Muitos apelidos e paradigmas pegam em função das oportunidades, dos interesses e até do humor do freguês. Às vezes escudam-se em justificativas inconsistentes, meias-verdades, arrazoados apenas envernizados de lógica. Não são poucas as vezes em que caem no domínio público em decorrência da mesquinharia que acomete meio mundo, mas não devemos perder de vista o impacto do preconceito sobre nosso comportamento.
Quantas vezes na vida já refugamos um bom livro, um filme interessante, uma idéia instigante por puro preconceito? Quem jamais se abrigou nas entranhas do jargão “não li, não vi, não conheço, e não gostei”?
Já faz um bom tempo que não encontro questão que galvanize tanta resistência e má vontade quanto o sistema de ciclos.
Este modelo surgiu como alternativa para substituir as antigas séries que avaliam os alunos ao término de cada ano letivo. No novo modelo as avaliações são realizadas ao longo do ciclo. Em decorrência da nova sistemática de avaliação, não existe mais a possibilidade do aluno ser reprovado ao final de cada ano, ao final de cada série. Quando não consegue responder ao demandado pelos professores, o aluno é reprovado ao final de cada ciclo. O ensino fundamental, por exemplo, está estruturado em dois ciclos, um da primeira à quarta série e o outro da quinta à oitava.
Como marco regulatório, o sistema de ciclos está amparado pela Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, que assegurou autonomia para estados, municípios e unidades escolares decidirem se incorporam ou não a nova estratégia.
Cá entre nós, o sistema é o que existe de mais produtivo. Despreza a possibilidade das provas e testes estanques, determinados num único instante, e abraça a visão larga do processo continuado, onde as avaliações não constituem um fim em si, mas uma sistemática diuturna, que incorpora múltiplos formatos, variados componentes, ensejando a interação do ensino formal com apreendido no universo familiar e social do estudante.
Na realidade, o que está ocorrendo é um confronto entre duas concepções, uma ensandecida peleja entre dois modelos bastante distintos. De um lado, um sistema que aposta na fragmentação, na ruptura, na tensão que muitas vezes exclui. Na extremidade oposta, uma metodologia ancorada na continuidade, na inclusão e na permanência do aluno na escola. De um lado o porto seguro do professor-inquisitor, aquele que tudo pode e tudo sabe, e do outro, o ancoradouro do professor-orientador, o que domina os conteúdos pedagógicos, mas se abre com generosidade para o conhecimento egresso dos colegas, dos alunos, da comunidade na qual a escola se insere.
Na reprovação anual por série, a escola atua no sentido de excluir, expulsar, encaminhar o aluno para as ruas onde estará sujeito à marginalidade e à violência explicitas. Ocorre que o lugar da criança e da juventude é na escola. No sistema de ciclos, sistemáticas avaliações realizadas no dia a dia possibilitam que os problemas de aprendizagem sejam identificados com maior eficácia, ao longo do processo. No sistema seriado, a reprovação é um fardo carregado quase que exclusivamente pelo estudante. O novo sistema privilegia o colegiado, as responsabilidades compartilhadas, o envolvimento de toda a equipe pedagógica. No frigir dos ovos, atua como uma garantia adicional de permanência na escola para que se ampliem as possibilidades de aprendizagem.
Desde os primeiros instantes, o modelo de progressão continuada tem sido submetido a um bombardeio sem tréguas, a críticas – duras e ressentidas - embasadas numa visão distorcida e enviesada dos que o entendem como mecanismo de aprovação automática de alunos que mereceriam ser reprovados.
Os críticos do novo modelo procuram desqualificá-lo afirmando que a verdadeira intenção é escamotear o problema da repetência no país. O próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, durante a abertura da 18ª Bienal internacional do Livro de São Paulo chegou a classificar de "erro histórico" o sistema de ciclos.
A solução para o caos em que se encontra a educação brasileira transcende os modelos seriado e de ciclo. O buraco é mais embaixo. O problema é que, qualquer que seja o sistema, nossos alunos estão saindo da escola semi-alfabetizados. Perdem oito anos da fase mais primorosa de suas vidas e não aprendem o mínimo necessário. Mas mesmo num cenário de terra arrasada quem poderia argumentar que um jegue é melhor que um puro sangue árabe? A questão de fundo é que o novo sistema é melhor, mais produtivo, enfrenta os desvios da reprovação-pela-reprovação e da evasão escolar.
Como as discussões sobre o assunto estão pautadas pelo preconceito e ignorância, poucos tem tido coragem e ousadia para adotar o novo sistema. Com exceção de São Paulo e Minas Gerais, poucas escolas no Brasil, não mais que 10%, trabalham exclusivamente sob o novo sistema.
O IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – em recente pesquisa desmistifica e lança por terra o muito de bobagem que, sobre o assunto, tem sido apregoado pelos quatro cantos do país.
Nas avaliações internacionais os países que sempre alcançam as melhores posições, as nações que sempre ostentam as notas mais altas, deixaram para trás o modelo da repetência seriada e, de forma quase generalizada, adotam o sistema de ciclos.
Na União Européia o sistema é exaltado pelo sucesso das sucessivas verificações levadas a efeito com vistas a aferir se as lições ministradas estão sendo processadas e assimiladas pelos alunos.
Japão, Coréia, Suécia e Noruega, por exemplo, ocupam as primeiras posições no ranking mundial da educação e não adotam o sistema de repetência por série.
Todos eles optaram pelo sistema de ciclos, pelo modelo de progressão continuada presente em todo o ensino fundamental. Característica comum nesses países: só admitem uma possibilidade para a reprovação do aluno: a ocorrência de faltas além do permitido. O mesmo ocorre com o Chile, Cingapura e Hong Kong que admitem reprovação, mas só a cada quatro anos.
E vejam que curioso: os países com pior desempenho nas avaliações internacionais refugam a progressão continuada, adotando e tecendo loas à repetência por série: é o caso do Líbano, Indonésia e Arábia Saudita.
Então responda você, caro leitor: onde está o erro histórico a que se refere o presidente Lula? No Japão, Coréia, Suécia e Noruega que estão no topo do ranking e adotam o sistema de ciclos? Ou no Líbano, Indonésia e Arábia Saudita, situados na rabeira da fila e que instituíram o sistema seriado?
Não custa insistir. O “ó do borogodó” não está no modelo. Em que pesem os países com melhor desempenho nas avaliações internacionais adotarem o sistema de ciclos, ocorrem exceções? Aliás, está para nascer regra que não tenha uma. A Bélgica ostenta alta posição no ranking apesar de manter o sistema de repetência por série. O que indica a sustentabilidade de uma tese que venho defendendo com ardor ortodoxo: o problema mais grave é o de gestão.
Que o Sistema de Ciclos é mais adequado e eficaz, os de bom senso já sabiam. As últimas pesquisas do IPEA apenas acabam de comprovar, como que lançando uma pá de cal sobre o antigo modelo.
Antônio Carlos dos Santos é professor, criador da metodologia de Planejamento Estratégico Quasar K+ e da tecnologia de produção de teatro popular de bonecos Mané Beiçudo.