Aristóteles - filósofo do século IV a.C. preconizou um teatro em que o objeto da imitação era a unidade de ação, tempo e lugar. Partindo desta leitura, a peça teatral não poderia enfocar mais de um assunto, a ação não poderia ultrapassar o tempo de vinte e quatro horas, e o lugar poderia, no máximo, chegar ao tamanho de uma cidade.
Mas o que destaca no teatro aristotélico é a catarse, a empatia, a busca de uma relação que procura captar o subconsciente do espectador.
Esta escola teatral fazia com que a platéia vestisse a indumentária das personagens, envolvendo-se na trama dramática de forma inteiramente emotiva e sentimental.
Este contexto, arisco a qualquer possibilidade de reflexão crítica, incomodava os encenadores modernos que procuravam um teatro instigante, provocante, questionador e que possibilitasse uma ação lógica por parte do espectador.
Era necessário encontrar um mecanismo que libertasse a manifestação teatral da prisão catarquica criada por Aristóteles na antiguidade grega.
Independentemente dos caminhos trilhados, todos os encenadores modernos foram encontrar este mecanismo no teatro tradicional milenarmente exercitado no continente asiático.
Antonin Artaud, por exemplo, adepto do teatro metafísico que estimula uma cerimônia mágica e mística era um entusiasta da dança no Teatro de Bali, da precisão quase científica de seus gestos, passos e movimentos. Todas as formas de expressão teatral originadas no Oriente e no Extremo oriente foram cultuadas pelo enigmático encenador francês.
De igual modo, os encenadores que se enveredaram pela escola dialética também se socorreram na cultura oriental para escapar dos nós atados pelo teatro aristotélico.
Reinhardt, Meyerhold, Erwin Piscator e Bert Brecht chegaram a teorizar sobre o ‘efeito do distanciamento’, mecanismo para distanciar o público dos acontecimentos representados no palco.
A questão de fundo é que o mundo mudava celeremente, mas os fundamentos do teatro continuavam ancorados, fundamentalmente, nos modelos criados há séculos antes de Cristo.
A Renascença já abrira caminho para uma nova sociedade. Originou, por exemplo, o movimento filosófico ‘Ilustração’ que formulou novas idéias da vida social, percebendo a coletividade como um organismo. Depois o ‘Positivismo’ que emergiu pára coroar a grande expansão da Europa do século XIX. Neste instante as ciências sociais começam a se consolidar.
Émile Durkheim – apoiando-se na primeira corrente teórica sistematizada do pensamento sociológico, erigida sob a direção de Auguste Comte – estabeleceu com precisão o objeto, o método e as aplicações da nova ciência, a sociologia.
Tanto para os positivistas como para Durkheim, o pesquisador deve assegurar a objetividade de sua análise. E para conseguir alcançá-la deve manter distância, embeber-se de neutralidade em relação aos fatos.
Durkheim denominava ‘prenoções’ os valores e sentimentos pessoais que – necessariamente – o pesquisador deveria ignorar, para que os fatos e acontecimentos estudados fossem analisados à luz do conhecimento científico, sem que a realidade objetiva fosse distorcida, sem que traços de subjetividade afetassem o trabalho.
Esta é uma das fontes onde foram beber os grandes encenadores modernos para sistematizarem, no teatro, o ‘efeito do distanciamento’.
Bertolt Brecht foi buscar no teatro chinês as técnicas utilizadas pelos artistas asiáticos.
O criador do Teatro Épico teoriza:
“(...) o artista chinês não representa como se além das três paredes que o rodeiam existisse, ainda, uma quarta. Manifesta saber que estão assistindo ao que faz. Tal circunstância afasta, desde logo, a possibilidade de vir a produzi-se um determinado gênero de ilusão característico dos palcos europeus. O público já não pode ter, assim, a ilusão de ser o espectador impressentido de um acontecimento em curso. E, desta feita, torna-se perfeitamente supérflua toda uma técnica prolixamente desenvolvida nos palcos europeus; permite a referida técnica ocultar que as cenas estão montadas de forma que possam ser reconhecidas pelo público sem o mínimo esforço. Tal qual os acrobatas, os atores escolhem, bem à vista de todos, as posições que melhor os expõem ao público”.
Bert utiliza o quadro “A fuga de Carlos, o Temerário, depois da batalha de Murten” para explicar sua técnica antiaristotélica:
“(...) o ‘ato de distanciamento’ conseguido nesta pintura – e que o original não possui – de modo algum se deve atribuir a deficiência na reprodução. O militar em fuga, o cavalo, a escolta e a paisagem foram, conscientemente, pintados de modo que produzissem a impressão de um acontecimento extraordinário, de uma catástrofe surpreendente. O pintor, não obstante todas as deficiências que encontramos na sua obra, conseguiu tirar um efeito excelente do imprevisto. É o assombro que lhe comanda o pincel”.
Durkheim afirmava que “o sentimento é objeto da ciência, não é critério de verdade científica”. Já Brecht: “A atuação dos artistas chineses parece ao artista ocidental freqüentemente fria. Não que o teatro chinês renuncie à representação de sentimentos! O artista representa acontecimentos que contêm uma forte tensão emocional; todavia, o seu desempenho jamais denota qualquer calor”.
Os elementos que possibilitaram a sistematização das ciências sociais, sobretudo os estudos de Comte e Durkheim, e as técnicas orientais de representação é que alavancaram a nova relação do teatro com sua platéia.
É Bertolt Brecht quem conclui:
“Um teatro que seja novo necessita, entre outros, do efeito de distanciamento, para exercer crítica social e para apresentar um relato histórico das reformas efetuadas”.
Antônio Carlos dos Santos é dramaturgo, criador da metodologia de planejamento estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo. acs@ueg.br