terça-feira, 11 de dezembro de 2007

O risco que nos assombra.




As conquista humanas se dão para o bem e também para o mal.

No caso da energia nuclear, por exemplo, a medicina testemunha avanços fantásticos que melhoram a longevidade e a qualidade de vida de pacientes que, e outra circunstância, sequer teriam sobrevivido.

Mas as forças que apontam para uma extremidade, apontam também para a outra. É o caso da indústria armamentista que utiliza o potencial da criatividade humana para provocar pavor, despertar o terror, a destruição e a morte.
E neste contexto os limites inexistem, são tão consistentes e rígidos como uma barreira de neblina. Neste cenário o horizonte será sempre um infinito a desbravar, para desgraça da humanidade.

A bomba atômica inaugurou uma nova fase para os propósitos de destruição em massa: a bomba de hidrogênio, as armas nucleares táticas, os mísseis balísticos intercontinentais de ogivas múltiplas, a bomba de nêutrons, os mísseis móveis, lançados de submarinos ou de plataformas montadas em locomotivas e caminhões, o projeto Guerra nas Estrelas... Há ainda quem acredite na existência de limites para a perpetração do mal, para a cultura do maligno?

Alguns cientistas acusam a existência de algo terrífico, um armamento que se acreditava na efemeridade das intenções, em estágio de prancheta, ainda na incubadora de projetos: a bomba termo-nuclear de cobalto, tão poderosa que, detonada, seria capaz de deslocar a terra de seu eixo gravitacional.
Independentemente do uso que se faça da energia nuclear, vários problemas decorrentes continuam insolúveis. Um deles: como armazenar os rejeitos resultantes do processamento do átomo?

Casos escabrosos de irresponsabilidade em seu nível mais aviltante levaram ao setembro negro goiano, ano fatídico de 1987, quando a violação de uma cápsula de césio-137 produziu o mais grave acidente nuclear brasileiro, um dos maiores do mundo. Os rejeitos estão armazenados em Abadia de Goiás e lá permanecerão por centenas de anos.

Geralmente o lixo atômico necessita ser armazenado por, no mínimo, mil anos.

As bombas nucleares já explodidas – na 2ª Guerra Mundial e nos experimentos aéreos, aquáticos e subterrâneos – estenderam a contaminação para todo o mundo. Essa contaminação generalizada aliada às demais formas de exposição, incorporou a todo ser vivo que hoje habita o planeta um derivado dos processos industriais da fissura nuclear. Na era do desmembramento do átomo, todo organismo que ostenta vida na terra já tem incorporado, em sua estrutura óssea, traços do estrôncio-90.

Um outro problema grave é que tudo que se refira ao assunto recebe dos governos tratamento sigiloso, como segredo de estado, assunto de segurança nacional. É a justificativa técnica-política para que toda a sujeira seja escondida, varrida para debaixo do tapete, mantida a inalcançável distância da opinião pública. E sequer as democracias mais robustas e dinâmicas conservam-se imunes à perversa manipulação.

No caso de acidente nuclear os governos nada, ou quase nada, informam. Pior, apegam-se a artificialidades para deformar a informação, procurando a manipulação mais rasteira, criando valhacoutos de hipocrisia.

Liverpool - a cidade industrial que presenteou o mundo com os Beatles – foi atingida, em 1957, pela radioatividade que escapou de uma usina ali localizada. Mas só em 1983 o governo inglês reconheceu o falecimento de 39 britânicos, vitimados pelas doenças cancerígenas resultantes da radioatividade provocada pelo acidente. Estamos discorrendo sobre acidente nuclear ocorrido em uma das mais desenvolvidas democracias, mas que, nem por isto, mantém-se invulnerável às urdições da manipulação política efetuada para obliterar a opinião pública.

