a pandemia a aprofundar as tensões com o Legislativo e o Judiciário. Reformas impopulares já eram complicadas com as eleições municipais, e a austeridade costuma ser a primeira vítima de governos que precisam aglutinar apoio no Congresso.
“Não tínhamos, e agora temos menos ainda, margem de manobra para aumentar o gasto público. Transformar o emergencial no permanente seria um desastre”, diz Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial. Ainda está fresca na memória a experiência do pós-2008 no Brasil, quando estímulos e isenções tributárias transitórias se perenizaram e desembocaram na crise fiscal. Sim, a crise atual é diferente de todas as outras. Recomeçar será um enorme desafio para a saúde, a economia e a sociedade — mas, sobretudo, para cada um de nós. Como será seu primeiro passo?
Nos últimos dias, as imagens de crianças chinesas retornando às aulas em Pequim e Xangai, as duas maiores cidades da China, correram o mundo. A reabertura das escolas, após três meses de uma rígida quarentena, era o sinal que faltava para decretar oficialmente o fim do surto no país — ainda que a vigilância continue firme para evitar uma segunda onda de transmissões no país. No início de maio, após oito semanas seguidas em que pandemia atingiu seu pico, quase tudo voltou a operar na China: fábricas, shoppings, restaurantes, espaços públicos.
É esperado para o final do mês o encontro anual do Congresso Nacional do Povo, no qual 3.000 parlamentares vão se reunir pessoalmente. O retorno à quase normalidade da China contrasta com a realidade de boa parte do mundo ocidental, onde os países ainda lutam para reduzir as curvas de contaminação por covid-19. Mas, se em termos epidemiológicos impera a cautela em decretar o fim da pandemia, os governos não se furtaram em acelerar os planos de reabertura da economia, numa tentativa de conter o tamanho do desastre econômico que virá.
Itália e Espanha, os países europeus mais afetados, com mais de 200.000 contaminados cada um, já liberaram o retorno de parte das atividades produtivas, mesmo com regras duras de convívio social. A França, com 168.000 infectados, planeja a reabertura de lojas, restaurantes e praias no dia 11 de maio. A Nova Zelândia, país que emergiu como modelo de combate ao coronavírus, só anunciou medidas para aliviar a quarentena depois de 95% dos contaminados terem se curado. No Brasil, que ainda carece de uma estratégia nacional de combate ao coronavírus e mais de 100.000 pessoas foram contaminadas, estados e municípios traçam as coordenadas de reabertura mediante a pressão da população.
Em Santa Catarina, a retomada do comércio teve início em 13 de abril, quando o estado tinha registrado cerca de 770 casos e 24 mortes. Na fase 1 permitiram-se a abertura de lojas de rua e os serviços autônomos. Na segunda fase, iniciada em 22 de abril, foram abertos shoppings, academias e restaurantes. Em Blumenau, o shopping Neumarkt preparou uma recepção para os clientes, que se aglomeraram na entrada do centro comercial enquanto eram recebidos por vendedores, ao som de um saxofonista. Na cidade havia 71 casos quando o comércio reabriu. Passadas duas semanas, na terça-feira 28 de abril foram registrados 194 casos, uma alta de 173%.
O governador do estado de São Paulo, João Doria (PSDB), que previa um plano de relaxamento das medidas de isolamento em 11 de maio, ameaça postergar a retomada diante dos baixos índices de isolamento social, sobretudo na capital paulista. Campinas, no interior de São Paulo, também quer a reabertura do comércio quanto antes. O prefeito Jonas Donizette (PSB) havia proposto um plano de retomada do comércio local em 4 de maio. A data não foi aprovada pelo governo do estado — e uma nova data não foi divulgada até o fechamento desta edição da EXAME.
