terça-feira, 18 de dezembro de 2007

A arte de chicotear os números


Há os que preferem lidar com os números de uma forma artificial e enganosa, uma maneira capciosa de atribuir seriedade a certos assuntos e questões, fidedignidade a dados incorretos, crédito a informações deturpadas.

De fato, os números emprestam um grau relativo de confiabilidade mesmo às temáticas de natureza incerta e duvidosa, mesmo quando o foco, enfoque e abordagem apresentam-se claramente estapafúrdios.

Se a assunto é por demais inverossímil, então basta acrescer um tempero arábico-decimal e lá estará o dito cujo, elevado à condição de crível, inquestionável, infalível, imperativo.

Aos afeitos aos mistérios do ocultismo, existe inclusive a numerologia, o estudo dos números e seus significados, da influência que exerce no caráter e mesmo no destino dos homens.

Pitágoras, muito antes de Cristo, desenvolveu um teorema que fez escola. O Teorema - que leva o seu nome - dispõe que em um triângulo retângulo, o quadrado da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos catetos. Fundador da escola pitagórica, Pitágoras fundou em Crotona, colônia grega, uma associação científica e política, que defendia o número, as relações matemáticas, como a essência, o princípio fundamental de que são constituídas todas as coisas.

O engenheiro Leonel Brizola ilustrava este cenário - criado para elevar a estatística e as informações duvidosas aos píncaros da glória - com uma curta narrativa. O que tem de perspicácia, tem de ironia e lucidez: “(...) seus números e sua estatística são como o sujeito que morreu afogado numa lagoa cuja profundidade média não passava de um palmo”.

Com boas ou más intenções, os institutos de pesquisa já macularam a história da política brasileira com erros grosseiros, memoráveis, que não poucos acreditam propositais. Para fugir do descrédito e das conseqüências, a justificativa e os arrazoados já figuram devidamente decorados na ponta da língua: “os resultados expressam o exato instante da coleta da informação. E no justo instante do voto, o eleitor mudou de opinião”. E fica o dito por não dito.

Mas chicotear os números não é privilégio dos institutos de pesquisa de opinião. Até mesmo instituições de reconhecida importância às vezes vacilam e, ainda que sem segundas intenções, lançam mão da vergasta.

E quem poderia imaginar que a Organização das Nações Unidas, a tão expressiva ONU, a mais relevante instituição de colaboração internacional poderia estar entre elas?

A organização criada no pós-guerra para promover e fortalecer a paz entre as nações divulgou num estudo que, em 1996, havia no Brasil 500 mil adolescentes em situação de completa vulnerabilidade sexual, já em estágio de prostituição explícita.

Para chegar a estes números, como procederam os pesquisadores da ONU? Tomaram os dados relativos à capital pernambucana – onde o problema é latente – e, mecanicamente, os projetaram para todas as demais unidades da federação. Deu no que deu. Um erro crasso que obrigou a instituição a fazer um pedido público de desculpas em razão do dado correto ser 100 vezes inferior ao anteriormente divulgado, com pompa e circunstância.

No ano de 2.002, o procedimento se repetiu e a organização, novamente, submeteu a suplícios e punições os números relativos ao Brasil. Em relatório sobre o volume de drogas e entorpecentes disponibilizado no mundo, atribuiu ao país a posição de segundo maior mercado de cocaína do planeta. E mais uma vez o erro tosco e rude. Mas as desculpas só vieram dois anos depois, quando as Nações Unidas perceberam que o Brasil ocupava na realidade o décimo lugar no aludido ranking.

O mais recente vitupério da instituição ocorreu com o relatório dando conta que São Paulo concentra nada menos que 1% de todos os homicídios praticados no mundo.

Como das vezes anteriores, não demorou e a organização teve que se desculpar porque simplesmente não conseguiu, até hoje, apurar o número total de homicídios praticados no mundo. E porque utilizou como fonte da pesquisa, dados do jornal argentino La Nación, índices relativos ao, já nem tão recente, exercício de 2.002.

Neste caso, o mais intrigante é que todos têm se surpreendido com a significativa redução do índice de homicídios em São Paulo, conquista que resulta, sobretudo, da ampliação das vagas nos presídios estaduais, numa equação simples e direta: mais bandidos e homicidas na cadeia, menos assaltos, agressões e assassinatos nas ruas.

Uma velha canção de amor, ironizando a situação caótica por que passa o casal, afirma que tudo está certo, como dois e dois são cinco. Como na melodia, também na vida sempre existirão os que procuram afastar os números do que eles têm de mais belo e nobre: a precisão milimétrica, a exatidão perfeita. Por isso, toda a atenção ao encontrá-los ilustrando um belo texto. Busque outras fontes e referências, compare, relacione, questione... Não podemos nos fiar na primeira impressão, formar juízo baseado em uma única fonte. Se a diversidade dá substância à cultura, muito mais empresta à busca da verdade.

Antônio Carlos dos Santos é engenheiro e escritor, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br