Quando os ingleses guerreavam para retomar as Ilhas Malvinas, o destróier britânico Sheffield foi a pique, não suportou a artilharia, o pesado fogo das baterias aéreas argentinas. Esta batalha ocorreu no mês de maio de 1982. Apesar do sepulcral silêncio do governo britânico, a Agência Internacional de Energia Atômica denunciou que o navio estava carregado com armas nucleares. Com a salinidade e as condições de temperatura e pressão do ambiente marítimo, em que condições estariam hoje essas bombas atômicas? Em que nível estaria se dando o escape da radiação e a contaminação ambiental? O oceano Atlântico que banha a costa Argentina é o mesmo que conforma boa parte dos limites do Brasil.

Existem navios e submarinos - chineses, norte-americanos e da antiga União Soviética - de propulsão nuclear e convencional, carregados com artefatos nucleares, que foram a pique e que, desde então, contaminam os oceanos de todos os continentes.

Mas, sem dúvidas, o maior acidente nuclear da histórica ocorreu em abril de 1986 em Chernobyl. A explosão de um dos quatro reatores da usina nuclear soviética imundou a atmosfera do centro-sul europeu formando um céu maculado por densas nuvens radioativas. Pouco depois do acidente, o governo ‘informou’ as conseqüências mais sentidas da tragédia: 31 mortos e 200 feridos. Não demorou e a máscara foi ao chão. Exatamente seis anos depois, o governo publicou comunicado oficial revelando a dimensão da tragédia: ao invés de 31, o número de mortes chegou a 10 mil. E no mês de abril de 1995, nova revelação: o Ministério da Saúde da Ucrânia reconheceu que mais de 125 mil pessoas morreram entre 1988 e 1994, vitimadas pela radiação. Um ano depois, um comunicado conjunto da Ucrânia e da Bielorússia ajustava a revelação: o número de mortes que iniciou com 31 passou para 300 mil, o número de pessoas contaminadas para cinco milhões e a área inutilizada pela radiação para 140 mil km², equivalente ao tamanho de Pernambuco e Paríba juntos.
Só no processo de limpeza da região atingida, o governo da então União Soviética mobilizou cerca de dois milhões de servidores e voluntários.

Mais de 20 anos depois, a Ucrânia e os países próximos lidam com as vítimas do que ocorreu em Chernobyl: as pessoas apresentam doenças no sangue, no sistema nervoso, nos aparelhos digestivo e respiratório e, sobretudo, problemas psicológicos.

As imagens da destruição de Hiroxima e Nagasaki, 62 anos depois, ainda chocam. As fotos das vítimas japonesas ainda escandalizam, apesar da violência mais brutal ter se tornado banal nos dias de hoje. Pois a Organização Mundial de Saúde calcula que a radioatividade desprendida no acidente de Chernobyl superou em 200 vezes à liberada pelas bombas que reduziram a pó as duas metrópoles japonesas.

Além do ocorrido em Goiânia, o Brasil já passou por outras situações de grave perigo. Em julho de 1997, o reator da usina nuclear de Angra 1 teve que ser desligado por um defeito técnico ocorrido em uma de suas válvulas. À época, os físicos brasileiros atribuíram a razão do acidente à falha nas varetas de combustível. E o avaliaram semelhante ao ocorrido na usina de Three Mile Island, nos Estados Unidos.

Desta vez escapamos ilesos, mas o risco, agora sabemos, assombra e paira também sobre nossas cabeças.

Não devemos tomar a energia nuclear como um bem ou mal em si. A panacéia, a redenção ou o Hades. A resposta esta condicionada ao domínio do conhecimento e a responsabilidade para com a sustentabilidade do planeta e para com o futuro da humanidade – atributos que, convenhamos, escapam de parte considerável dos governos.

Mas uma preliminar básica para a sobrevivência da vida deve ser buscada a todo custo: a sociedade planetária precisa se apropriar do saber, universalizar a educação de qualidade para manter-se permanentemente em estado de mobilização, exigindo dos governos clareza, discernimento, compromissos, competência e ampla divulgação das iniciativas no setor. É o mínimo para lidar com uma energia tão poderosa, ao mesmo tempo criativa e destruidora. A única capaz de pulverizar, na fração do segundo, um nódulo cancerígeno, para o bem; ou, no limite, erradicar a vida terrena, para o mal.

Antônio Carlos dos Santos é o criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br