O projeto de Campinas permite na primeira fase a reabertura de, por exemplo, salões de beleza, academias e instituições religiosas com obrigatoriedade do uso de máscara, regras de distanciamento e lotação regulada. “Planejamos a reabertura levando em consideração a taxa de transmissibilidade, a ocupação dos leitos e a capacidade de testagem. Após 14 dias de execução, vamos avaliar os resultados e entender se podemos seguir para a próxima fase”, afirma o prefeito. No dia 30 de abril, Campinas contabilizava 347 casos e 20 mortes.
Mas, afinal, como deve ser o processo de reabertura da economia em meio ao avanço de uma doença ainda mal compreendida pela ciência e que já contaminou mais de 3,5 milhões de pessoas no mundo? Para além das muitas dúvidas, há algumas certezas: uma vacina, a solução definitiva para a covid-19, é esperada para daqui a um ano. É consenso também que o pior cenário é o que engloba uma reabertura precoce da economia seguida de uma nova aceleração da curva de contágio, resultando em aumento de internações e mortes e, consequentemente, levando a um novo fechamento das atividades — e a uma descrença nos governantes. “A reabertura da economia depende de três fatores: capacidade do sistema de saúde, testes em massa e redução da taxa de transmissibilidade dos infectados. Sem isso, reabrir significa provavelmente ter de fechar novamente”, diz o economista José Alexandre Scheinkman, da Universidade Colúmbia, nos Estados Unidos.
Por isso, a esperança tem sido depositada na estratégia chamada de TTSI: na sigla em inglês, “testagem, rastreamento e isolamento social”. No geral, funciona assim: contida a curva mais acentuada de contágio, as pessoas com sintomas da doença são testadas de forma rápida. Os indivíduos com os quais o doente teve contato são mapeados, por meio de entrevista e uso de aplicativos, e colocados em quarentena preventiva.
Se o teste dá negativo, são liberados; se dá positivo, completam os 14 dias de isolamento. Dessa forma, novos surtos da doença são contidos no nascedouro. A Fundação Rockefeller, nos Estados Unidos, criou um plano para elevar radicalmente o nível de diagnóstico na população americana, que está hoje em 0,3%, patamar estacionado desde fevereiro. Com 330 milhões de habitantes e 1,2 milhão de infectados, o país pretende elevar imediatamente a capacidade semanal para 1 milhão de testes e, nas oito semanas seguintes, expandi-la para 3 milhões de exames, o que equivale a quase 1% da população.
Junto com isso, é desenhado um plano de contratação de profissionais de saúde para implementar o diagnóstico e o monitoramento posterior dos infectados, apoiado por uma plataforma digital unificada de informações. Sim, custa caro um plano desses. Seriam 100 bilhões de dólares ao longo de um ano, mas o custo mensal da quarentena na economia americana é de 400 bilhões de dólares.
A Universidade Harvard reuniu um time de 23 especialistas, entre infectologistas e economistas, que lançou um documento de como seria uma nova economia resiliente a pandemias. O plano foi pensado para os Estados Unidos, mas suas diretrizes podem ser aplicadas em outros países ricos e exigiriam ajustes de escala para a realidade de países de renda média, como o Brasil. Também é baseado num plano agressivo de testagem que permite a liberação das atividades econômicas e o retorno dos trabalhadores em quatro fases.
Se num extremo 40% dos trabalhadores não param durante uma pandemia, pois estão alocados em setores considerados essenciais, como o de saúde, alimentação e logística; no outro estão 20% dos profissionais que conseguem desempenhar suas funções remotamente e devem ser os últimos a retomar a rotina presencial. No meio disso, segmentos da economia e trabalhadores são autorizados a voltar às suas atividades à medida que o surto é contido. “Nenhum lugar controlou a doença depois de ter chegado ao nível de penetração que chegou nos Estados Unidos, na Europa e no Brasil. Mas todo país que controlou a doença o fez usando estratégias de TTSI”, diz Glen Weyl, pesquisador da Microsoft e um dos coordenadores do plano.
O caso mais emblemático de sucesso, entre os países inicialmente mais afetados, é a Coreia do Sul, onde, devido ao trauma de pandemias passadas, como a sars em 2003, já havia um aparato pronto para ser mobilizado. Lá, foram 11.000 testes por milhão de habitantes. A Alemanha, que conseguiu rastrear a evolução da epidemia a partir dos 16 primeiros contaminados no país, chegou a aplicar quase 25.000 testes por milhão de habitantes. Já o Brasil navega às cegas, como o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, já declarou.
O país testa muito pouco: são 1.500 exames do tipo PCR por milhão de habitantes, teste de biologia molecular que detecta a presença do vírus (os testes rápidos têm baixa confiabilidade e servem para identificar quem desenvolveu imunidade ao vírus). Tão emergentes quanto o Brasil, Turquia e Rússia testam por PCR, respectivamente, sete e 13 vezes mais. O problema por aqui é agravado pela taxa de transmissão local, de 2,81, segundo cálculos da universidade Imperial College, do Reino Unido. Isso significa que cada brasileiro passa a doença para outros três, o ritmo mais alto do mundo. Para uma queda efetiva de casos, a taxa de transmissão precisa estar abaixo de 1.
O governo do estado de São Paulo anunciou que pretende chegar a 27.000 testes por milhão, patamar semelhante ao de países como Itália e Espanha. A Fundação Oswaldo Cruz passará de uma produção de 60.000 exames, em março, para 2,4 milhões, em maio. O Ministério da Saúde encomendou 11 milhões de unidades, que serão entregues até setembro, mas uma logística eficiente precisa estar colocada para que testes sejam aplicados, enviados ao laboratório e tenham o resultado divulgado. “Quanto mais demora essa fase, mais gente do que o necessário está sendo isolada preventivamente”, diz Paulo Chapchap, diretor-geral do Hospital Sírio-Libanês.
Na discussão sobre a reabertura da economia, emergiu uma ideia polêmica: a emissão de “passaportes de imunidade” para quem já teve a doença. Reino Unido, Estados Unidos, Espanha e outros países discutem como implementar a medida — plano que o ministro da Economia, Paulo Guedes, também já cogitou aplicar no Brasil. A estratégia precisa de comprovação, porque ainda não há confirmação científica de que só se contrai a covid-19 uma vez, como ocorre com outras gripes. A ideia também esbarra em problemas éticos, podendo criar um incentivo para as pessoas se contaminarem deliberadamente para ir trabalhar.
A reabertura da economia, porém, não garante a retomada do consumo. A escolha de onde e como gastar é influenciada diretamente pela confiança no futuro. Durante a quarentena, 78% das pessoas saem de casa apenas para comprar itens necessários, como alimentos e remédios, segundo um levantamento da empresa de pesquisas Kantar. Fatores como medo da recessão e falta de dinheiro, obviamente, influenciam nas decisões. Em abril, o índice de endividamento atingiu cerca de 66% das famílias brasileiras, o maior desde 2010.
“Mais do que fazer previsões, este é o momento de entender as incertezas da população. Não podemos esperar que o comércio no Brasil automaticamente volte aos padrões de antes”, diz Marcos Calliari, presidente da empresa de pesquisa Ipsos. O auxílio emergencial do governo distribuiu 31,3 bilhões de reais para 44,3 milhões de brasileiros na primeira etapa. Mulheres chefes de família podem receber 1.200 reais de uma vez.
“Em algumas regiões poderá haver um consumo crescente além do esperado, como reflexo do benefício”, diz Mauricio de Almeida Prado, diretor executivo da Plano CDE. Em abril, o país contabilizou 36,8 milhões de informais e 12,9 milhões de desempregados. São essas as pessoas que mais vão sentir dificuldade na recuperação gradual do comércio. “O que pesa é a impossibilidade de estender sua banca em uma rua com alta circulação de pessoas”, diz Prado.
