terça-feira, 30 de outubro de 2007

Sobre Oswaldo Cruz, dengue, Cuba e otras cositas más...

A Saúde Pública no Brasil sempre esteve enferma, prostrada numa maca esquecida nos caóticos corredores dos hospitais públicos que envergonham os de boa índole.

E justiça seja feita: a responsabilidade maior por esta tragédia nacional nem sempre esteve sobre os ombros do governo.

Não custa relembrar o episódio protagonizado por Oswaldo Cruz e que se inscreveu na história como a Revolta da Vacina.

Oswaldo Cruz ingressou na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1887, aos quinze anos de idade, especializando-se em Bacteriologia no Instituto Pasteur de Paris.

Quando nomeado Ministro da Saúde - na época o cargo denominava-se Diretor Geral de Saúde Pública – percebeu que a cultura médica e a própria população incorria num erro crasso: acreditar que a febre amarela resultava da transmissão pelo contato com roupas, suor, sangue e secreções de doentes. Logo o tino investigativo de Oswaldo Cruz percebeu o ‘x’ da questão. Seus estudos o conduziram ao verdadeiro vilão: o transmissor da febre amarela era um mosquito.

Convencido da consistência de suas teorias, contra tudo e contra todos, determinou a paralisação dos procedimentos convencionais, substituindo-os por medidas sanitárias focadas na criação de brigadas para eliminar os focos do inseto nas residências, ruas e lotes baldios. O stablisment não gostou e orquestrou violenta reação popular.

Mas foi em 1904 que a oposição a Oswaldo Cruz se mostrou mais feroz e irracional. Surtos de varíola varriam o Rio de Janeiro, calamidade que levou o sanitarista a promover uma campanha de vacinação em massa da população. A imprensa e o Congresso se levantaram contra, a oposição estruturou a Liga contra a vacinação obrigatória e no dia 13 de novembro estourou a rebelião popular - a Revolta da Vacina. No dia seguinte foi a vez da Escola Militar da Praia Vermelha se sublevar.

Não restou alternativa para o governo que não fosse suspender a obrigatoriedade da vacinação. Mas derrotou a rebelião.

De tanto insistir e perseverar, Oswaldo Cruz acabou conquistando a vitória, completa e maiúscula. Em 1907 o Rio estava livre da febre amarela.

No ano seguinte, epidemia de varíola. Mas o trabalho de Oswaldo Cruz já era reconhecido internacionalmente e, dessa vez, a própria população acorreu aos postos de vacinação. Este é um caso – não são muitos, é verdade! – em que o governo mostra como, onde, quando e com que intensidade intervir. Uma das raras oportunidades em que o fez com competência, presteza e eficácia.

Passados 100 anos de mais equívocos que acertos, o país volta a sentir saudades do grande sanitarista e se vê às voltas com o mosquito da dengue. O Brasil está de joelhos, dobrado pelo mosquito insidioso, humilhado pela incompetência das autoridades. É o maior surto de dengue da história, o que José Gomes Temporão considera “injustificável” e “inadmissível”. Só entre janeiro e setembro, o total de casos registrados aumentou 50% em relação ao mesmo período do ano passado.

E tem o triller da CPMF – quem seria capaz de esquecer? - bicho esquisito, mistura de lobisomem com mulher da meia noite, uma novela mexicana produzida nos estúdios do Palácio do Planalto: piada agourenta que transita entre a picaretagem e o patético. A tal coisa foi criada para ser provisória e sustentar alguns projetos da área da saúde. Qual?! Nem uma coisa e nem outra.

Sabemos da qualidade das escolas de medicina do país. Já escrevi sobre o assunto um artigo que denominei “Faculdades de medicina: péssimo para o Brasil, menos mal para Goiás”. Por oportuno, cuidei de reproduzi-lo logo abaixo:

A Associação Médica Brasileira divulgou, poucos dias atrás, levantamento mostrando que – em todo o planeta - o número de faculdades de medicina no Brasil só é menor que na Índia.

Esta seria uma informação animadora, um dado alvissareiro, um indicador para invejoso algum lançar praga ou botar defeito, uma realização, enfim, para comemorar com discursos e festanças regados a champanhe e entremeados com salvas de palmas e fogos de artifício... mas somente para um eventual marciano tresloucado, desses que – dizem – costumam pousar nos arredores de São Jorge.

Vejam só: no quesito quantidade, Pindorama encontra-se bem a frente de países como EUA, China e Rússia. Os norte-americanos contam com 125 faculdades de medicina, a China mantém 150, ao passo que a Rússia, 58. Para atender 180 milhões de habitantes o Brasil estruturou 167 cursos de medicina; enquanto a Índia, com mais de 1 bilhão de habitantes mantém 222.

