terça-feira, 19 de julho de 2022

Cores da diplomacia: diálogo entre direito, artes visuais e política externa



Entre os séculos 18 e 19, o italiano Antonio Canova, um dos mais estupendos escultores de todos os tempos, autor de obras-primas como "Eros e Psiquê", foi também um diplomata de grandes êxitos para a proteção do patrimônio cultural italiano contra os saques napoleônicos. Antes dele, entre os séculos 16 e 17, os excepcionais pintores Peter Paul Rubens, flamengo, e Diego Velázquez, espanhol, também foram diplomatas destacados.

 

Promover estrelas das artes a embaixadores trazia muitas vantagens aos soberanos. Além da fama e talento impressionarem e facilitarem o trânsito do diplomata na corte anfitriã - basta lembrar que Canova chegou a fazer um busto de Napoleão -, as habilidades artísticas do embaixador-artista ainda poderiam ser úteis para retratar uma possível pretendente para um monarca distante - num tempo em que os casamentos eram por conveniência e por procuração - ou para rabiscar um mapa clandestinamente.

De um outro ponto de vista, a diplomacia também sempre chamou a atenção de artistas e seus mecenas, de modo que, ao longo da história da arte, pinturas icônicas também tiveram por alvo e foco agentes ou temas diplomáticos. Recorde-se, por exemplo, "Os Embaixadores" (1533), de Hans Holbein, e "O Juramento do Tratado de Münster" (1648), de Gerard ter Borch, considerados verdadeiros marcos para o nascimento da diplomacia moderna.

No Brasil, o cenário não é muito diferente: diplomacia e artes dialogam de maneira intensa. No monumental "O Itamaraty na Cultura Brasileira", volume organizado por Alberto da Costa e Silva e editado por Paulo Roberto de Almeida, dois intelectuais que honram o corpo diplomático nacional, há indicações preciosas de diplomatas pintores do passado, como Araújo Porto-Alegre, Sotero Cosme, Navarro da Costa e Alvim Menge. Os embaixadores Romeo Zero, morto em 2015, e o recém falecido Sérgio Telles somam-se a nomes contemporâneos como Elim Dutra e Joaquim Arnaldo de Paiva Oliveira, que mantiveram, na atualidade do Itamaraty, o diálogo entre canetas e pincéis, linhas e letras, com obras em importantes acervos nacionais e estrangeiros.

No âmbito das artes visuais, o Ministério das Relações Exteriores não tem em seus quadros apenas artistas. Mecenas, colecionadores, críticos e curadores também compõem o serviço exterior brasileiro. Um exemplo eloquente é Gilberto Chateaubriand, falecido neste mês de julho de 2022, aos 97 anos, cuja coleção de arte brasileira, de cerca de 8.000 itens, está cedida em comodato ao Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro desde 1993. Gilberto, aliás, é filho do paraibano Assis Chateaubriand, ex-embaixador em Londres, jornalista, advogado, político, empresário e mecenas, que fundou e dá nome ao Museu de Arte de São Paulo (MASP).

Outro caso emblemático foi Mário Calábria, que, como embaixador na velha República Democrática Alemã, construiu e promoveu uma ampla rede de amizades com artistas da Alemanha Oriental. Em 2020, sua respeitável coleção de arte foi leiloada com estrondoso sucesso pela casa de leilões Grisebach, de Berlim. Calábria, que foi secretário do diplomata e escritor mineiro João Guimarães Rosa na Embaixada do Brasil na Alemanha, deixou um legado importante de acesso gratuito ao público e que está, desde 2021, sob a guarda e gestão do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo. Trata-se de um acervo de quase 5.000 documentos colecionados ao longo da vida pelo diplomata, consistente em cartas trocadas durante 70 anos entre diplomatas, políticos, historiadores e artistas, além de 210 livros com dedicatórias, fotografias e documentos. Esses documentos estavam guardados na Embaixada do Brasil na Alemanha e agora são a Coleção Mário Calábria do IEB/USP.

Além disso, há artistas incríveis cuja ligação com a diplomacia brasileira decorreu do casamento. As mais conhecidas são Clarice Lispector (que, além de tudo, também foi pintora), que fora casada com o diplomata Maury Gurgel Valente de 1943 a 1959, com quem teve seus dois filhos, Pedro e Paulo Gurgel Valente; e a escultora Maria Martins, casada com o embaixador Carlos Martins Pereira e Souza. Além de seu reconhecimento como artista plástica no âmbito mundial, as peças de Maria Martins ocupam espaços de acesso público da capital federal, como a grande escultura "Rito dos Ritmos" instalada nos jardins do Palácio da Alvorada; e as esculturas "A Mulher e a sua sombra" e "Canto da Noite", abrigadas no Itamaraty.

Com a sua extensa rede de representações diplomáticas e consulares, o Itamaraty age no apoio e na promoção de eventos, mostras e residências de artistas brasileiros, concretizando o que se convencionou chamar de "diplomacia cultural", o instrumento de política cultural e de política externa que, ao revelar a alma da nação, cria soft power, ou seja, influência e atração.

Durante a 2ª Guerra Mundial, por exemplo, o governo brasileiro não apenas enviou 25 mil pracinhas para lutar ao lado dos aliados na Itália, mas despachou também para Londres, em 1944, enquanto a cidade ainda ardia em meio a duros bombardeios dos nazistas, 168 quadros, de 70 artistas modernistas, além de 162 fotos da arquitetura brasileira. As obras, presenteadas ao governo inglês, foram expostas na Royal Academy of Arts e em outros espaços nobres e, em seguida, vendidas, com a renda revertida para a Royal Air Force (RAF). Apesar do risco das bombas, a mostra foi um estrondoso sucesso. Mais de 100 mil pessoas compareceram - um pouco como agora, as pessoas estavam ansiosas por cultura e por sair de casa.

Os chamados "presentes de Estado" ou "presentes protocolares" constituem outro vetor da "diplomacia cultural". Em visita a outras nações, chefes de Estado costumam presentear o anfitrião com algo que remeta à sua cultura. O anfitrião retribui com um presente de seu país. A troca de presentes é um gesto milenar de cortesia e hospitalidade. De acordo com a Lei 8.394/1991 e o Decreto 4.344/2002, que regulamentam a questão, os objetos recebidos em cerimônias oficiais de troca de presentes com chefes de Estado e de governo são considerados patrimônio da União. Há acórdão do TCU sobre o tema também.

Uma outra vertente da diplomacia cultural atua na obtenção e doação de obras de artes para organismos internacionais, como parte da política de influência e promoção da cultura brasileira em âmbito mundial. Nesse campo, um dos episódios mais emblemáticos foi a doação, pelo governo brasileiro, dos gigantescos painéis "Guerra e Paz" de Cândido Portinari à Organização das Nações Unidas, em 1957. As obras foram alocadas no hall de entrada da Assembleia Geral, o espaço mais nobre da sede da ONU em Nova York. Em 24 de outubro de 2020, data em que o mundo inteiro celebrou os 75 anos da ONU, o ramo brasileiro da International Law Association convidou o filho de Portinari, o professor e engenheiro João Cândido Portinari para fazer uma comovente conferência sobre aquelas obras-primas, num evento que constou do calendário global das comemorações. A conferência ainda pode ser assistida online.

Todas essas iniciativas da Diplomacia Cultural são importantes por muitas razões, que ultrapassam a mera propaganda nacional. Elas permitem uma visão positiva de um povo e podem carrear receitas diretas e indiretas, claro, mas sobretudo favorecem uma maior cooperação entre nações; previnem e mitigam conflitos; promovem o reconhecimento do patrimônio e da diversidade culturais, e encontram pontos de contato entre pessoas diferentes, difundindo as noções de tolerância, fraternidade, alteridade e confiança mútua. Enfim, quando diplomacia e cultura dialogam, se prolonga, enraíza e difunde uma atmosfera de paz - algo tão importante em nossos dias. Como bem diz o Preâmbulo da Constituição da Unesco, de 16 de novembro de 1945, "uma vez que as guerras se iniciam nas mentes das pessoas, é nas mentes das pessoas que deve ser construída a defesa da paz".

Inês Virgínia Soares Marcílio Franca, Marcílio Toscano Franca

Inês Virgínia Soares é desembargadora federal no TRF da 3ª. Região (SP). Doutora em direito pela PUC-SP, com pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP). Especialista em direito sanitário pela UnB (Universidade de Brasília). Autora do livro "Direito ao(do) Patrimônio Cultural Brasileiro" (Ed. Forum).

Marcílio Franca é professor visitante da Universidade de Pisa (Itália). Tem pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu (Florença, Itália). Membro do Comitê Jurídico da International Art Market Studies Association. É árbitro da Court of Arbitration for Art (Rotterdam, Holanda), da Organização Mundial de Propriedade Intelectual (WIPO) e do Tribunal Permanente de Revisão do Mercosul. Professor da UFPB (Universidade Federal da Paraíba).


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