Outro agravante para o consumo no Brasil é a suspensão ou redução dos contratos de trabalho e dos salários por até três meses, medida implementada emergencialmente na crise. Até o dia 1o de maio, 4,8 milhões de trabalhadores brasileiros haviam sido impactados pela medida. A meta do governo é que, com o programa, cerca de 24,5 milhões de postos de trabalho formais no país não sejam fechados. Isso significa que muitas pessoas ainda estarão com a renda drasticamente afetada e sem confiança para comprar bens de maior valor ou assumir dívidas. O Índice de Confiança do Consumidor da Fundação Getulio Vargas caiu 22 pontos em abril, para 58,2 pontos, o menor nível da série histórica iniciada em setembro de 2005.
Nesse momento, caberá também às empresas a tarefa de transmitir segurança aos clientes na retomada das atividades. Os shoppings planejam medir a temperatura dos consumidores na entrada das unidades, além de disponibilizar álcool em gel para a limpeza das mãos. Cinemas e teatros devem permanecer fechados. As redes BRMalls e Multiplan estudam reduzir o número de vagas no estacionamento. A BRMalls também vai usar uma tecnologia que mede a concentração de pessoas por meio de rede Wi-Fi.
Caso seja identificado um local com muitas pessoas, a equipe de segurança poderá agir para garantir o distanciamento. “Com isso conseguiremos oferecer um ambiente organizado, com concentração até menor do que nos supermercados”, afirma o presidente da BRMalls, Ruy Kameyama. A Multiplan planeja aplicar testes de covid-19 nos clientes em pelo menos uma unidade, em Brasília. A companhia encomendou 25.000 testes rápidos. “Temos de mostrar que o shopping é um ambiente seguro e um aliado nas campanhas de saúde pública”, diz José Isaac Peres, presidente da Multiplan.
No setor de educação, um grande desafio será manter o distanciamento social entre os alunos. As escolas da Saber, braço de educação básica da Cogna, estudam criar um sistema de rodízio, com dias de aulas presenciais e dias de aulas em casa. Assim as salas ficariam mais vazias e seguras. A companhia tem 52 unidades e 32.000 alunos no ensino básico. A retomada das atividades ocorrerá em um ritmo mais lento do que as empresas gostariam. “Diferentemente da migração para o home office, que foi rápida e intensa, a volta para as atividades presenciais é complexa e vai levar em conta muitas variáveis”, afirma Alfredo Pinto, diretor da consultoria Bain Company na América do Sul.
Mas os novos hábitos adquiridos no período de distanciamento social vão perdurar? Em meados da década de 1960, o cirurgião plástico Maxwell Maltz observou, com base em técnicas de psicologia, que seus pacientes levavam 21 dias para se acostumar com a nova imagem. A teoria foi amplamente difundida e passou a ser utilizada também no entendimento da criação de novos hábitos, incluindo os de consumo. “Não sabemos ainda se as pessoas que percebem a economia ao se alimentar e se exercitar em casa vão querer, no futuro, ter esse custo fora”, diz Alison Angus, diretora de estilo de vida na consultoria Euromonitor.
A dificuldade de previsão se deve também a diferenças no comportamento humano. Segundo uma pesquisa global da consultoria EY, 25% das pessoas querem ampliar os gastos com saúde — o que é compreensível num momento de pandemia. Mas apenas um terço dos entrevistados não espera que a crise tenha mudado sua vida em nenhuma dimensão. “As pessoas estão tendo a oportunidade de perceber o que precisam ou não consumir, mas só o tempo dirá se essa ideia será esquecida conforme voltarmos à normalidade”, diz Kristina Rogers, líder de consumo global da EY.
Quanto tempo levará para a sonhada normalidade chegar não está claro, sobretudo porque é preciso saber ainda o tamanho do tombo e a velocidade de recuperação pós-pandemia. A esperança de uma recuperação em “V”, que ilustra uma rápida queda e uma retomada igualmente acelerada, tem perdido espaço. A aposta predominante hoje é de uma volta em “U”, com um período de baixa maior seguido por uma recuperação mais lenta. O risco de uma resposta descalibrada, com otimismo excessivo e retirada abrupta de estímulos, levaria ao cenário em “W”, com mais de um ciclo de tombo e retomada, como ocorreu durante a crise do euro em 2012.
Um estudo de pesquisadores da Universidade Renmin, da China, e do Fundo Monetário Internacional analisou 151 episódios de recessão nos últimos 30 anos e concluiu que 70% deles não passam de um ano. A maioria acaba no ano seguinte. Pouquíssimas recessões se arrastaram por mais de dois anos. É o caso da Grécia, por exemplo, que perdeu um quarto de seu PIB durante uma década de contrações quase ininterruptas, intercaladas por breves soluços de recuperação. A Argentina também chegou a ter quatro anos seguidos de PIB negativo, entre 1999 e 2002, e já caminhava para seu terceiro ano de recessão mesmo antes de nova crise.
O presidente Alberto Fernández, que assumiu em dezembro, viu na crise do coronavírus uma oportunidade: a atuação rápida, dura e bem-sucedida conteve o número de infectados no país, cerca de 4.800 no início de maio. “Já era certo que haveria recessão, mas agora ele tem uma boa explicação, porque o mundo inteiro terá, e ninguém poderá dizer que é culpa dele”, diz o embaixador Rubens Ricupero.
De fato, esta é uma crise sem paralelos. Há simultaneamente um choque de oferta, por meio da quebra de cadeias de valor, e de demanda, com todos os consumidores parando de consumir juntos ao redor do mundo, o que desnorteou governos e empresas. Por ora, a expectativa é que haja uma recessão global de quase 4% no mundo, número em grande parte aliviado pelo crescimento da China, estimado em 1,2% (na perspectiva dos chineses, é o mesmo que estar em recessão). A Organização Internacional do Trabalho calcula uma destruição de horas trabalhadas equivalente a 315 milhões de empregos. A diferença entre o cenário otimista e o pessimista para o comércio internacional, por exemplo, é de 8 trilhões de dólares — o equivalente a tudo que se injetou até agora em estímulos fiscais pelos governos na pandemia.
É quase 10% do PIB global. No Japão, o pacote ultrapassa um quinto da economia. A ajuda, por enquanto, tem sido voltada para dar liquidez às empresas para que consigam fazer a travessia sem quebrar e mantenham a renda de quem não pode trabalhar. No Brasil, o gasto previsto da União é de 253 bilhões de reais em novas medidas fiscais, cerca de 4,8% do PIB, dos quais aproximadamente 60 bilhões já estão empenhados. Enquanto o governo vê como pior cenário para o Brasil uma recessão de 5%, o banco suíço UBS prevê que, numa crise prolongada, a economia brasileira poderá encolher 10%.
As dúvidas no Brasil são agravadas pelo cenário político, com o presidente Jair Bolsonaro dedicado durante a pandemia a aprofundar as tensões com o Legislativo e o Judiciário. Reformas impopulares já eram complicadas com as eleições municipais, e a austeridade costuma ser a primeira vítima de governos que precisam aglutinar apoio no Congresso.
“Não tínhamos, e agora temos menos ainda, margem de manobra para aumentar o gasto público. Transformar o emergencial no permanente seria um desastre”, diz Otaviano Canuto, ex-vice-presidente do Banco Mundial. Ainda está fresca na memória a experiência do pós-2008 no Brasil, quando estímulos e isenções tributárias transitórias se perenizaram e desembocaram na crise fiscal. Sim, a crise atual é diferente de todas as outras. Recomeçar será um enorme desafio para a saúde, a economia e a sociedade — mas, sobretudo, para cada um de nós. Como será seu primeiro passo?
FABIANE STEFANO, JOÃO PEDRO CALEIRO, MARIANA DESIDÉRIO E MARINA FILIPPE, na Exame
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