A questão é que – todos sabem – se a quantidade importa, a qualidade importa tanto quanto. Mas o governo privilegiou a primeira em detrimento da segunda. E deu no que deu: a insipiente estrutura de ensino da esmagadora maioria das faculdades de medicina do país. E que contribui de maneira substantiva para o caos na saúde pública.

A pesquisa da AMB registra que nos anos 70 o número de faculdades de medicina funcionando no Brasil não passava de 62. De 1971 a 1976 e depois de 1979 a 1987, o MEC não autorizou a abertura de novos cursos de medicina. Mas, a partir de 1990, o governo adotou nova política, e o descontrole ficou patente, a ponto de chegarmos aos números atuais. Nenhum problema caso as faculdades em operação estivessem funcionando de modo satisfatório. Mas quem desconhece que boa parte delas não tem condições de ministrar sequer cursos de ensino médio, como o de técnico de enfermagem. É José Gomes Amaral, presidente da Associação Médica Brasileira, quem afirma: “(...) a maior parte delas (das faculdades de medicina) não tem condições de funcionar”.

Salvo raríssimas exceções, faltam às faculdades hospitais-escolas, corpo docente qualificado, bibliotecas básicas, ou seja, o mínimo minimórum.

Mas se o diagnóstico está assim tão evidente, então por que razão o mal prevalece. Não é difícil entender. Com as mensalidades girando ao redor de R$ 4.000,00, esta fração da educação virou um mercado altamente lucrativo.

Os 167 cursos de medicina existentes no país disponibilizam 17.836 vagas todos os anos, sendo que mais da metade (exatos 58%) no sistema privado de ensino. Onde trabalharão ninguém sabe, onde se especializarão ninguém sabe, mas que infernizarão a vida de uma infinidade de brasileiros, isso também, todos sabemos.

O MEC teve que sair da letargia e se movimentar: em fevereiro deste ano editou a Portaria 147 tentando disciplinar a questão. A partir de agora o Conselho Nacional de Saúde também terá voz quando da abertura de novos cursos. E novas diretrizes deverão ser observadas: a necessidade social da abertura do curso será avaliada de forma regionalizada e a existência de hospital-escola próprio ou conveniado já se tornou pré-condição para a autorização de abertura.

Mas o MEC deve também cuidar para que todo este esforço não atenda exclusivamente aos interesses corporativos e de reserva de mercado.

Dos mais de 13 mil cursos avaliados pelo MEC através do Enade, tão somente três cursos de medicina obtiveram nota máxima na avaliação e no indicador que mensura o conhecimento agregado pelo aluno no decorrer do curso (IDD). Uma delas, a Universidade Federal de Goiás. Péssimo para o Brasil, menos mal para Goiás


Se a qualidade dos cursos de medicina já está mais que comprometida, o que dizer então dos 18% dos municípios brasileiros – mais de mil, principalmente na região Norte – que não contam com um médico sequer para o atendimento mais elementar.

Para resolver este quadro de insolvência, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, parece colocar todas as fichas nos brasileiros que se formaram ou estão concluindo medicina em Cuba. E para isto está dando prioridade aos processos internos de validação dos diplomas.

É evidente que este tratamento especial para com a ilha de Fidel está vinculado às questões ideológicas que, desde 2.003 tem pautado o governo federal. Que outra hipótese justificaria o privilégio a Cuba, tão somente a Cuba e não a outros países? Não temos brasileiros cursando medicina em inúmeras outras nações, muitas delas mais desenvolvidas que a pequena república insular americana?

A ideologia não pode perpassar o ensino e nem as relações de governo, caso contrário retrocederemos à idade da pedra.

Mais. Ainda que enviesado pelo corporativismo que domina, assola e vilipendia a carreira profissional no Brasil, o Conselho Federal de Medicina exerce algum tipo de fiscalização positiva sobre a qualidade dos cursos. É do CFM que origina parte da pressão para que o sistema público de saúde restabeleça as pazes com os anseios e as necessidades da população. E só os obliterados pela inocência ou os mal intencionados acreditam que Cuba permitirá que o Conselho Federal de Medicina ou as próprias instâncias do MEC fiscalizem os seus cursos de formação dos profissionais da saúde.

O ministro Temporão deveria recordar o tempo de estudante quando – imagino – gozou o prazer de esquadrinhar a vida e a obra de Oswaldo Cruz. Ganharia muito, e muito mais sua gestão frente á pasta, e mais ainda os brasileiros que, não obstante a garantia constitucional, jamais receberam serviço de saúde pública que possa ser categorizado como decente, quanto mais eficaz.

Antônio Carlos dos Santos é professor, criador da metodologia Quasar K+ de Plenejamento Estratégico e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo.